Nota: A coluna Pensamentos Delfonautas é o espaço para o público do DELFOS manifestar suas opiniões e pensamentos sobre os mais variados assuntos. Apesar de os textos passarem pela mesma edição que qualquer texto delfiano, as opiniões apresentadas aqui não precisam necessariamente representar a opinião de ninguém da equipe oficial. Qualquer delfonauta tem total liberdade para usar este espaço para desenvolver sua própria reflexão. Se você quer escrever um ou mais números para essa coluna, basta ler este manual e, se você concordar com os termos e tiver algo interessante a dizer, pode mandar ver. Inclusive, textos fazendo um contraponto a este ou a qualquer outro publicado no site são muito bem-vindos.
As atuais discussões acerca da interpretação do filme Tropa de Elite e do texto de Luciano Huck (publicado no dia 1º de outubro) sobre o roubo do seu Rolex – episódio amplamente debatido na Folha de S. Paulo, que publicou o desabafo do apresentador, com textos de Zeca Baleiro, Ferréz, Reinaldo Azevedo e outros – trazem novamente à tona duas tendências ideológicas distintas: a direitista e a esquerdista. Apesar de o fim da história e da divisão ideológica supracitada ter sido decretado pelos neoliberais mais apressados em prol do supranacionalismo e da globalização – um nome novo para descrever o antigo processo de mundialização do capitalismo que se iniciou na Antigüidade e que perdura até os dias atuais, sempre norteado pela subjugação das economias periféricas pelas principais -, o debate sobre as duas correntes de pensamento mencionadas nunca esteve tão atual. E é justamente a diferença entre esquerda e direita, mais acentuada desde que líderes populares chegaram ao poder na América Latina, continente que está na essência dos episódios destacados.
Há, dessa forma, de se evidenciar e diferenciar os dois lados da moeda. Há aqueles que, apesar de posarem como democratas e defensores das liberdades individuais, são incapazes de discutir problemas sociais sem exalar ódio, preconceito e até fascismo nas suas declarações contra os mais pobres.
Esses são os mesmos que, ao término de Tropa de Elite – um filme que pretende mostrar fielmente a realidade, mas que só a destaca sob a perspectiva de um dos lados envolvidos na guerra do tráfico de drogas, o lado policial – devem ter vibrado e aplaudido as torturas e as execuções sumárias praticadas pelo BOPE, um esquadrão especializado em agir quando o caos nas favelas cariocas já não está mais ao alcance da tropas comuns da Polícia Militar, como se a solução para a pobreza fosse o extermínio dos pobres e como se ódio não alimentasse mais ódio.
São esses os apoiadores do desabafo “umbigóide” e até certo ponto infantil, tamanha a fragilidade de alguns argumentos expostos, do apresentador Luciano Huck (alguém duvida que a Folha de S. Paulo não publicaria esse texto caso ele fosse escrito por uma pessoa fora do circuito midiático?) que dá a entender que ser cidadão para ele é apenas pagar impostos, cuja única contribuição pública e notória para a sociedade brasileira é entorpecê-la e emburrecê-la todos os sábados com um programa que serve como o melhor argumento para defender a democratização dos meios de comunicação e a implantação de uma rede pública de televisão de peso, capaz de abarcar as mais diversas nuances da cultura e da sociedade tupiniquins.
São esses ainda que reverenciam Reinaldo Azevedo, colunista da Veja, aprendiz de Diogo Mainardi (aquele ser monotemático que passa o ano inteiro falando sobre Lula e o PT) e um dos mais destacados porta-vozes da parcela conservadora da classe média nacional, e seu jornalismo sectário e reducionista. Para ele, como ficou demonstrado na sua resposta para o texto do Ferréz escrito para a Folha, a panacéia para a redução da criminalidade é uma fórmula mágica: construir presídios e mais presídios. E, a não ser que se aceite ser chamado de idiota, que é a designação que ele dá para os que discordam do seu ponto de vista, é impossível divergir dessa “irrefutável” tese.
É essa mesma gente que reverencia não só Reinaldo Azevedo e suas teorias “Reinaldocêntricas”, mas também os principais veículos da mídia hegemônica, que, como bem sabe o leitor do DELFOS, adora se proteger no escudo da imparcialidade para tirar onda de honesta. Além disso, ela adora subir no pedestal de formadora de opinião para estabelecer uma relação de distância até professoral com o leitor, que é tratado como um ser inferior para o qual devem se impor opiniões. É só comparar os títulos das publicações da mídia hegemônica com as da mídia alternativa. Enquanto a famigerada Veja e a Istoé preferem o imperativo para realçar a relação de submissão com o leitor, a Caros Amigos prefere se colocar em pé de igualdade com o seu leitor ao tratá-lo como um ser capaz de debater idéias e não apenas de deglutir opiniões impostas pelos (de)formadores de opinião.
