Existe algo de fascinante sobre o suicídio. Ele pode ser inesperado como um acidente, trágico como uma doença terminal ou violento como um assassinato, mas está a um abismo de distância de todas essas opções. Para alguns, conceber a ideia de acabar com a própria vida é inaceitável ou, na melhor das hipóteses, incompreensível. Para outros, é um ato tão racionalmente válido quanto fechar as janelas em um dia de chuva.

É um tema complicado. Você deve saber, por exemplo, que existe um consenso não oficial entre os jornalistas de nunca divulgar casos de suicídio. De não documentá-los. De não transformá-los em notícia.

Ninguém vai saber direito te dizer o motivo, mas podemos especular. Talvez por se tratar de uma escolha pessoal demais? Uma morte já é triste para qualquer família, mas as mortes voluntárias trazem um peso extra. Faria sentido querer respeitar a privacidade do sujeito. Por outro lado, mídia nenhuma é tão empática assim.

Talvez, em alguma época, tenha-se criado uma convenção, um pacto de silêncio entre os jornalistas, para que se evitasse uma propagação de suicidas em potencial. Pessoas já predispostas que, lendo e ouvindo sobre suicídios alheios, iriam se sentir impelidas a fazer o mesmo. É uma possibilidade, ainda que me pareça duvidosamente altruísta.

A galera que defende esse raciocínio costuma citar Durkhein, que compreendia o suicídio como um fenômeno individual, porém com motivações e consequências refletidas coletivamente.

A Ponte, Delfos

Sob essa ótica, a ideia seria inibir um eventual crescimento do número de suicidas na sociedade por meio da supressão midiática: se os jornais não falarem sobre o problema, o problema não irá se alastrar. Parece um pensamento imbecil, e provavelmente é mesmo. Nem Durkheim estava muito certo disso, mas o fato é: não podemos simplesmente sair por aí divulgando casos de suicídio.

OU PODEMOS?

Em 2004, um sujeito chamado Eric Steel chutou o balde e resolveu que não se prenderia às convenções impostas pelo coletivo. Seu primeiro trabalho como diretor foi A Ponte, um documentário sobre o monumento público que mais registrou casos de suicídio na história: a ponte Golden Gate, carro-chefe dos cartões-postais de San Francisco. Na época, mais de mil pessoas já haviam se lançado da ponte desde sua inauguração, sendo que somente 1% delas conseguiu sobreviver.

Mas a ideia do cara não era apenas fazer um documentário sobre a ponte (que ironicamente é considerada uma das Sete Maravilhas do Mundo Moderno). Ele queria filmar as pessoas que se jogavam dela.

Para captar as imagens que utilizariam no filme, Steel e sua equipe instalaram câmeras em um dos lados da Golden Gate, e por um ano inteiro gravaram as pessoas que passavam por ali – e eventualmente as que se matavam. Na época, a taxa média era de um suicídio a cada 15 dias.

A fim de conseguir as autorizações necessárias para instalar as câmeras, Steel mentiu para as autoridades dizendo que seu documentário trataria da relação da ponte com a cidade, sua arquitetura etc. Ou seja: antes mesmo de começar a gravar, o sujeito já estava tomando decisões controversas.

O DOCUMENTÁRIO

A Golden Gate serviu de palco para o suicídio de 24 pessoas durante o ano de 2004. Várias dessas mortes foram capturadas pelas câmeras de Steel e posteriormente usadas em A Ponte, que saiu apenas dois anos mais tarde.

A abertura do documentário já dá o tom: entre panorâmicas da ponte e imagens da multidão que vai e vem por ela, um senhor de seus 60 anos aparece debruçado na grade divisória, usando uma camisa verde e um bonezinho vermelho. Parece um típico tiozão, alguém muito fora de qualquer estereótipo visual que possamos ter de um suicida enquanto sociedade.

A Ponte, Delfos

Depois de um tempo ali, olhando para baixo como quem não quer nada, o homem passa as pernas pela grade, fica de pé do outro lado e se lança em uma queda-livre de quase 70 metros rumo à morte. Ele despenca a 120 km/h em direção às águas, enquanto a câmera de Steel registra o giro de seu corpo no ar e o boné vermelho que sai voando de sua cabeça. Isso já nos primeiros quatro minutos de documentário.

Há muitas entrevistas ao longo do filme, geralmente intercaladas com imagens dos suicídios. Nessas entrevistas, familiares e amigos contam sobre as pessoas que vemos nas filmagens, humanizando-as ao oferecer um retrato de suas condições de vida, seus medos e suas personalidades – pequenos fragmentos que podem ou não nos ajudar a entender a escolha que tomaram.

Esse é o aspecto mais interessante do documentário. Ao mesmo tempo em que temos essas gravações imparciais de desconhecidos tomando a decisão mais significativa de suas vidas, temos também as impressões de quem os conheceu verdadeiramente.

São pais, mães, irmãos e amigos que revelam a história daqueles que optaram pelo suicídio. E assim conseguimos traçar um perfil, ainda que superficial, dessas pessoas que acabaram eternizadas pelas lentes de Steel.

