A polêmica das biografias não autorizadas

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A menos que você more em outro planeta (se for o caso, bom pra você), já deve ter lido pelo menos alguma coisa sobre a polêmica que se desenvolveu nas últimas semanas envolvendo alguns dos artistas mais consagrados da MPB militando a favor de autorização prévia para o lançamento de biografias sobre suas pessoas.

Ou melhor dizendo, alguns dos artistas que mais combateram (e sofreram) a censura, parecem ter sido substituídos por versões alternativas de algum universo paralelo e agora eles próprios ocupam o posto de censores. Mundo bizarro total.

E já que o DELFOS prima justamente pelo jornalismo reflexivo, achei que seria oportuno dar o meu entender sobre essa que considero uma questão bastante séria. Mas antes de começar com as opiniões, convém passar a informação primeiro. Portanto, vejamos exatamente como toda essa polêmica começou.

O REI ESTÁ NU

A coisa se iniciou com a formação do grupo chamado Procure Saber, formado por grandes artistas da MPB (Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Milton Nascimento, Roberto Carlos, Erasmo Carlos – este último assim perdendo seu título de “tremendão original” que lhe havíamos concedido aqui no DELFOS), e, por algum motivo obscuro, também o Djavan. O grupo reivindica que qualquer biografia passe a ter de ser autorizada previamente pelo biografado para poder ser lançada. Ou seja, eles querem essencialmente o fim das biografias não autorizadas.

Na realidade, o caso começou bem antes disso, quando, em 2007, Roberto Carlos, através de um batalhão de advogados, conseguiu na justiça suspender a comercialização de sua biografia, Roberto Carlos em Detalhes, escrita pelo jornalista e historiador Paulo Cesar de Araújo. Isso abriu um precedente extremamente perigoso, pois, se um conseguiu isso, certamente outros também poderiam obter o mesmo resultado.

E foi o que ocorreu. Outras biografias, principalmente de pessoas já falecidas, passaram a ser proibidas de circular depois que os herdeiros dos biografados entraram na justiça, mas esses casos não tiveram tanta repercussão. Mas eis que surge uma “Liga da Justiça” de grandes artistas brasileiros com o mesmo objetivo em mente, e o palco está armado. Que coisa, não?

Os artistas defendem que usar da liberdade de expressão para comercializar a vida alheia é errado e que isso dá margem para o surgimento de obras sensacionalistas. Portanto, eles se sentem no direito de controlar obras sobre suas próprias vidas e também participar do lucro de tais livros. Afinal, eles não querem que escrevam sobre eles, mas já que vão escrever, que ao menos lhes paguem!

Se controle de informação não é censura, então não sei mais de nada. E isso vindo de gente como Caetano Veloso, que gravou apenas isso aqui:

E pelo amor de Deus, Gilberto Gil foi ministro da cultura! Santa contradição, Batman! Parem o mundo que eu quero descer. Como podem todos esses caras que tiveram de lidar com a censura do governo militar (e até mesmo com o exílio) queimarem seu filme se colocando numa posição ridícula dessas?

PÚBLICO VS. PRIVADO

Antes de mais nada, esse negócio de ter o controle sobre suas próprias vidas pode até parecer fazer sentido num primeiro momento. Mas aí nos lembramos que eles são figuras públicas de alto interesse e esse argumento se torna muito mais nebuloso. Queira ou não, a partir do momento em que pisaram em cima de um palco, gravaram seu primeiro disco, emplacaram seu primeiro sucesso radiofônico ou nos antigos festivais, deixaram de ser apenas pessoas privadas e assumiram também personas públicas.

Vem com o território. É o preço que se paga por ter um emprego mais legal que a maioria. Não estou defendendo que paparazzi tirem fotos dos caras no banheiro. De fato, todos, até figuras públicas, têm direito a resguardar sua privacidade. Biografias, contudo, não são invasão de privacidade. Elas não são como uma “matéria” da Caras ou do TMZ. Elas não querem saber qual a posição sexual favorita do sujeito. Mas de repente, algo particular como um fim de casamento pode ser pertinente se, por exemplo, motivado por isso o cara fez um de seus melhores discos. Percebe a diferença? Biografias não são trivialidades, são documentos históricos. Pois mesmo a história de um reles cantor pode servir para dar um panorama sociocultural de determinado momento de um país.

Podem não ser, à primeira vista, tão importantes quanto outras figuras históricas como um Tiradentes, um Getúlio Vargas ou Lula, mas integram a história cultural de nosso país, e a maioria dos artistas que compõem o Procure Saber, em especial, foi parte importantíssima de um momento particularmente conturbado da história brasileira.

