Todo mundo com o mínimo de conhecimento sobre quadrinhos sabe: o Superman é o maior super-herói fantasiado de todos os tempos. Um dos maiores ícones da cultura pop estadunidense, reconhecido em todo o mundo, mesmo por aqueles que nunca leram um gibi na vida ou sequer viram uma série ou filme do personagem. Isso atesta a força do Azulão no imaginário popular como uma das poucas figuras que são eternas.
SUPER-INTRODUÇÃO
Quase todo mundo também sabe que o Homem de Aço foi criado pela dupla Jerry Siegel (roteiros) e Joe Shuster (desenhos). Seus nomes estão sempre creditados nos gibis, séries, filmes, games e outros produtos licenciados do personagem. Pode olhar, está lá.
Nem todo mundo sabe, no entanto, que nem sempre foi assim. E mais, que Siegel e Shuster venderam os direitos de propriedade do personagem à National Allied Publications (nome da DC na época) por uma bagatela e acabaram morrendo na pobreza, enquanto sua mais famosa criação provava-se uma mina de ouro que rendia milhões e milhões de verdinhas para a editora.
Qual é o caso? Ingenuidade e falta de visão da dupla criadora? Pura maldade capitalista selvagem da inescrupulosa editora corporativa? Um pouco de tudo isso e mais? É isso que vou esmiuçar nesta matéria, onde apresentarei os pormenores dessa história e das pendengas jurídicas que se seguiram e se arrastaram até este ano, envolvendo os herdeiros dos criadores. Então convoque seu advogado e adentremos ao tribunal!
A GÊNESE DO PERSONAGEM
Jerry Siegel e Joe Shuster eram dois meninos judeus pobres de Cleveland, que haviam acabado de passar pela Grande Depressão (ocasionada pela quebra da Bolsa de 1929) e eram os típicos estereótipos nerds. Tímidos e vítimas de bullying, além de fãs de ficção científica e literatura pulp (livros ou revistas baratos vendidos em bancas com histórias de cunho B).
Em 1933, a dupla criou a história The Reign of the Super-Man (O Reino do Super-Homem) onde o personagem era um vilão telepata e careca (muito similar a um tal de Lex Luthor) que escraviza a humanidade. Essa curta HQ foi publicada no fanzine de ficção científica Science Fiction #3 sem nenhum sucesso.
Eis que a ideia do Superman mais parecido com o que conhecemos hoje vem a Jerry Siegel num sonho um ano depois. Ele escreve a história, conta para seu parceiro Joe Shuster, que imediatamente desenha o famoso uniforme azul e vermelho do Homem de Aço.
Convencidos de que o personagem era bom demais para ficar restringido a um fanzine, eles fizeram o que qualquer um faria nessa situação: procuraram as grandes editoras de tiras de jornais, visto que o mercado de quadrinhos ainda engatinhava na época. E durante anos foram rejeitados por todas elas. Os argumentos variavam. Algumas achavam a história ridícula e absurda, outras achavam o personagem muito besta (lembre-se, estamos falando de uma época sem nenhuma cultura de HQs). É tipo a gravadora que rejeitou os Beatles, falta de visão que depois faz você ficar chutando a própria testa eternamente.
Nesses anos de sucessivas rejeições, o mercado de gibis começou a se desenvolver e se popularizar. As coisas pareciam mais positivas para a dupla, que arranjou trabalho na DC Comics (à época conhecida como National), numa revistinha aí chamada Detective Comics.
NEGÓCIO DA CHINA (PARA A EDITORA)
Quando a dupla ficou sabendo que o editor da revista, Vin Sullivan, estava procurando uma série de ação para servir de carro-chefe para um novo título chamado Action Comics, tiraram o personagem da gaveta e o apresentaram ao editor, que adorou e logo lhes fez uma proposta indecente: comprar todos os direitos do herói, para sempre, em troca de 130 dólares e um contrato para que a dupla produzisse material do herói para a nova revista.
