Mudar o mundo. Mas que tema desavergonhadamente pertinente, não? E que idéia desacreditada. Que papinho panfletário de acéfalos retrógrados! Que utopia caduca! – Bem, essas são algumas das associações mais “automáticas” que as pessoas fazem quando se fala em “mudar o mundo” (sem esquecer, é claro, do sorrisinho sarcástico). Mudar o mundo para quê? E levar a esfera terrestre para onde? – Deixa de historinha encantada e vai trabalhar! (desculpe, foi o status quo quem escreveu isso).
Pois então, foi discutindo com o sumo-sacerdote do DELFOS e meu amigo (embora ele não acredite neste conceito e despreze minha consideração) Carlos Eduardo Corrales, que chegamos à idéia primordial desta matéria. Para desvendar os pormenores da “ideologia de mudar o mundo”, este intrépido foca resolveu entrevistar pessoas de áreas diversas, de formações distintas e idéias idem. O que essa orgia filosófica gerou, começaremos a explanar agora.
É sabido que a intenção verdadeiramente excitante de “mudar o mundo” se manifesta comumente na juventude. É nos jovens que essa característica fica mais visível. Poderíamos até dizer que ocorre de forma natural. É ao termos o primeiro contato lúcido com a sociedade à nossa volta, é somente quando podemos perceber claramente do que ela se constitui e como se manifesta, que nossa repulsa vem à tona. É então que tomamos um asco irremediável dela e passamos a desejar contribuir para sua transformação. É o nascimento da ideologia de mudar o mundo.
Não é um parto fácil, contudo. Tendemos a estranhar este filho, a não compreendê-lo e não saber como lidar com ele, levando, às vezes, até à rejeição. “Ok, não posso me conformar com isso. Quero mudar o mundo, e agora?” Agora é que o fulustreco macambúzio se vê sozinho e procura proceder da forma que ele julga necessária para “mudar o mundo”, sendo que esta jornada geralmente tende a acabar de forma trágica. Trágica porque o fulustreco não consegue ver o mundo se modificando, porque suas ações parecem inofensivas e, à medida que ele cresce, as dificuldades para manter sua postura aumentam, as pressões mercadológicas o impelem a ferir seus ideais e esta decepção de ver as coisas impassíveis, somada às obrigações da vida adulta (e toda esfera sócio-econômica que ela traz) levam-no a acreditar e defender que mudar o mundo é impossível. Pura besteira. Engano. Perda de tempo.
É o que no nosso contexto se configuraria como “depressão pós-parto”. Uma espécie de arrependimento, um sentimento de ter alimentado uma ilusão durante anos. Então tudo é imutável? “Não existe um status quo historicamente inalterável. A história não tem fim. Ela é feita pelos homens. Está em suas mãos mudá-la ou deixá-la como está. Pensar o oposto seria incorrer em dois erros: anti-historicismo (o mundo e a humanidade são sempre iguais e não podem ser qualitativamente modificados); e mecanicismo (o status quo é uma máquina com lógica própria, inacessível ao ser humano)”, diz Janus Mazursky, de 29 anos , filósofo e sociólogo. E continua: “a ideologia de mudar o mundo permanece válida. Por uma única razão: não posso aceitar a idéia oposta, a idéia de que não se pode mudar o mundo, a idéia de que a humanidade não seja capaz de mudar suas condições de vida. Essa idéia fatalista nos condenaria à passividade, ao conformismo, à mediocridade, ao entorpecimento, à involução intelectual e cultural, à animalização, ao nada. Sem falar que essa idéia nefasta protege uma ordem social que condena bilhões de seres humanos à miséria, à fome, à doença, à ignorância, à violência, ao mesmo tempo em que desperdiçam de forma suicida os recursos do planeta para dar a uma minoria privilegiada um estilo de vida de consumismo vazio”.
Já o comerciante João Ribeiro, de 50 anos, destoa desta tese: “A ideologia de transformar o mundo em uma sociedade igualitária e justa é utópica e romântica. E, portanto, irreal e fictícia, por trazer dentro de si a maior das contradições: ‘Não existe desigualdade maior do que tratar com igualdade os desiguais’, ou seja, o ser humano é desigual e portanto sempre viverá em sociedade desigual”.
