David Bowie – O camaleão da música – Parte 1

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O ano de 2016 começou de forma triste para qualquer apreciador de Rock, Pop ou simplesmente boa música no geral com a notícia do falecimento de David Bowie dois dias após completar 69 anos e lançar seu último e genial disco de estúdio, Blackstar. A notícia de que Bowie morrera de um câncer com o qual estava batalhando nos últimos 18 meses pegou a todos de surpresa, especialmente numa época em que os grandes artistas têm suas vidas privadas completamente devassadas pela mídia e muitas vezes por eles próprios.

Contudo, Bowie nunca foi como os outros, traçando sempre seu próprio caminho e apontando tendências. Em suma, fazendo o que lhe desse na telha. Na maioria das vezes, essa atitude imprevisível e de constante inquietude resultava em excelentes trabalhos e na imagem de um artista em permanente transformação, que se recusava a se acomodar.

Acabou se tornando um dos artistas mais influentes da história da música, influenciando incontáveis colegas de profissão. Cantor, compositor, multi-instrumentista, produtor, ator, pintor, o cara fez de tudo. Mas de tudo mesmo. Lançou seus próprios títulos na bolsa de valores, os Bowie Bonds, teve seu próprio provedor de internet e até cartão de crédito!

Dono de uma voz ímpar, capaz de ir de um agudo dramático a um grave elegante, transitava com desenvoltura pelos mais diversos gêneros, estava sempre antenado com as principais novidades musicais e não se furtava a fazer uma boa parceria musical. As mais famosas sendo com o Queen (Under Pressure) e Mick Jagger (Dancing in the Street). Esta, segundo a lenda, foi além da música, já que ambos teriam sido flagrados na cama pela própria mulher de Jagger.

Bowie também usou de sua fama e influência para resgatar seus ídolos esquecidos e colocar suas carreiras nos eixos. Foi no papel de produtor que comandou trabalhos seminais dos chapas Lou Reed (Transfomer, 1972) e Iggy Pop The Idiot e Lust for Life, ambos de 1977). Com Pop, fez até mais. Chegou a sair em turnê com ele como tecladista de apoio de sua banda.

E o mais importante: presenteou o mundo com uma quantidade impressionante de canções incríveis, com uma sequência de grandes discos impressionante. Por essas e outras, não à toa ele merece figurar no panteão delfiano dos Tremendões, uma homenagem para lá de digna a este personagem tão ímpar do mundo da música.

EU SOU UM GNOMO RISONHO E VOCÊ NÃO ME PEGA

Nascido David Robert Jones na região sul de Londres, desde pequeno mostrou interesse pela música e aptidão pelas artes em geral. Além da música, estudou artes dramáticas, mímica e design. Também chegou a trabalhar por um curto período numa agência de publicidade, experiência que o ajudaria a manipular sua imagem pública diante da mídia como poucos.

Foi em 1963 que começou sua carreira profissional de músico, ainda assinando com seu sobrenome verdadeiro. Passou por algumas bandas de Rock, Pop e R&B, mas nenhuma delas fez sucesso, embora tenham lançado singles e discos que podem ser encontrados pela internet. Insatisfeito em dividir os holofotes com outros, optou por se lançar em carreira solo.

Trocou o sobrenome por Bowie (um tipo de faca) para evitar ser confundido com o mais famoso à época Davy Jones dos Monkees (a suposta resposta estadunidense aos Beatles). Daí surgiu a lenda de que tinha um olho de cada cor porque havia levado uma facada numa briga de gangues. Na realidade, seus olhos são da mesma cor, contudo passam a impressão de serem de tonalidades diferentes porque um deles ficou com a pupila permanentemente dilatada após levar um soco de um amigo em uma briga por causa de mulher na adolescência. Mas o visual exótico certamente contribuiu para sua aura de sujeito esquisito, quase de outro planeta.

Bowie lançou seu primeiro disco, homônimo, em 1967, e ele não poderia estar mais longe de tudo que o artista viria a ser nos anos seguintes. Optando por um Pop inglês meio teatralizado típico da época, nada ali sugere o que ele se tornaria no futuro. De quebra, ainda possui uma das músicas mais ridículas de seu catálogo, The Laughing Gnome. Não à toa, o álbum sempre foi meio renegado pelo músico como um erro e muita gente sequer sabe de sua existência.