Só para o delfonauta ter uma idéia da concorrência desleal entre grande mídia e mídia alternativa, a Veja, uma revista semanal, tem uma tiragem de mais de um milhão de exemplares a cada edição, ao passo que a Caros Amigos, uma revista mensal, não chega aos cinqüenta mil exemplares por edição. É aí, nesse cenário de extrema concentração dos meios de comunicação nas mãos de poucos, que entra a importância da internet, a mais democrática e libertária fonte de informações e debates, e do DELFOS, um site singular justamente por sua transparência, sinceridade e proximidade com o leitor. Graças à internet e a sites alternativos como o DELFOS, o império da mídia hegemônica vem, pouco a pouco, sendo desconstruído. O seu poder de homogeneizar as opiniões (já percebeu que os jornalões e as revistas de maior circulação quase sempre têm pontos de vistas parecidíssimos em assuntos políticos, econômicos e sociais?) e de despolitizar a política para criar unanimidades e evitar discussões também já não é mais o mesmo. Para comprovar isso, basta verificar as sucessivas quedas de vendas e de assinaturas desses veículos que se colocam acima do bem e do mal.
Essa mídia, como está configurada, é um verdadeiro partido político. Ela, de forma tendenciosa, está sempre interferindo decisivamente nos rumos políticos do país, apesar de sempre se declarar imparcial. Quem nunca ouviu falar na famosa manipulação, realizada pela todo-poderosa Rede Globo, do debate para as eleições presidencias de 1989, entre Collor e Lula, veiculada no Jornal Nacional, o jornal da comoção nacional? Não é nem preciso voltar ao passado para constatar essa perniciosa atuação política da mídia tupiniquim. Um dos mais comentados assuntos do momento é a possível reeleição – mecanismo criado por Fernando Henrique Cardoso, um dos queridinhos da grande mídia – pela segunda vez, do presidente Lula. Ainda que o dito-cujo já tenha repetido, reiteradas vezes, que é contra a permanência de um mandatário por muito tempo no poder, a mídia não se cansa de abordar esse assunto numa tentativa rasteira de esvaziar o segundo mandato de um presidente eleito democraticamente e que ainda tem mais de dois anos para governar. É como se a mídia quisesse, forçadamente, forjar uma paralisação no governo Lula ao antecipar um debate eleitoral.
Recentemente, outras duas discussões que dominaram os meios de comunicação servem para ilustrar a virulência da nossa gloriosa mídia. A primeira delas foi a não renovação da concessão da Rádio Caracas de Televisão (RCTV) na Venezuela pelo presidente Hugo Chávez. Não demorou para a grande mídia brasileira, temendo que a moda se espalhasse, dar seus chiliques e qualificar a medida de Chávez como autoritária, como censura e como uma afronta à liberdade de expressão. Bem, não custa lembrar que as concessões televisivas, que expiram a cada 15 anos, são públicas e, como tais, as empresas que se propõem a explorá-las devem seguir certas normas. Caso essas empresas cometam algum deslize, o governo pode, legalmente, não renovar as concessões.
A RCTV, fundada em 15 de Novembro de 1953, apresenta um farto histórico de transgressão às leis venezuelanas. Em 2002, foi uma das principais articuladoras do golpe que tirou Chávez do poder, para o qual foi eleito democraticamente, por alguns instantes, como bem demonstrou o documentário a A Revolução Não Será Televisionada. Em 2004, foi condenada pelo Juizado Superior de Tributos por sonegar aproximadamente um milhão de dólares em impostos. Em Maio de 2006, o Tribunal Superior de Justiça proibiu a transmissão de prostituição e pornografia na RCTV. Ou seja, Chávez não fez nada mais do que fazer valer o que está na Constituição. E ponto.
A outra discussão diz respeito à recente matéria da revista Veja que tentou – eu disse tentou – desmitificar Che Guevara. Em certa passagem da matéria, Diogo Schelp, o jornalista responsável por ela, chega a afirmar que a vida do guerrilheiro transnacional foi um acúmulo de fracassos. Quer dizer que um médico que abandonou sua confortável vida de classe média na Argentina para combater ao lado de um povo que nem conhecia e que obteve êxito nessa empreitada, sendo um dos principais cérebros da Revolução Cubana, acumulou fracassos na sua vida? Quem acumula fracassos sucessivos é a querida Veja, que desde 2002 tenta derrubar Lula e só vê a popularidade do presidente aumentar.
É uma pena que a direita não tenha nenhum ícone atemporal para celebrar. Assim, o máximo que ela pode fazer é tentar – eu disse tentar – desqualificar os ícones da esquerda com argumentos que quase sempre beiram o ódio e o preconceito. Esses argumentos são tão ruins que há poucos dias, Jon Lee Anderson, jornalista da revista estadunidense New Yorker, considerado pela própria Veja como o autor da mais completa biografia de Che, escreveu uma carta para Schelp criticando-o severamente. Entre outras coisas, Anderson diz que Diogo não é um jornalista sério e que jornalismo honesto se faz considerando fontes variadas e perspectivas múltiplas. Precisa falar mais alguma coisa depois do que falou um dos mais respeitados jornalistas de uma das mais respeitadas publicações do mundo? Sim. Por incrível que pareça, ainda há o que criticar. Prossigamos.