Contudo, outra questão importante é ter em mente a escala dessa mudança. Se desejas uma revolução macro ou microcósmica, se queres revolucionar a ordem social estabelecida ou pôr em prática ações mais locais e restritas. É de consenso geral dos entrevistados que a mudança verdadeiramente possível e palpável é a transformação interior, para assim, gradualmente, contaminar o universo à nossa volta. Em outras palavras, a revolução pessoal é condição indispensável para a sua materialização a nível global. É a velha história de que, para mudar o mundo, devemos primeiro mudar a nós mesmos. E todos parecem concordar com Mahatma Gandhi. Não apenas achar que devemos, mas realmente fazê-lo.
De que forma? “Penso que devemos sempre tentar ir além, superar os limites. Porém, acredito que nada deve ser feito sem um mínimo de prudência. As atitudes das pessoas podem modificar situações e influenciar decisões. Nesse sentido, é possível mudar o mundo. Só que de maneira individual. A partir do momento em que se age de forma ética, com respeito e dignidade, você está fazendo a diferença. Em qualquer profissão – e nos demais segmentos da vida também – o mais importante é o caráter do sujeito. Manter os valores pessoais e não aceitar circunstâncias indecentes é o único jeito de transformar as coisas beneficamente”, conclui a estudante de jornalismo Poliana Pasa, de 18 anos.
Quando levantamos a bandeira de “mudar o mundo” estamos certamente bem intencionados. Fazemos isso porque concluímos que algo está errado, que não deve permanecer como está e que precisa, urgentemente, ser modificado. Mas e quando essas boas intenções são confrontadas com o imperativo sistema vigente? E Quando nossa vontade é sobrepujada por nossa necessidade? E Quando somos obrigados a ceder porque precisamos inadiavelmente do capital? Onde fica a ideologia? “Há de se saber morrer e perder… e a ideologia não considera a derrota. A ideologia é muito clara nos discursos militares e até esportivos: ‘perdemos a batalha, mas não a guerra’. Mas, no final das contas, a realidade é que perdemos a guerra e ganhamos pequenas batalhas. O profissional deve se dedicar a seus ideais certamente, às vezes pode até se cegar e ser eficiente, mas precisa pôr comida na mesa, viver. Se sua ‘arte’ não está sustentando isso, vai precisar repensar ideais. A não ser que viva sozinho, sem família, mulher, filhos. A realidade da ideologia é que ela é uma ficção vital. Ela é parte do que Ernest Becker chama de ‘o caráter humano como mentira vital’. Você precisa dela.”, diz Thiago Sarkis, 24, psicólogo. E Janus Mazursky complementa: “Não há área de atividade humana que se materialize senão por intermédio da forma-mercadoria. Por mais ‘despolitizada’ que seja uma determinada área da comunicação, sempre há ali interesses econômicos em jogo, contrariando os ideais de quem deseja levar a seu público informação qualificada e independente. Por isso digo que em qualquer área, os ideais não se impõem sem luta. Mas sem luta, que graça teria a vida?”
Se trata de um contínuo paradoxo, um jogo perverso de vitórias paliativas e derrotas momentâneas, do eterno confronto de forças dissonantes, da dor, da vontade, do triunfo, da luta. Há um preço a se pagar para quem deseja efetivamente mudar o mundo. E até que ponto a idade exerce influência neste processo? Nesta questão, as opiniões são diversas: “A ideologia se transforma com a idade. Você vê que há limites. O fato é que o ser humano deu um nó do qual nunca vai se livrar: a sociedade. Ele vive nela, interage nela, integra ela ao mesmo tempo que ela o integra, ela o consome, ela o faz ser humano. Lembro-me de uma frase do filme Edukators realmente memorável e que talvez venha ao caso, apesar do tom um pouco irônico e definitivo: ‘Ser um liberal antes dos 30 é não ter coração. Não ser liberal após os 30 é não ter cérebro’. Não é tão simples, mas é bem por aí”, diz Sarkis. Já para Mirian Alves, 36, professora e mestre em comunicação social, “com certeza, ela diminui muito com a idade, em virtude de decepções e obrigações mercadológicas”. Mario Maestri, 56, professor e historiador, parece integrar as duas visões sabiamente: “A tendência é certamente ao rompimento com compromissos sociais, em maior ou menor grau, com o passar dos anos, quando inserido em contexto de forte pressão social, política, ideológica, profissional, etc. Contudo, não há sentido na proposta de correspondência generacional entre maior e menor consciência, maior e menor compromisso social”.