CONTROLE DE SOLO PARA MAJOR TOM

Em 1969, com seu segundo disco, novamente batizado apenas com seu nome, conseguiria seu primeiro grande hit e uma das melhores canções Pop de todos os tempos. Space Oddity, influenciada por uma sessão do filme 2001: Uma Odisseia no Espaço, contava a história do astronauta Major Tom (o personagem retornaria anos depois na música Ashes to Ashes como um viciado) perdido pelo espaço. A BBC usou a canção como trilha para a chegada do homem à Lua e ela se tornou um sucesso tão grande que o disco foi posteriormente rebatizado com o nome da canção.

No entanto, nem este álbum, nem seu sucessor, The Man Who Sold the World (1970) (famoso pela capa onde o cantor, de cabelos compridos e usando um vestido, está deitado num divã) conseguiram gerar outros singles de sucesso e, nessa época, onde o artista explorava uma sonoridade essencialmente Folk com toques de psicodelia, ele ficou perigosamente próximo de ser taxado como one hit wonder, artista de um sucesso só.

Hoje a canção The Man Who Sold the World, no entanto, é bastante conhecida graças ao Nirvana, que fez uma cover bastante honesta em seu inesquecível Acústico, resgatando uma das grandes músicas perdidas de Bowie.

ZIGGY TOCAVA GUITARRA

A falta de músicas de sucesso do cantor acabou com o lançamento do disco Hunky Dory em 1971. Com um Rock mais básico e direto, nele havia “apenas” Changes, Oh! You Pretty Things, Life on Mars? (um de seus melhores vocais) e a trinca de homenagens a seus ídolos Andy Warhol, Song for Bob Dylan e Queen Bitch (esta para Lou Reed).

Também foi o primeiro de uma sequência impressionante de álbuns que Bowie lançaria em sequência até 1983, constituindo seu período de maior criatividade e qualidade incomparáveis. Afinal, quantos artistas você conhece que lançaram nada menos que 11 discos de material inédito essenciais em sequência?

Em 1972, ele lançou seu maior clássico e aquele que todo fã de Rock deveria ouvir pelo menos uma vez. The Rise and Fall of Ziggy Stardust and the Spiders from Mars, um álbum conceitual sobre um alienígena que vem à Terra avisar a humanidade de que o planeta tem apenas mais cinco anos de vida e acaba se tornando um astro do Rock.

Para este disco, Bowie criou uma persona (algo que voltaria a fazer mais algumas vezes posteriormente), brincando com a própria imagem e conceito do rockstar. Ele não era mais David Bowie, mas o próprio alienígena Ziggy Stardust. Adotou figurinos próprios (o que o tornou também figura muito influente no mundo da moda a partir desse ponto) e matou o personagem ao final da turnê do álbum num dos shows de Rock mais famosos da história (muita gente acreditou que era o próprio Bowie que estaria se aposentando).

Musicalmente, o disco é cheio de clássicos (Five Years, Moonage Daydream – presente na trilha de Guardiões da Galáxia -, Starman, It Ain’t Easy, Hang on to Yourself, Sufragette City, Ziggy Stardust e Rock n’ Roll Suicide). O visual andrógino adotado por ele e sua banda, com plumas, paetês e muita maquiagem, deu a largada no Glam Rock de bandas como o T. Rex do amigo e rival Marc Bolan e influenciou grupos posteriores, como o Placebo, já nos anos 1990 (certa vez Bowie se referiu ao vocalista Brian Molko como a filha que ele nunca teve).

Bowie criaria outro personagem no disco seguinte, Aladdin Sane, de 1973, uma boa sequência para Ziggy Stardust e uma das capas mais icônicas de todos os tempos, com o famoso raio pintado no rosto do cantor, o que gera tantas camisetas quanto aquelas com o logo dos Ramones. No mesmo ano, lançaria também o álbum de covers Pin Ups, só com versões de seus artistas preferidos dos anos 60, como The Who (I Can’t Explain) e Pink Floyd (See Emily Play).

Em 1974, soltaria mais um projeto ambicioso. O disco Diamond Dogs originalmente seria um novo álbum conceitual, dessa vez inspirado no livro de George Orwell, 1984. Contudo, a viúva do escritor não liberou os direitos e Bowie teve de mudar a história para não ser processado. Contudo, canções que ele já havia escrito com o romance de Orwell como fonte, como 1984 e Big Brother permaneceram no tracklist. O álbum também marca a despedida do artista de sua faceta Glam, de cabelos alaranjados e visual andrógino.