Nesse momento, o delfonauta dá risada, achando um absurdo que alguém venderia o personagem mais reconhecido dos quadrinhos em troca de uma grana que hoje mal dá para comprar um iPod Touch. Paremos para pensar um minuto: eles estavam há bons anos tentando vender o personagem sem sucesso. Riram inúmeras vezes de suas caras. Provavelmente, àquela altura, eles já não acreditavam tanto assim no potencial do Último Filho de Krypton quanto no início. Eles continuavam duros e um sujeito finalmente aparece e, sabe-se lá por qual motivo, demonstra interesse em sua criação. É óbvio que eles iam vender.
Vale lembrar também que, na época, 130 doletas não era dinheiro da merenda, mas uma soma considerável. Na pesquisa para essa matéria, encontrei um conversor monetário. Segundo sua estimativa, prevista em juros, cálculos matemáticos e muito provavelmente no puro chutômetro dessas ferramentas de internet, em 2012 essa grana equivaleria entre ainda baratos dois mil e mais atraentes vinte mil Tio Sams. No caso da opção mais otimista, dava para comprar um carro, dar entrada num apê bacana, fazer uma balada nervosa e o que sobrasse ainda dava pra comer contrafilé ao invés de colchão duro.
Vendo provavelmente mais dinheiro do que jamais viram até então, a dupla concordou e assinou o contrato. Afinal, teriam um bom pé de meia, além da segurança de um emprego fixo. Devem ter pensado que, qualquer coisa, poderiam facilmente criar outro personagem igualmente bom, o que, nem preciso dizer, nunca aconteceu. É só responder à pergunta: você lembra de alguma outra criação de Siegel e Shuster? Pois é.
O Superman, propriedade intelectual, e tudo que isso acarretava, passou a ser então da editora. A dupla escreveria e desenharia suas histórias como funcionários remunerados e só. Eis então que o personagem estoura da noite para o dia e vira uma febre nacional (e posteriormente mundial). Mais: vira a galinha dos ovos de ouro da editora e o arquétipo de todo um novo gênero: o dos super-heróis.
As primeiras edições de Action Comics esgotaram. Não demorou para o personagem ganhar um programa de rádio, desenho animado, tiras de jornal e um seriado de cinema. A editora faturou os tubos.
CHORANDO A KRYPTONITA DERRAMADA
Siegel e Shuster se deram conta de que o homem das cuecas por cima das calças não valia míseros 130 dólares. Valia 130 milhões. Mais até. Valia uma aposentadoria precoce e vida de nababos para eles e todos os seus futuros herdeiros. E eles haviam optado pelo contrafilé. Ingenuidade nos negócios, falta de visão e um pouco de “atitude Kramer”, de sempre aceitar a primeira proposta oferecida, provaram-se um erro fatal. A National ria à toa enquanto acendia charutos com notas de cem.
Legalmente falando, nenhuma sacanagem foi feita. Eles assinaram o contrato de comum acordo. Mesmo assim, a dupla processou diversas vezes a DC querendo uma fatia maior do bolo (que eticamente, eles de fato mereciam). A DC lhes oferecia acordos em generosas somas de dinheiro, mas que nem chegavam perto do que eles acreditavam ser justo. Ganhavam dezenas de milhares de dólares por um personagem que lucrava milhões.
Joe Shuster eventualmente deixou a DC e foi trabalhar em outras editoras, até que sua visão começou a falhar, forçando-o a se aposentar precocemente do meio. Morreu quase cego numa casa de repouso. Siegel foi lutar na 2ª Guerra Mundial e, ao retornar, voltou a trabalhar na editora com o personagem que criara. E isso deve ter sido difícil. Imagine escrever o próprio personagem que você inventou, mas que não era mais seu, ganhando uma grana apenas decente enquanto o patrão enchia as burras com a sua criação! Para mim, era o jeito dele se torturar pela besteira de ter vendido barato o personagem.
Entre idas e vindas, ele escreveu o personagem por 20 anos. A condição imposta pela DC para que ele continuasse trabalhando lá, e isso sim foi uma grande sacanagem sem sentido, era que ele negasse seu papel na criação do Super-Homem. Quer dizer que, além de não ver a cor do dinheiro, o pobre diabo não podia nem ter o merecido reconhecimento simbólico? Dureza. Quando não estava trabalhando com o Super-Homem, seu hobby era se juntar novamente a Joe e processar a editora atrás de sua fatia justa dos lucros. Perderam todas as vezes. Contrato assinado de comum acordo, lembra?
