A Tristeza Extraordinária do Leopardo-das-Neves

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A literatura é como uma gaveta, em que se pode guardar o que quiser: chaves, roupas, filhotes de labradores, armas ou documentos confidenciais do governo. Por força do hábito e do mercado, leitores, autores e editores abrem essas gavetas cheios de expectativa e, se alguém tira tudo do lugar, chiamos e rearrumamos (às vezes vemos que o novo arranjo é bem melhor e aceitamos). A Tristeza Extraordinária do Leopardo-das-Neves, de Joca Reiners Terron, não chega a colocar algo de novo na gaveta, mas faz uma bela mistura.

No bairro do Bom Retiro, centro da cidade de São Paulo, cruzam-se as histórias de um escrivão insone, seu pai demenciado, um taxista dono de rottweilers, sua enfermeira, um leopardo-das-neves, um entregador coreano e uma misteriosa criatura que veste galochas e uma capa de chuva vermelha. Parece uma bagunça, mas na verdade é uma sinopse.

Com segurança de quem sabe o que está fazendo, o autor vai entrecruzando as tramas, tanto literalmente (personagens se encontram na delegacia em que o escrivão trabalha), quanto literariamente (através de símbolos recorrentes, técnica usada por Alan Moore, por exemplo: lembra dos smileys e relógios em Watchmen?). Os vários núcleos, personagens e conflitos, tão distintos entre si, dão a impressão que o livro é menos um romance do que uma costura de contos, unidos pelo heterogêneo bairro do Bom Retiro e pelo clímax da narrativa. Parecem estradas, cada uma com um destino e origem, mas que se encontram num anel viário.

Também se deve elogiar dois aspectos: as pinceladas de experimentalismo e o flerte com o fantástico (no caso deste último, elogiar criticando). Longe de rebuscada, a linguagem direta rejeita o hermetismo, mas também a falta de imaginação, construindo imagens interessantes, recorrências significativas e, principalmente, a atmosfera soturna do livro. Se a obra tem certa dificuldade em criar os paralelos entre espaço e enredo, o clima está muito adequado: noturno, enluarado, frio. Lendo, não se enxerga o Bom Retiro, talvez por causa desse sentimento de névoa.

Este clima realça o mistério, que beira o fantástico, que emana da personagem da criatura. Os bons momentos do livro acontecem na penumbra: o ar de fantasia macabra, a paranoia concretizada em telefonemas de uma estranha empresa de recursos humanos ou o intervalo entre os depoimentos, onde se constrói a imagem da criatura. Esse flerte com o fantástico, e também com a literatura de gênero (policiais, westerns, horror), coloca a obra longe das narrativas predominantes na literatura brasileira contemporânea, que tendem a optar pelo realismo.

Por isso, quando o narrador começa a iluminar alguns pontos fundamentais do enredo, beirando as explicações, o instigante dá lugar ao desapontamento, mesmo à decepção. Fica a impressão de que o autor quis deixar bem marcados os movimentos da trama, como as reações da plateia em sitcoms: “aplausos”, “susto”, “revelação”.

Numa obra que se constrói nas sombras, no mistério e no suspense, essa opção enfraquece o efeito causado no leitor: ao invés de um fim que ressoa, ecoando a procura de respostas, ficamos com a face ruim da literatura de gênero, a face que, depois de uma ferida, faz um curativo e dá um beijinho para sarar mais rápido.

O livro tem, pelo menos, o mérito de não dar ao leitor uma tristeza tão extraordinária quanto a do leopardo-das-neves (o trocadilho é muito bom para passar em branco). Lendo, ficamos com a impressão de estarmos num equilíbrio frágil, sobre a ameaça de uma queda fatal. Concluído, o romance nos faz ver que, afinal, estávamos numa ponte bem segura. “Não havia risco nenhum, seu bobo”, parece dizer ao leitor. A adrenalina não é imortal, posto que é chama, mas é infinita enquanto dura. Seria demais pedir algo além?