Tendemos a nos conformar com nossas limitações, sermos mais flexíveis, ter noção exata do meio em que estamos inseridos e como podemos nos comportar dentro dele. Saber que sim, podemos mudar algo, mas não da forma como gostaríamos, e nossa dificuldade em admitir isto é evidente. Como salienta Maestri, o fato de inevitavelmente ter que conceder (e ceder) em alguma situação ou momento não significa que abandonamos nossos ideais, deixamos de acreditar ou que “nos vendemos”, não há relação íntima entre as duas coisas.
Mesmo ciente de todas estas implicações, todos os revezes, toda a aparente inércia das constituições mundiais, a ideologia de mudar o mundo é válida? “Com certeza é válido. O planeta Terra está neste marasmo atualmente pela própria falta de iniciativa de seus habitantes. Se as pessoas realmente se unissem e lutassem pelos verdadeiros ideais da libertação: a igualdade e a fraternidade, não seríamos mais os escravos de políticos, magnatas e ditadores”, enfatiza Bruno Sanchez, 25, administrador, historiador e diretor de interpretação corporativa do DELFOS nas horas vagas. Já Maestri conclui que “esta ideologia permite viver o mundo da melhor forma, intensamente, como homem livre, compreendendo-o em profundidade. Na medida dos limites históricos; permite conhecer e viver o que há de melhor da humanidade e é benéfica porque não há nada mais válido do que viver a vida em profundidade”.
Janus Mazursky finaliza fazendo um balanço abrangente de tudo que foi discutido aqui: “Dentro do materialismo dialético, a ‘ideologia de mudar o mundo’, articula o movimento oposto (ao do sistema vigente), procurando identificar o interesse da maioria dos que são explorados e excluídos pelo sistema, para impor esse interesse e transformar o sistema, para que não haja interesses, nem particularidades, nem classes, mas uma só humanidade consciente de si e dona de seu futuro. Logo, a questão da ideologia é uma questão social, histórica, material e objetiva, embora a escolha seja individual. Cada pessoa escolhe entre a ideologia dominante e a ‘ideologia de mudar o mundo’. Pode mesmo achar que não escolhe, ou deixar que alguém escolha por ela, ou querer ser ‘apolítico’, mas mesmo nesse caso, fará uma escolha. Talvez a pior de todas, que é a de se deixar levar pelas decisões alheias. Entretanto, não é só a escolha individual que resolve sozinha, nem as condições históricas materiais por si próprias. Para mudar o mundo, é preciso mudar os indivíduos, pois são os indivíduos que constroem o mundo em suas relações pessoais, conforme abraçam valores humanos ou anti-humanos e os colocam em prática nas diversas esferas de que participam: relacionamentos, estudo, profissão, etc.. Mas para mudar os indivíduos, é preciso mudar o mundo, pois é o mundo que forma os indivíduos, através das instituições que constituem seu ambiente de socialização: família, escola, Estado, trabalho, etc. O que mudar primeiro? Os indivíduos ou as instituições? Não existe resposta para esse falso dilema, pois é preciso que os dois mudem juntos. Só através de um que se muda o outro e vice-versa”.
Mais do que acreditarmos, nós precisamos de uma ideologia. Independente de ser palpável ou não, o exercício de qualquer ideologia é vital. Do contrário seríamos inanimados, conformistas, “porcos capitalistas” (numa hipótese mais razoável, podemos ser capitalistas sem sermos porcos) se refestelando na lama e gostando dela, adaptando-se, condicionando-se (a não ser que você opte conscientemente por isso – como lembrou Mazursky no comentário acima – o que seria tão legítimo como tudo mais). É a ideologia que nos move. É ela o combustível diário de nossas faculdades sociais. É ela que nos guia em todos os atos que empreendemos. É a ideologia a condição básica para a interpretação de tudo o que vem após ela. Pois mudamos não apenas nossos atos, mas a forma como vemos o mundo. Conseguir enxergar além, é o filtro essencial pelo qual processaremos tudo que nos sucederá daí em diante. Esta matéria apenas externa as implicações da chamada “ideologia de mudar o mundo”. O que fazer (se fazer, quando fazer, de que forma fazer) a partir disso é escolha sua. Sinta-se à vontade para exercer a parca liberdade que tens. Faça bom uso dela. Mas nunca se esqueça que “com grandes poderes, vêm grandes responsabilidades”. Ficou provado que temos o poder de mudar o mundo. Que grau de responsabilidade quer tomar para si?