Zhang Yimou, o tremendão diretor que conseguiu colocar dois filmes na minha lista de melhores do ano no mesmo fuckin’ ano, andava sumido das telonas brasileiras. Agora, volta com tudo, em um filme que não tem nada de artes marciais, mas que mantém a tradição do cara em criar obras belíssimas inspiradas pela história da China.
O ESTUPRO DE NANQUIM
O amigo delfonauta já ouviu falar de Nanjing Datusha ou Estupro de Nanquim, em português? Se não sabe do que se trata, eu explico. Em dezembro de 1937, após conquistar Xangai, o exército imperial japonês avançou para a capital da China, Nanquim. Lá, cometeram algumas das piores atrocidades já registradas na história humana, incluindo vivissecção de pessoas. Estima-se que mais de 300 mil civis tenham sido brutalmente assassinados, e mais de 80 mil mulheres e crianças tenham sido estupradas.
A China considera este crime de guerra a parte mais triste e mais humilhante de toda sua história, e o Japão até hoje nega que isso aconteceu, mesmo existindo provas e registros históricos. Inclusive, é proibido ensinar isso nas escolas japonesas.
Caso você conviva com pessoas de ascendência oriental, já deve ter percebido que os descendentes de chineses odeiam japoneses (a maioria inclusive fica brava se é chamada de japonês), e o contrário nem sempre é verdade. Bom, eis o motivo. E digo que entendo o sentimento deles. Ao me preparar para escrever esta resenha, fiz uma breve pesquisa sobre o assunto, e as atrocidades que foram cometidas em Nanquim são realmente de deixar qualquer um com vergonha de fazer parte da espécie humana.
FLORES DO ORIENTE
Flores do Oriente conta uma história ficcional passada durante este massacre. Um grupo de crianças, algumas prostitutas e um agente funerário estadunidense (Christian Bale) se refugiam em uma igreja enquanto tudo isso está acontecendo. Terreno sagrado costuma estar fora dos limites durante guerras, mas não quando o exército invasor está possuído pelas forças de Satanás (a única explicação lógica para terem agido dessa forma).
Coisas horríveis acontecem durante guerras. A gente sabe disso, mesmo felizmente nunca tendo vivido uma na pele. Estupros, assassinatos e sadismo generalizado são comuns. Assim, admito que a única coisa que realmente me surpreendeu no filme foi a invasão da igreja. Nada do que é mostrado aqui parece fora do contexto “guerra”. Em outras palavras, o filme deu uma suavizada nas atrocidades. E é até estranho falar isso, porque de suave Flores do Oriente não tem nada. Pelo contrário, é pesado pra caramba, mas não mostra nada que seja realmente mais terrível do que o que deve rolar em qualquer guerra.
Em quase todos os filmes de guerra que existem, nós acompanhamos os soldados. Aqui toda a história é contada do ponto de vista dos civis, especialmente das crianças. E é justamente isso que deixa esta obra tão pesada. Durante toda a projeção, eu fiquei com um nó enorme na garganta e com os olhos marejados. E, meu amigo, não é qualquer filme que consegue me deixar angustiado não. O troço me pegou de tal forma que, caso tivessem mostrado as atrocidades mais revoltantes que foram cometidas, acredito que eu sequer teria aguentado ficar no cinema até o fim. Sim, o filme é forte desse jeito. Definitivamente não é para estômagos fracos.
Quanto à história, Flores do Oriente pode ser descrito como um A Lista de Schindler oriental, pois mostra um cara que está livre do conflito se sacrificando para ajudar pessoas inocentes. As semelhanças param no tema, no entanto, pois em todo o resto, este é muito superior à epopeia de 72 horas dirigida pelo Spielberg.
Mesmo com um tema tão sujo e pesado, Zhang Yimou consegue encontrar espaço para esbanjar sua estética arrojada e o clima poético tão comum em sua filmografia. Se você nunca pensou em ligar poesia a explosões, preste atenção na conclusão da cena do sniper e há de concordar comigo. Ela é simplesmente linda. Mesmo momentos singelos e aparentemente sem importância, como as cordas de um instrumento musical se partindo, ficam lindos quando filmados por esse cara.
O roteiro, no entanto, deixa alguns pontos a dever. O roteirista, em vários momentos, se rende a cenas óbvias e comuns para seguir em frente com a trama. A cena do gato, por exemplo. O mesmo efeito na história poderia ter sido alcançado sem repetir o artifício batido da “garota que corre atrás do seu bichinho de estimação”.
A presença de Christian Bale, e quase tudo que envolve seu personagem, também parece só estar ali para garantir algum público nos EUA. Realmente era necessário colocar uma historinha de amor que dura menos de cinco minutos para contar essa história? E o personagem dele precisava ser tão odioso no início do filme apenas para mostrar sua transformação em uma pessoa melhor? É uma pena que o cinema chinês, tradicionalmente de tamanha qualidade e criatividade, tenha se rendido ao estadunidense médio para faturar uns trocados, mas pelo menos fez isso sem jogar o filme inteiro no lixo. Infelizmente, não se pode dizer o mesmo quanto ao Selo Delfiano Supremo que ele estava destinado a levar, e que não ilustra esta resenha justamente por este motivo.
Flores do Oriente é o filme mais angustiante a que já assisti e, desnecessário dizer, é extremamente triste. Se você está pronto para encarar estes sentimentos nada positivos, no entanto, é um filmão, que deve ser assistido por qualquer pessoa que veja cinema como uma forma de arte.
CURIOSIDADE:
– O Estupro de Nanquim é um caso ainda tão dolorido nas histórias do Japão e da China que tem pessoas internet afora dizendo que os atores japoneses que participaram deste longa deveriam se suicidar para recuperar a honra de suas famílias. Que coisa horrível, não?