A Lenda do Coelhinho Sem Cabeça

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Saudações, delfanáticos. Todos ansiosos pela chegada do coelhinho? Prontos para seguir as pegadinhas que seus papais e mamães deixarão pela casa? Curiosos para saber que brinquedinhos ganharão? Essas e muitas outras respostas lhes aguardam nesta pequena lenda medieval que readaptei para os tempos atuais.

Primeiro ato: a tragédia

Século passado. Final dos anos 80. Escola Infantil Abelhinha Cintilante. Dois amigos, os melhores alunos daquela escola, amigos inseparáveis, se divertem na hora do recreio. Seus nomes? Doravante lhes chamaremos de T e CEC.

CEC: olhe, T. Uma formiguinha. Vamos ver se ela consegue andar se arrancarmos duas pernas?

T: não faça isso, CEC. Devemos amar todas as criaturas da natureza.

CEC: ei, T, que tal se acertarmos uma pedra bem no meio dos olhos daquele passarinho? Será que ele ainda consegue voar?

T: CEC, você não aprendeu nada que nossa professora nos ensinou? Só podemos praticar o bem!

Dona Clotilde, a professora: todos para a sala de teatro. É hora de ensaiar nosso jogral da Páscoa.

Algo terrível estava para acontecer. Desavisados, nossos pequenos personagens se posicionaram logo à frente da turma. Dona Clotilde, a professora, começa a distribuir as fantasias de coelhinho.

Dona Clotilde , a professora: turminha, vamos lá. Dois passinhos pra direita, palma. Dois passinhos pra esquerda, palma.

Ecoou pelo salão de ensaios a indefectível musiquinha. “De olhos vermelhos, nariz bem curtinho, eu sou coelhinho”. T e CEC se dedicavam com afinco, executando todos os movimentos ordenados por Dona Clotilde, a professora.

Nesse momento, leitores, algo horrendo aconteceu. Um descuido de Dona Clotilde no momento de colar as fantasias, fez com que a orelhinha direita de CEC se descolasse e caísse no chão. Ele se tornou o único coelhinho com uma só orelhinha. Todos os demais estavam com suas fantasias completas. Duas orelhinhas. Imediatamente, leitores, toda a turminha começou a caçoar de CEC: “orelha caída, orelha caída”. Toda a perversidade infantil recaiu sobre nosso personagem CEC. Risos infinitos, caros leitores.

O ensaio foi interrompido. Dona Clotilde perdeu o controle sobre a turma e, ela mesma contaminada pela situação, começou também a rir.

Nosso pequeno personagem CEC foi tomado pela raiva. Petrificado pela situação, olhava fixamente para sua orelhinha caída no chão. Olhava para os demais, todos com suas duas orelhinhas. O ódio tomou conta daquele pequeno ser. Ao olhar para o lado, percebeu que mesmo seu melhor amigo, T, também ria freneticamente.

T: CEC, é só uma brincadeira. Não se irrite.

Nesse momento, caros leitores, CEC saiu correndo pelos corredores multicoloridos da Escola Infantil Abelhinha Cintilante. Sua fantasia de coelhinho se desfazia ao longo de sua corrida. Pedaços ficaram espalhados por todo o corredor.

Nunca mais CEC foi visto na Escola Infantil Abelhinha Cintilante. Nunca mais T conseguiu notícias do amiguinho.

Segundo ato: nasce um império

Século XXI. Final do mês de março. Quarto de um jovem adulto. Um empreendedor do ramo do entretenimento virtual. Sim, leitores. O outrora pequenino CEC, algumas décadas mais tarde, tornara-se um bem sucedido empresário virtual. Uma música barulhenta e de péssima qualidade ecoa pelo ambiente: “time for lust, time for life, time to kiss your life goodbye”. Pela janela de seu quarto, ele observa a construção ao lado de sua casa.

O que será que vai ser isso? Pergunta.

Podia ser uma loja irada de games e RPG, pensa. O ritmo acelerado das obras e os sons emitidos inspiravam nosso jovem personagem a trabalhar com afinco na atualização de seu sítio virtual. Resenhas de filmes repletos de explosões e mulheres seminuas, notícias do mundo da barulhenta música conhecida como rock pauleira. Tudo que trazia imensa alegria àquele coração empreendedor, que nutria sonhos obstinados de conquista mundial e de viajar infinitamente pelo mundo postando sábios ensinamentos on-line.

O que será que vai ser esse lugar? Perguntava dia após dia nosso jovem.

Numa ensolarada manhã, nosso personagem repara uma movimentação diferente no canteiro de obras.

“Bom dia, Doutora Clotilde”, disse o engenheiro da obra, capacete branco na cabeça. “Estamos prontos pra inauguração. Os pintores estão terminando e as placas com o nome da escola serão instaladas ainda hoje.”