NÃO SÃO OS EFEITOS COLATERAIS DA COCAÍNA

Em 1975, operou uma de suas maiores mudanças de direcionamento, que surpreendeu a seus fãs de longa data. Saía de cena o roqueiro Glam de visual feminino e guitarras rascantes e surgia o soulman de cabelos platinados e bem penteados, em ternos bem cortados. Com o lançamento do disco Young Americans, o cantor fazia jus ao apelido de Camaleão que o acompanharia até o fim da vida.

Influenciado pelo Soul e R&B estadunidenses, Bowie adotou o estilo no disco onde a faixa-título e Fame, escrita em parceria com John Lennon, fizeram grande sucesso e aproximaram o cantor do público apreciador da música Pop. Também nessa época ele se mudou de Londres para Los Angeles, o que piorou muito seu vício em cocaína, adquirido à época de Ziggy Stardust. Bowie consumia montanhas da droga, o que o deixava num estado paranóico. Sem comer (ele tinha quase de ser alimentado à força por sua equipe) e dormir, passava as noites escrevendo e compondo e ficou com uma silhueta magérrima e macilenta.

No auge do vício, lançou o disco Station to Station (1976), o qual não foi um campeão de vendas, mas é um de seus trabalhos mais bem avaliados pela crítica. A sonoridade ainda é Soul, mas devido à forte influência da cocaína, ele tem uma pegada mais dark, sombria e experimental.

Foi aqui também que Bowie estreou mais um de seus alter egos, o Thin White Duke. Contudo, este não era tão bacana quanto seus antecessores. Simpatizante do fascismo, deu algumas declarações polêmicas à época que não foram bem aceitas por seus fãs e pela imprensa. O artista culpou as drogas pelas declarações infelizes do Duke e decidiu mudar de ares para tentar se limpar do vício.

NÓS PODEMOS SER HERÓIS

David trocou Los Angeles por Berlim para se livrar das drogas e, no período em que morou na capital alemã dividida pelo muro, compôs e lançou três de seus mais elogiados discos, que formam a chamada “trilogia de Berlim”. Na cidade alemã, tomou conhecimento da música eletrônica do Kraftwerk e do Krautrock de bandas como Can e Faust e incorporou essas sonoridades em sua própria música.

Os álbuns Low e “Heroes”, ambos de 1977, tinham em seu lado A as canções de estruturas mais tradicionais, reservando para o B as faixas mais diferentes e/ou instrumentais. Lodger, de 1979, é considerado o mais acessível dos três e por isso mesmo aquele pior avaliado pela crítica à época, ainda que posteriormente ele tenha sido redescoberto. Contudo, como destaque do período fica mesmo a música “Heroes”, sobre dois amantes à sombra do Muro de Berlim, uma das mais belas e épicas canções de todo o catálogo do cantor.

NÓS SABEMOS QUE O MAJOR TOM É UM VICIADO

Scary Monsters (And Super Creeps) (1980) é o disco onde Bowie, sempre antenado, voltou ao Rock mais básico e se utilizou de aspectos que seriam popularizados pelas cenas Pós-Punk e New Wave, sendo um álbum adorado por músicos dessas duas searas. É nele que David traz de volta o personagem do Major Tom, de volta à Terra e viciado em drogas, na canção Ashes to Ashes.

Em 1983, o músico novamente daria uma guinada para outra direção ao lançar Let’s Dance. Como o próprio nome entrega, é um trabalho de música Pop dançante, feito sob medida para tocar nas rádios. É até hoje seu disco mais vendido, o qual o transformou num ídolo de massa, capaz de lotar estádios, ganhar discos de ouro e movimentar milhões de dólares em seu nome. Bowie passava de um nome de sucesso puramente artístico a angariar também reconhecimento comercial.

Let’s Dance marca também o último suspiro de sua criatividade indelével, sendo o trabalho que fecha seu período áureo iniciado 12 anos antes com Hunky Dory. Daqui para frente, sua trajetória seria altamente irregular, marcada por um período de baixa criativa, especialmente na segunda metade dos anos 80 e início dos 90.

Mas isso é assunto para a segunda e última parte desta matéria (que também falará da carreira de ator de David Bowie), a qual você confere aqui no DELFOS na semana que vem. Até lá.