É essa mídia viciada e controlada por meia dúzia de famílias (Frias, Mesquita, Marinho e Civita são as principais) que teima em fazer dos seus anseios os de toda a sociedade, que confunde opinião pública com opinião publicada e que, ao contrário do que apregoa, não retrata a realidade, mas tão somente os assuntos repercutidos na própria mídia.
É ela que, apesar de ter apoiado o golpe militar de 1964 e de ter se fortalecido nesse momento histórico – alguém desconhece as promíscuas relações da TV Globo com os militares? – tem a desfaçatez de julgar o que é e o que não é democrático. Lembra-se da tentativa de criação, por parte do governo Lula, do Conselho Federal de Jornalismo para fiscalizar a profissão? Esses novos arautos das liberdades individuais (onde eles estavam na época da ditadura?) tacharam, como sempre, o tal projeto de autoritário e antidemocrático. Ora, não existe o Conselho Federal de Medicina e tantos outros para fiscalizar e punir os maus profissionais? Por que os jornalistas picaretas também não podem ser punidos? É correto e aceitável fazer jabá e perder a independência, um dos pilares básicos do jornalismo? É correto e aceitável que grande parcela dos jornalistas seja sabuja, expressando e divulgando somente aquilo que está de acordo com as ideologias dos seus chefes?
O pior de tudo isso é essa mídia fazer tudo isso e ainda sobreviver, ser aplaudida e ser capaz de influenciar uma classe média que se diz esclarecida. É esse pessoal, apoiado nos porta-vozes que abraçam suas causas, que representa a direita brasileira. Faço minhas as palavras de Paulo Henrique Amorim, jornalista da Record: “Em nenhuma democracia séria do mundo, jornais conservadores, de baixa qualidade técnica e até sensacionalistas, e uma única rede de televisão ainda têm a importância que têm no Brasil”. Assim, mesmo que essa mídia esteja em decadência, não devemos subestimar sua capilaridade e seu poder de influência. Como bem definiu o emérito linguista estadunidense, Noam Chomsky, a mídia está para a democracia assim como o porrete está para a ditadura. Dessa forma, a denúncia das manipulações dessa mídia-partido deve ser feita freqüentemente por todos aqueles que acreditam na liberdade de imprensa – para os que sabem exercê-la – e não na liberdade de empresa, que é o que está em vigência nos grandes meios de comunicação.
Há, dessa maneira, os que não aplaudem essa mídia e que pensam de forma diferente. Existe quem discorde da simplória avaliação do senhor Reinaldo Azevedo que ataca exclusivamente as conseqüências da violência. Para esses, que nadam contra a maré da mídia hegemônica justamente por defender uma mídia mais plural e abrangente, a criminalidade nas classes pobres é fruto, principalmente, do cenário sócio-econômico em que a pessoa está inserida e não apenas uma questão de desvio moral.
São esses que ainda acreditam na construção de novas escolas públicas e na melhoria das já existentes como a maneira mais eficiente e duradoura de combater a criminalidade no seu berço, porque o objetivo primário deve ser impedir a chegada dos jovens aos presídios, oferecendo-lhes outras oportunidades de ascensão econômica que não sejam o crime. Construir presídios e mais presídios, como propõe Reinaldo Azevedo, é uma prática extremamente dispendiosa e inócua se levarmos em conta a atual situação do sistema presidiário brasileiro. As prisões, muito mais do que um caminho para a reinserção social, já se tornaram verdadeiras faculdades do crime.
Esses são os incapazes de aceitar e de aprovar qualquer tipo de tortura e de outras afrontas aos direitos humanos. Esses são os que apóiam a atual onda antineoliberal que se instalou na América Latina e os governos que daí ascenderam. Sim, ao contrário do que difundem os principais meios de comunicação, colocando esses governos na vala comum do populismo (distribuir renda, fazer justiça social, adotar políticas nacionalizantes e estatizantes e enfrentar o imperialismo estadunidense é fazer populismo?), é essa gente que admira e apóia Hugo Chávez, Evo Morales, Rafael Correa, Lula e outros presidentes comprometidos com o desenvolvimento econômico sustentável seguido de uma distribuição de renda que fortaleça o mercado consumidor interno e que faça justiça aos que sempre estiveram à margem do processo histórico, ainda que os governos mencionados apresentem contradições aqui e acolá.
São esses que representam a esquerda brasileira. São esses que eu endosso. Porque a classe média já teve seu período de entusiasmo econômico nos anos 50, com a política desenvolvimentista de JK, e nos anos 70, com a ditadura militar, época em que, apesar de o país crescer dois dígitos por ano, a renda se concentrou ainda mais nas mãos de poucos. Os militares fermentaram o bolo, mas só deixaram as migalhas para os pobres. Agora é a hora de os mais pobres degustarem o recheio desse bolo para que suas vidas sejam mais dignas e menos sofridas.
A luta de classes nunca esteve tão atual. E agora, como disse o atual ministro da Comunicação Social, Franklin Martins, a era da pedra no lago acabou. Para desespero dos (de)formadores de opinião e da vertente conservadora da classe média, grande parte dos mais pobres já não vota influenciada pelo que diz a grande mídia e os seus patrões. Quer prova maior desse fato do que as últimas eleições presidenciais?