Lá no final dos anos 90 e início dos 2000, eu tinha muita dificuldade em diferenciar o Matt Damon do Ben Affleck. Eles faziam um monte de filmes juntos, e ambos têm cara de galã estadunidense genérico. Só depois disso, quando eles finalmente seguiram caminhos separados, eu aprendi a diferenciá-los. Nesta crítica O Último Duelo vamos falar do primeiro filme em anos a ter os dois no elenco. E veja só, repetindo a parceria de Gênio Indomável, ambos assinam o roteiro (ao lado de Nicole Holofcener). Ah, e a direção é do Ridley Scott.
CRÍTICA O ÚLTIMO DUELO
O Último Duelo – título genérico pra burro, né? – começa, veja só, com um trecho de um duelo. Não há contexto. É só o Matt Damon e o Adam Driver colocando suas armaduras e iniciando uma luta. Corte. As próximas duas horas e meia são o contexto.
Tudo gira em torno da amizade dos dois, destruída por uma corrente de eventos, tanto graves quanto banais. No início a coisa até incomoda um pouco. Afinal, os problemas começam porque o Jean de Carrouges (Matt Damon), após receber quilômetros e mais quilômetros de terra linda e fértil, queria mais um pouquinho, e esse pouquinho foi dado para o Jacques LeGris (Adam Driver).
É o tipo de história de pessoas privilegiadas brigando para ter mais um pouquinho de privilégio, tipo o Bob Kottick exigindo ganhar dois milhões de dólares extras depois de faturar 50 milhões e demitir metade da Activision. Esse tipo de história, que certamente tem um espaço na cultura pop, não é estranha ao Ridley Scott, mas não é o tipo de coisa que me envolve muito. Mas daí o troço fica pessoal!
AGORA É PESSOAL!
O bicho realmente pega quando Marguerite, a esposa do Carrouges (Jodie Comer, de Free Guy), acusa LeGris de tê-la estuprado. É a partir daí que o filme mostra a que veio. O longa tem três metades. A primeira metade mostra o ponto de vista do marido. A segunda, do acusado. Por fim, o filme termina na extremamente pesada versão da vítima.
Acontece que, no momento da acusação, a amizade dos dois protagonistas já tinha ido para as cucuias. Carrouges processou LeGris para tentar recuperar as terras que nunca foram dele. Só que LeGris tinha amigos em lugares altos (Ben Affleck). Quando LeGris nega a acusação, dizendo que não houve estupro, o caso logo é empurrado para baixo dos panos. Carrouges fica sem opção para restaurar sua honra a não ser invocar uma lei ultrapassada: um duelo até a morte. E que Deus decida quem está falando a verdade.
CRÍTICA O ÚLTIMO DUELO: ERA O ÚLTIMO PORQUE A LEI ESTAVA EM DESUSO
Apesar de tudo girar em torno do duelo em si, este é apenas um pequeno pedaço do filme. Pode parecer, mas O Último Duelo não é um épico, nem um filme de ação. É, sim, um drama pesado. Especialmente em sua terceira metade.
Podemos argumentar aqui quão necessária realmente é sua formulinha de mostrar “a verdade de acordo com fulano”. Na prática, boa parte do filme mostra a reação dos personagens às situações, sem necessariamente contradizer os relatos do outro. Algo que poderia ser facilmente intercalado na montagem, para contar a história de forma linear, o que sempre é preferível.
São algumas cenas bem pontuais que mostram contradições. Mesmo assim, as diferenças são pequenas. A própria cena do estupro tem como principal diferença em quem a câmera está focando durante o ato, não a ação em si.
É PRECISO ACREDITAR NA VÍTIMA
Apesar de o filme mostrar pontos de vista diferentes, ele não é apolítico. Pelo contrário, o ponto dele fica bem claro bem rápido: a palavra da vítima tem valor e devemos acreditar nela. É isso que torna a terceira metade tão dura de assistir. Nela vemos a reação da nobreza à acusação. É aquela história, LeGris é um sujeito de status. Importante para a sociedade. Valorizado pelos colegas e desejado pelas mulheres. A palavra dele vale muito.
O que realmente incomoda é quão atual parece ser o filme, mesmo se passando no século XIV e hoje estarmos no século XXI. Argumentos do tipo “estupro não engravida, pois a mulher precisa ter prazer para engravidar” são comuns nessa terceira metade. E eu tenho certeza que tem vários idiotas hoje em dia que acreditam nisso. Em uma sociedade cheia de ódio, terraplanistas e anti-vacinas, esse tipo de opinião mal-informada é até mais fácil de aceitar. Mas não menos doloroso.
Em outro ponto, um personagem explica que “estupro não é um crime contra a mulher, mas contra a propriedade de um homem”. E, claro, hoje em dia a lei não mais reflete isso, mas com certeza tem muito babaca que se a esposa for estuprada vai se preocupar antes com a própria honra do que com o bem-estar da patroa.
Lembra no How I Met Your Mother, como o Barney interpretou Karate Kid errado, achando que os caras do Cobra Kai eram os heróis e o Daniel-san era o vilão? Pois eu imagino que esse tipo de interpretação vai rolar a rodo entre os apoiadores do nosso presidente que assistirem a O Último Duelo.
CRÍTICA O ÚLTIMO DUELO E OS APOIADORES DO SEU JAIR
Inclusive, o personagem do Ben Affleck é exatamente como eu imagino o Bolsonaro agindo em privado de acordo com sua persona pública. Aliás, mesmo no público, já que o Pierre de Affleck é um homem de status que protege seus amigos da consequência de seus atos. Ou seja, ele é extremamente odioso.
Diz muito como eu mesmo estou de saco cheio de pessoas assim o fato de que até o estuprador de Adam Driver parece mais carismático do que o suserano interpretado por Affleck. Por outro lado, isso bate com o que muitas vítimas falam, de que homens abusivos são carismáticos. E mesmo quando é mostrado como o vilão, Adam Driver faz uma boa representação em não parecer de todo mau.
E isso mesmo tendo uma cena, na parte do ponto de vista dele, em que ele fala que “a mulher resistiu, pois é uma dama, mas não foi contra a vontade dela”. Eu mesmo já conversei com pessoas ao longo da minha vida com esse tipo de atitude. Que acham que a mulher dizer não é charminho. E é curioso, porque se tem uma coisa que é fácil de entender, e bem preto no branco, é que “não é não”. Se a mulher está esperneando e soltando frases como “por favor, não faça isso”, não precisa de muita inteligência para sacar que ela não está a fim.
Eu sinceramente não esperava gostar de O Último Duelo. Não sou especialmente fã do Ridley Scott, e o filme é longo demais. Porém, me envolveu como poucos. Demorou para engrenar, mas apesar de ter pra lá de duas horas e meia, quando engrenou, eu não vi mais o tempo passar. Mas é um filme pesado, que incomoda muito. E é feito para incomodar, desde que você esteja com o coração no lugar certo.