Cabe aqui uma ressalva: dizem por aí que Steel não contou aos entrevistados que havia filmado os suicídios. Ao que parece, rolou uma boa ludibriada nos amigos e parentes das vítimas, provavelmente para evitar que eles se opusessem à exibição das cenas. Esse cara realmente faltou às aulas de ética na faculdade, não?

OS PERSONAGENS

As histórias retratadas em A Ponte são as mais diversas possíveis, e ficaram rodando na minha cabeça dias depois de ter visto o filme. Nem todas, vale dizer, terminaram realmente em suicídio.

Tem o caso de um carinha, por exemplo, que está batendo algumas fotos de cima da Golden Gate. De repente surge uma menina, pula a grade de proteção e fica de pé no parapeito que dá para a água. Em vez de ajudá-la imediatamente, o sujeito começa a bater fotos da menina, como essa daqui:

A Ponte, Delfos

Há uma entrevista com ele no documentário. Ele diz que demorou para perceber que precisava intervir. Porque, enquanto estava atrás da câmera, aquilo quase não parecia real (e penso se o diretor do documentário não compartilharia desse sentimento). Mas a garota estava prestes a pular. Então ele larga a câmera, puxa a menina pelo casaco, traz ela para o lado seguro da grade e chama a polícia. O filme não dá informações do que aconteceu com a garota depois, mas pelo menos naquele dia seu direito ao suicídio foi negado.

Uma das histórias mais inacreditáveis é a de Kevin Hines. Aos 17 anos, ele faltou ao colégio e se dirigiu à ponte com a intenção de saltar. Ficou por ali durante 40 minutos, chorando enquanto as pessoas passavam por ele sem dar a menor importância.

Então surgiu uma senhora “com sotaque alemão”, provavelmente uma turista, e perguntou a Hines se ele poderia tirar uma foto dela. O garoto disse que sim. Fotografou a mulher, devolveu a câmera, desejou que ela tivesse um bom dia e, porque ninguém parecia realmente se importar, atirou-se da ponte.

Lembra quando eu disse que só 1% dos saltadores da Golden Gate sobreviveram? Kevin Hines faz parte desse seleto grupo. Ele conta que, assim que seus dedos se soltaram da grade, percebeu que não queria morrer. Por isso tentou cair do melhor jeito possível. Mesmo arrebentado, conseguiu sobreviver. O documentário não deixa claro, mas ao que parece ele não ficou com nenhuma sequela grave. Será que podemos chamar isso de sorte?

Mas o cara que mais me impressionou foi esse aí, o Gene Sprague:

A Ponte, Delfos
Gostei da camiseta.

Sua história é meio que a linha-mestra do documentário. Quero dizer: se A Ponte tivesse um protagonista, seria ele. Sua história é tão triste quanto as outras, e o vídeo de sua morte encerra o documentário. Pode parecer um tanto babaca dizer isso, mas o que realmente me chamou a atenção sobre Gene foi um aspecto técnico: a forma como ele se jogou da ponte.

Enquanto a maioria das pessoas parece se lançar de um jeito meio estabanado, meio relutante (porque afinal deve dar um medo do cacete), Gene apenas sobe no parapeito, abre os braços e se deixa cair de costas. É um movimento quase gracioso. Como se ele tivesse encontrado algum tipo de paz e conforto naquele pulo. É triste, eu sei. Mas também é bonito.

A CONCLUSÃO

Muita gente afirma que A Ponte é um snuff-movie camuflado de documentário. Esses argumentos são endossados pelo fato de que não há sequer uma narração em off de Steel. Ele nem mesmo aparece fazendo perguntas aos entrevistados. Eu não estou bem certo de que isso seja um problema, mas entendo.

Que o documentário é extremamente seco, isso ele é. Quase não há trilha sonora. Quase não tem contextualização. Há apenas os suicidas se suicidando e as pessoas de seu círculo social falando sobre eles. Sobre a falta que sentem. Sobre como tentaram ajudá-los. Sobre como fracassaram.

E você pode ver isso como um defeito, como se o documentário fosse apenas um pano de fundo para justificar a exibição de todas aquelas mortes. Ou pode pensar que Steel, apesar de ser um rapaz de ações duvidosas, talvez quisesse apenas deixar aquelas pessoas e suas histórias falarem por si próprias. Sem a intervenção de um cineasta fazendo suposições. Sem grandes efeitos. Sem narrações.

Eu não sei muito bem o que pensar, mesmo depois de escrever este texto. Decidi também que não darei nota para o documentário, pelo simples fato de que me sentiria como um juiz avaliando o salto daquelas pessoas, erguendo plaquinhas na beirada da ponte.

É uma produção contestável? Talvez. Antiética? Provavelmente. Mas sem ela eu jamais teria conhecido a história dessas pessoas com as quais, mesmo que tardiamente, passei a me importar.

Abaixo você pode assistir ao documentário na íntegra e tirar suas próprias conclusões:

https://www.youtube.com/watch?v=nfWVHNQuYns

*De acordo com a Bridge Rail Foundation, até agora quase 1.700 pessoas se suicidaram pulando da Golden Gate.