A dupla foi aos tribunais pela primeira vez em 1947, exigindo cinco milhões de dólares e o copyright do personagem. A grande motivação para isso foi que os cheques de royalties que recebiam estavam diminuindo e eles suspeitavam de fraude do contador. Perderam, mas conseguiram uma pequena vitória: ganharam os direitos autorais do Superboy (a versão adolescente do Superman), que eles venderam para a DC por US$ 94.000,00. Ainda segundo o mesmo conversor monetário, isso daria, em 2012, cerca de pouco mais de 986.000 obamas. E eu me pergunto: eles não aprenderam nada da primeira vez?
Claro, é muito mais grana do que eles conseguiram com o Superman, mas não seria melhor não vender, e sim alugar o direito de uso depois de sofrerem uma primeira experiência horrível com a editora? E mais, sendo essa soma uma boa quantia para a época, o que aconteceu com essa bufunfa? Eles conseguiram mesmo gastar tudo isso para chegar ao fim da vida com sérias dificuldades financeiras? Ou será que torraram tudo com advogados tentando reaver o prêmio principal? Obviamente, o destino desse dinheiro não é revelado em lugar nenhum, mas essa última hipótese me parece bem plausível.
Em 1965, a dupla tenta novamente reaver o copyright de sua criação máxima, o que faz com que Siegel seja demitido da editora. Perderam várias instâncias, apelações e outros termos do juridiquês que você queira colocar aqui. O caso se arrasta até ser finalmente encerrado em 1974 com a derrota derradeira.
SUPERMIGALHAS
No fim dos anos 60, Siegel e Shuster haviam caído no ostracismo. Sem trabalho (Shuster já não podia mais desenhar devido à sua visão deteriorada), estavam em estado de pobreza extrema (para os padrões dos EUA, só para deixar claro). Shuster acabou virando entregador, e segundo o roteirista Jerry Robinson (famoso pelo seu trabalho com o Batman), um dia, no que deve ter sido uma baita situação constrangedora, Joe acabou entregando uma encomenda na sede da editora.
Em 1973, surgiu a notícia de que seria feito um filme do Superman (aquele mesmo, que seria dirigido por Richard Donner e estrelado por Christopher Reeve). A editora receberia uma bolada dos produtores. Jerry Siegel, velho, falido e ainda mais ressentido, tentou então uma estratégia diferente.
Veio a público e botou a boca no trombone para qualquer veículo de mídia que o quisesse ouvir, contando como a DC sacaneou a ele e seu colega Joe Shuster. Nem é preciso dizer que a opinião pública ficou do lado deles, além de roteiristas e desenhistas de quadrinhos, como o já citado Robinson e Neal Addams, que à época começavam a se organizar para exigir royalties decentes e reconhecimento justo de suas obras por parte das editoras. Temendo a propaganda negativa que poderia prejudicar o dispendioso filme, a DC, pra tirar o dela da reta, chegou a um acordo financeiro com a dupla no dia 24 de dezembro de 1975, um verdadeiro presente de Natal. Olha o sarcasmo!
Segundo os termos do acordo, cada um receberia uma pensão vitalícia de cerca de US$ 25.000,00 por ano (isso dá pouco mais de US$ 2.000,00 por mês), mais bônus e benefícios médicos e finalmente com a dupla sendo devidamente creditada como criadora do personagem nos gibis, filmes, séries e etc. Fora isso, a empresa também se comprometia a pagar essa mesma soma como provisão a seus herdeiros após o falecimento de Jerry e Joe. A pegadinha desse acordo (claro que tem que ter uma) é que, se aceitassem, ambos se comprometiam a nunca mais processar a empresa pelos direitos do personagem. Eles concordaram.
Joe Shuster morreu em 30 de julho de 1992 e Jerry Siegel faleceu em 28 de janeiro de 1996. E com isso a história acabou, ambos morreram com o rabinho entre as pernas ganhando uma merreca da toda-poderosa DC Comics, que continua rindo à toa com as centenas de milhões que o escoteiro azul rende anualmente, correto?