É natural que essas figuras gerem interesses de jornalistas e historiadores, pois são bons temas. Assim como é natural que se busque em cada aspecto de suas vidas elementos que os levaram à posição de merecer uma biografia. Não há como escrever um bom trabalho biográfico sem levar em consideração aspectos da vida privada do tema.

Precisar de autorização prévia é censura, pois para obter essa liberação, é batata que os biografados vão querer editar os textos, cortando qualquer coisa da qual eles não gostem. E aí, meu amigo, teremos só documentos chapas branca.

A CHAPA É BRANCA E A HISTÓRIA É CINZA

A justificativa para a proibição da biografia de Roberto Carlos foi que ela trazia à tona episódios dolorosos da vida do rei, como quando foi atropelado por um trem na infância e perdeu uma perna. Acho essa desculpa no mínimo estranha. Afinal, ele não precisa ler sua própria biografia para se lembrar disso, basta olhar para baixo todo dia ao acordar e constatar que está faltando algo ali. Por acaso ele não quer que ninguém saiba disso? Perda de tempo, o povo todo já sabe que ele é tipo um pirata. Proibir um livro só por causa disso não vai ter o efeito daquela maquininha de apagar memórias do Homens de Preto.

Aí entra um pouco do que sempre me incomodou na classe artística brasileira em geral. Eles se portam como um clubinho. Todo mundo conhece todo mundo, todos são amiguinhos, fãs e admiradores mútuos. Vivem numa bolha de bajulação e autoindulgência. E quem quiser entrar para a turma, tem de prestar tributo aos mestres, numa verdadeira cerimônia do beija-mão, como se ainda fôssemos governados por Dom João VI. E ai de quem ousa criticá-los. Aí todos se unem para um “quem você pensa que é para falar isso de mim?” coletivo. O único cara que ia contra essa maré era o Lobão, mas ele próprio acabou virando mais uma figura folclórica do que um sujeito a ser levado a sério.

É essa mentalidade fora de contato com a realidade que contribuiu em muito para essa decisão do Procure Saber. Vivendo em sua bolha de elogios, sentem-se no direito de controlar o que pode ou não ser dito sobre eles. Esquecem-se que são humanos, e, como todos os humanos, são passíveis de erros também. Por mais que queiram nos mostrar apenas seus acertos, são suas atitudes equivocadas que mostram que são pessoas como eu ou você.

Responda sinceramente: quais são as melhores biografias? Eu diria que em 95% dos casos são as não autorizadas, pois elas não têm rabo preso com o biografado e, portanto, possuem a liberdade para retratá-lo sem qualquer tipo de pé atrás.

Tá, eu esculachei os artistas alguns parágrafos acima, mas é natural de qualquer pessoa não querer que o mundo saiba de seus erros e falhas de caráter. Por isso são pouquíssimos os que realmente autorizam uma biografia sem esconder nada. E é justamente por isso que o poder de decisão não pode ficar nas mãos dos biografados.

Já imaginou se eles conseguem alterar as leis e essa aprovação se torne obrigatória? Imagine as biografias de nossos políticos, por exemplos. De uma hora para outra todos eles se tornarão, somente nas páginas, bastiões da moralidade e da correção. E a História de uma hora para outra vira ficção.

PROTEÇÃO E DINHEIRO

Existem biografias sensacionalistas, é claro, e aos borbotões. Elas estão presentes no mundo todo, sobre qualquer tipo de celebridade, até gente cuja vida não merece sequer um panfleto, quanto mais uma biografia. Mas adivinha só, a lei disponibiliza de ferramentas contra obras que caluniem, apresentem injúria ou simplesmente ofereçam fatos errados a respeito de um biografado. Se isso aconteceu, é só abrir um processo que a parte lesada certamente ganhará. É assim que se protege a honra de uma pessoa pública, com justiça e não censura prévia.

É como no jornalismo. Não podemos escrever qualquer barbaridade inventada sobre qualquer pessoa. Não é assim que a banda toca. Se eu escrevo aqui no DELFOS que a celebridade X fez amorzinho gostoso com uma cabra e uma tira de bacon, é bom eu ter como provar (assim como o jornalista Paulo Cesar de Araújo provou através de fotos e vídeos que entrevistou Chico Buarque para a biografia de Roberto Carlos, quando Chico negou ter concedido a entrevista). Caso contrário, serei, com toda razão, processado em milhares de Dilmas e demitido do DELFOS, que por sua vez, seria obrigado a fazer uma retratação pública, e dificilmente arranjarei emprego em algum veículo jornalístico de expressão novamente.

