A linha de graphic novels Terra Um tem como proposta recontar as origens dos medalhões da DC Comics de forma modernizada e livre da cronologia do universo regular da editora (ou seja, não faz parte da cronologia). Isso deixa os autores livres de amarras editoriais, com carta branca para alterar quaisquer elementos que desejarem, desde que, obviamente, isso não desvirtue a mitologia do herói em questão. É uma proposta editorial similar à do Universo Ultimate da concorrente Marvel.
A ideia é mesmo fisgar novos leitores. Gente que talvez conheça esses personagens das séries de TV ou dos filmes, mas que nunca leu os quadrinhos. Tanto é que nos EUA essas graphic novels foram pensadas para serem vendidas em livrarias, coisa não muito comum por lá, devido ao sistema de comércio via comic shops.
Quem inaugurou a linha foi o Superman, e agora é a vez do Homem-Morcego ganhar seu título no selo, que acaba de ser lançado por aqui. E após ler Batman: Terra Um, fica mesmo bem claro que essa é, de fato, uma história voltada para outro público-alvo, e não para os leitores mais hardcore.
MAS QUE RAIOS DE BATMAN É ESSE?!
Geoff Johns não se fez de rogado e se utilizou fartamente da proposta de alterar o que lhe desse na telha, deixando essa nova origem do Cavaleiro das Trevas quase irreconhecível. A essência do Batman ainda está lá (a morte de seus pais, a fantasia de morcego, ele não usar armas de fogo), mas todo o resto virou algo totalmente diferente.
E por conta disso, há duas formas de se ler essa HQ. Como história de origem, é tosca e mal resolvida, sofrendo do mal de querer interligar coisas que não precisam estar conectadas. Muitas outras mudanças nada acrescentam à mitologia do personagem (como o fato de Martha Wayne ser da família Arkham, ou o possível motivo político para a morte dos Wayne).
Superman: Terra Um também mudou muita coisa do personagem, mas ao seu final, o deixou pronto para ser o herói que todos conhecem. Isso não acontece aqui. Johns entrega ao mundo um Batman inconsequente, despreparado e, sobretudo, sem o treinamento necessário para ser o herói tremendão que habita o imaginário popular. Ou seja, cria um personagem inferior, cujas histórias, se fossem levadas adiante, seriam completamente diferentes da cronologia regular.
ENTRANDO NO TÚNEL DO TEMPO
Veja, eu poderia apenas ter me decepcionado com tudo isso (como de fato aconteceu) e me conformado com o desperdício de 22 mangos, mas escolhi tentar salvar a leitura ao encará-la de uma segunda forma. Já que esse negócio é tão alternativo que lembra as histórias do antigo selo Túnel do Tempo, foi justamente assim que considerei essa origem. Como a criação de um Morcegão de uma realidade paralela.
Aí o negócio fica mais aprazível e flui bem melhor, podendo-se até apreciar alguns de seus aspectos. Nessa ótica, a reinvenção total de Alfred (até física), um ex-militar que originalmente iria trabalhar para Thomas Wayne como seu chefe de segurança, funciona. E a relação dele com Bruce é um dos pontos mais bem desenvolvidos da trama.
Outro personagem que ganha bastante destaque é o detetive Harvey Bullock, que aqui vira um tira celebridade chegando a Gotham com o intuito de resolver o homicídio dos Wayne apenas para ganhar mais fama. Contudo, Gotham e sua corrupção e loucura vão gradualmente afetando o sujeito, o que pode custar caro a seu espírito. E, se nada disso agradar e tudo mais falhar, ao menos dá para apreciar os belos desenhos de Gary Frank…
PÔ, GEOFF JOHNS, WTF?
Confesso que quando vi os nomes de Geoff Johns e Gary Frank na capa, fiquei muito animado. Afinal, eles haviam feito o arco Origem Secreta, do Superman, antes da reformulação dos Novos 52. Ela é fácil uma das melhores histórias de origem do Homem de Aço.
Johns ainda havia feito, dessa vez ao lado do brasileiro Ivan Reis, outra excelente Origem Secreta, a do Lanterna Verde. Ou seja, o cara tem as manhas de recontar como ninguém os primeiros dias dos super-heróis DC. Então o que deu errado dessa vez? Acho que sei a resposta.
Os dois arcos de Origem Secreta faziam parte da cronologia regular da editora. Assim, obviamente ele tinha mais restrições editoriais quanto ao que poderia ou não alterar drasticamente. Dessa vez, com a proposta do “mude o que quiser”, o sujeito parece ter se empolgado tanto que foi longe demais e acabou perdendo a mão. Eis aí um bom exemplo de que, às vezes, um pouco de rédeas curtas editoriais não é necessariamente algo ruim.
A PALAVRA FINAL
O pior é que Batman: Terra Um, a meu ver, falharia até na proposta de fazer um neófito passar a acompanhar os quadrinhos regulares. Fico imaginando essa figura quase mitológica, que nunca leu um gibi de super-herói na vida. Digamos que ele leia Superman: Terra Um. Como disse antes, essa HQ entrega o personagem identificável, próximo do que está sendo feito atualmente em seus títulos mensais.
No caso do Batman, Terra Um não tem nada a ver com o arquétipo do Batman que conhecemos, seja de outras mídias, seja dos quadrinhos. Se esse novato ler a graphic novel, gostar e for atrás de qualquer revista do personagem, vai sofrer um choque ao se deparar com algo totalmente diferente. Ele certamente não vai entender nada.
É um trabalho que, portanto, vai contra sua proposta inicial de modernização de origem (e não de reinvenção total). E ainda por cima pode desagradar muitos dos leitores mais experientes, como aconteceu comigo.
Eu queria apenas ler uma boa história de origem atualizada do meu personagem favorito, mas não encontrei isso aqui. Acabei me deparando apenas com um conto razoável da extinta série Túnel do Tempo. Como não era essa a ideia, não recomendo isso nem para leitores de primeira viagem, nem para os mais escolados.