Bom, não exatamente. Siegel e Shuster se foram, mas a luta continuou, agora envolvendo seus herdeiros. Hora do segundo round.
HERDEIROS NO RINGUE
Cara, a lei de direitos autorais dos EUA é enrolada e, francamente, me dá dor de cabeça só de tentar entender, então vou tentar sintetizar os principais pontos da peleja entre os herdeiros de Jerry Siegel e Joe Shuster e a Warner (dona da DC).
Em 1997, houve uma mudança na lei de direitos autorais do país. Isso abriu uma brecha para que os herdeiros pudessem tentar reaver o copyright do personagem. E o que um bom estadunidense faz numa situação dessas? Processo neles!
Jean Peavy, irmã de Joe Shuster, teve seu pedido para reaver os direitos sobre o personagem negados em 2012. Em 1992, ela assinou um documento pedindo que a empresa bancasse as dívidas do irmão morto. Em troca, ela aceitou que não tentaria reaver os direitos sobre o Supinho. Ela apelou agora em 2013, mas o caso é difícil, para não dizer impossível. Esse pessoal que assina qualquer coisa, viu?
Em outra frente, Joanne Siegel, esposa de Jerry, e Laura Siegel Larson, filha, também entraram na briga pelos direitos. A Warner alega que eles fizeram um acordo em 1999 onde elas ganhariam uma porcentagem dos lucros do personagem. Contudo, elas desistiram de tal acordo e resolveram partir pro pau.
Joanne morreu em 2011, mas a filha e seu advogado figurão continuaram firmes e fortes na peleja. Os representantes de Siegel já obtiveram algumas vitórias, como direito a alguns aspectos da mitologia do Super-Homem e ao copyright do Superboy (leitores devem se lembrar da época da Crise Infinita, quando o Superboy Primordial misteriosamente passou a ser chamado de Superman Primordial. Foi uma gambiarra da DC pra não ter que pagar os direitos do nome do personagem).
A disputa continuou e se estendeu pelo primeiro semestre de 2013, ganhando mais evidência com a estreia do novo longa do Homem de Aço. Na minha modesta opinião, ambos os lados marcaram bobeira, quem contratasse o Matt Murdock levava o Superomão pra casa!
Agora, voltando a falar sério. Quando se pensava que a pendenga se arrastaria por mais alguns bons anos, eis que, abruptamente ela finalmente parece ter chegado ao fim, ao menos no caso do processo da família de Jerry Siegel.
Em março, o juiz do caso emitiu nova ordem, garantindo à DC Comics o domínio sobre os “super-direitos” do personagem. A decisão a favor da editora ocorreu porque houve uma troca de cartas entre a família Siegel e a Warner (dona da DC, vale relembrar) em 2001, onde eram estipuladas compensações financeiras para a família em troca do uso do personagem. E isso representaria uma ligação contratual. Ou seja, a mesma história de sempre.
Como desgraça pouca é bobagem, a Warner também ganhou de volta o direito de fazer uso do Superboy, visto que o mesmo juiz que deu a vitória à DC no caso do Superman entendeu que o tal acordo feito entre Warner e a família Shuster em 2001, através de cartas, valia também para o Superboy. Que coisa, não?
Para concluir, é lamentável que a dupla criadora que tanto rendeu para a empresa tenha amargado um segundo sequer de dificuldades financeiras quando criaram algo que vale mais dinheiro do que qualquer um consiga gastar. Não se trata de contratos ou aspectos jurídicos. Trata-se de moral, ética, fazer o que é certo, algo que um certo personagem muito famoso das HQs prega. E que a editora que o publica nem sempre seguiu em sua história. Um verdadeiro imbróglio que nem mesmo o maior herói de todos os tempos foi capaz de resolver.
SUPER-CURIOSIDADE:
– E não é que o fatídico cheque de 130 águias carecas (o que comprou os direitos do Superman) foi a leilão em 2012, sendo arrematado por 160 mil Hillary Clintons? Super-ironia do destino!
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