Claro, esse processo pode demorar anos e caber inúmeros recursos em várias idas e vindas. É um processo prolongado, custoso e excessivamente burocrático. Esses caras não deviam então militar para alterar a forma como a aplicação da lei é conduzida ao invés de pegar um atalho tosco como estão fazendo? É o mais lógico e o mais correto, ainda que não necessariamente o mais fácil.

Mas como no Brasil tudo é um esculacho, devem ter achado mais garantido já “extirpar o mal pela raiz” preventivamente do que tratar do problema quando e se ele aparecer.

E, claro, temos a questão financeira. Deveriam os artistas receber uma porcentagem sobre um livro sobre ele, mesmo que ele não necessariamente tenha tido qualquer coisa a ver (exceto ter vivido a vida e obra nele retratado, claro) ou dado qualquer tipo de respaldo sobre o mesmo?

Djavan (a última pessoa no mundo que deveria se preocupar com essa questão, afinal, quem em sã consciência ia querer ler uma biografia sua?) deu uma infeliz declaração à Folha de S. Paulo dizendo que editores e biógrafos ganham fortunas em cima de vidas alheias.

Como dono de editora e autor publicado, essa foi uma das melhores piadas que ouvi em muito tempo. Ninguém ganha dinheiro com livros no Brasil. A situação do nosso mercado é tão ruim (devido à forma como esse mercado é estruturado e também ao fato do brasileiro não ser um povo dado à leitura), que se grandes autores de best sellers, como um John Grisham ou um Dan Brown da vida fossem brasileiros, na certa teriam segundos empregos para, você sabe, comer e colocar um teto sobre suas cabeças e máquinas de escrever.

Sério mesmo que esse pessoal está brigando por migalhas ou é só mais uma desculpa esfarrapada para justificar o que não tem justificativa?

ENCERRANDO

No final das contas, não tem grandes questões aqui. Esse grupo pode até estar simplesmente querendo se proteger, mas o está fazendo da maneira mais errada possível. Maculou sua própria história de luta pela liberdade de expressão e direito à informação no processo. Graças a toda a repercussão negativa que sofreram, alguns dos membros já andaram contemporizando em entrevistas, dizendo que não era exatamente isso que almejavam. Por conta disso, já se especula também que o Procure Saber pode acabar se desmantelando nos próximos dias. A conferir.

Mas ainda bem que existem artistas com óticas mais bem ajustadas. Encerro então este artigo com um trecho de um texto escrito por Alceu Valença e publicado em sua página oficial no Facebook desse assunto, onde ele dá sua opinião de forma simples e bastante ponderada. Basicamente ele disse em poucos parágrafos aquilo que tentei nesse extenso tratado e não sei se consegui.

“Ética. O assunto até parece démodé, mas deveria estar intrinsecamente no centro de diversas situações que vivemos hoje em dia. Inclusive, neste caso. Óbvio que o conceito é subjetivo e, até, utópico. No entanto, sem a sua prática, o desequilíbrio é evidente. Fala-se muito em biografias oportunistas, difamatórias, mas acredito que a grande maioria dos nossos autores estão bem distantes desse tipo de comportamento. Arrisco em dizer que cerceá-los seria uma equivocada tentativa de tapar, calar, esconder e camuflar a história no nosso tempo e espaço. Imaginem a necessidade de uma nova Comissão da Verdade daqui a uns 20 anos…

Assim entramos em outro conceito, igualmente amplo, delicado e precioso: liberdade de expressão. Aliás, tão grandioso que deveria estar na frente de qualquer questão. O que é pior: a mordaça genérica ou a suposta difamação?

Eficiência e celeridade processual são princípios que devemos reivindicar para garantia dos nossos direitos. Evitar a prática de livros ofensivos e meramente oportunistas através do Poder Judiciário é uma saída muito mais eficaz e coerente com os fundamentos democráticos.

Definitivamente, a questão não é financeira. A ideia de royalties para os biografados ou herdeiros me parece imoral. Falem mal, mas me paguem…(?) é essa a premissa??? Nem tudo pode se resumir ao vil metal!

Com todo o respeito pelas opiniões contrárias, este é o meu posicionamento. Viva a democracia!”

Sábias palavras para encerrar uma discussão que a essa altura do campeonato sequer deveria existir. Disse tudo.