Nesse momento, leitores, uma sensação de assombro tomou conta de nosso personagem. Um caminhão carregado com uma enorme placa estaciona em frente ao prédio recém construído. Um delirium tremens toma conta de nosso personagem. Querem saber o que estava escrito na placa leitores? Pois bem. Dizia Centro de Educação Infantil Abelhinha Cintilante – Unidade 42. O total descontrole tomou conta de CEC.

Caros leitores, Dona Clotilde, outrora uma simples proprietária de uma simpática escolinha infantil tornara-se agora uma mega empresária do ramo educacional. Fizera doutorado numa destacada universidade; e graças ao seu método inovador/disciplinador de alfabetização de crianças em apenas 23 dias, tornara-se também figura fácil nos talk shows televisivos. Seu último livro publicado, o sétimo em dois anos, vendera 25 milhões de cópias. Não havia quem não conhecesse o livro Crianças Alfabetizadas, Mamães Felizes. Para onde quer que se olhasse era possível ver alguém lendo o sucesso editorial de Dona Clotilde.

As mais perversas lembranças invadiram a mente de nosso personagem. “Orelha caída, orelha caída”. Ecos de gargalhadas infantis se misturavam com as lembranças das cores que se sobrepunham nos corredores da Escola Infantil Abelhinha Cintilante. Desde aquele fatídico dia, jamais uma única Páscoa fora comemorada por CEC.

Terceiro ato: o monstro e as lembrancinhas de Páscoa

Por anos e anos nosso personagem ocultou toda sua dificuldade em lidar com a Páscoa. Até que um dia teve uma genial idéia. Para afastar as crescentes suspeitas, de seus amigos e dos trabalhadores que precariamente emprega em seu sítio, sobre sua repulsa e essa data festiva, CEC resolveu tornar-se um frenético comprador de coelhinhos de pelúcia. De todos os tamanhos e cores possíveis.

Todos os anos, próximo da Páscoa, chegava em casa ou no trabalho com um imenso sorriso. Sacolas cheias. Segurando um deles pelas orelhas, olhar fixo, seriedade absoluta, dizendo a todos:

– Veja os que consegui hoje. Tem um de óculos, um de chapeuzinho do Che Guevara, um com a camisa do Corinthians e o mais engraçadinho: este aqui que canta o hino do Palmeiras. É só apertar o nariz dele “…quando surge o alviverde imponente/ no gramado em que a luta o aguarda…”.

Ao ver a cena, um de seus funcionários pensou: sabia! Sempre achei que ele fosse mariquinha. Esse negócio de falar de mulheres com bacon é só fachada. O que ele gosta mesmo é de colecionar bichinhos de pelúcia.

Só que ninguém deu muita atenção àquela notícia bizarra, veiculada por aquele programa bizarro, com um apresentador ainda mais bizarro:

– Põe na tela! Põe na tela! Gari encontra sacola com centenas de cabeças de coelhinhos de pelúcia. Tem maluco pra tudo, meus amigos. Tem maluco pra tudo!

– Gari: a gente ficamos achando engraçado isso, né, moço? Cumé qui alguém fica fazendo um troço desses? Parece que foi tudinho cortado cum faca, ó. Tão todas assim meio puxadas.

Londrina, Paraná. Páscoa de 2001. Manchete do Jornal Gazeta do Povo: “Diretora de Escola Infantil recebe, pelos correios, um ovo de Páscoa acompanhado de um coelhinho sem cabeça”. “Fiquei horrorizada”, disse ela. “Por que alguém mandaria isso pra mim?”.

São Luís, Maranhão. Páscoa de 2002. Manchete do Diário de São Luís: “Diretora de Escola Infantil recebe, pelos correios, um ovo de Páscoa acompanhado de um coelhinho sem cabeça”. Ainda atordoada, ela disse à repórter: “não consegui me conter e vomitei no mesmo instante que vi aquela coisa horrível”.

Belo Horizonte, Minas Gerais. 2003. Manchete do Jornal Estado de Minas: “Diretora de Escola Infantil recebe, pelos correios, um ovo de Páscoa acompanhado de um coelhinho sem cabeça”. Ela disse ao repórter: “vê se pode um trem desses, sô! Tava aqui comendo meu pãozim de queijo e quando abri essa caixa vi esse trem feio danado aí, sô”.

Porto Alegre, Rio Grande do Sul. 2004. Manchete do Jornal O Tricolor: “Diretora de Escola Infantil recebe, pelos correios, um ovo de Páscoa acompanhado de um coelhinho sem cabeça”. Disse ela ao repórter : “bah ♫ tava tomando♫ meu chimarrão♫ quando vi isso aí”.

Ano após ano, sempre na Páscoa; em algum lugar deste país, alguma Diretora de Escolinha Infantil receberá um Coelhinho sem Cabeça.