Esta matéria faz parte da nossa cobertura especial de Wasteland 3. Leia também: Introdução. Parte 1: Primeiras impressões. Parte 2: Atire primeiro, pergunte depois. Parte 3: Explorar é preciso. Parte 4: Problemas no paraíso.
Eu estou há um mês e meio jogando Wasteland 3. Isso significou acordar durante muitos dias às 5h30 da manhã, a fim de conciliar meu trabalho com a produção desta série. Mas agora posso dormir tranquilo, pois enfim terminei o jogo. Minha campanha durou cerca de 60 horas – muito menos do que as cem que eu esperava. Foi divertido, mas também um tanto sofrido.
Para encerrar esta saga (foi uma saga pra mim, bicho!), quero falar sobre o que mais me chamou atenção durante a jogatina. Isso inclui detalhes, personagens, lugares e situações com que me deparei em minhas andanças pelo Colorado. Ao fim de tudo, darei meu veredito – para o bem ou para o mal.
HISTÓRIAS DO MUNDO
Nos textos anteriores, eu falei sobre o combate e a exploração de W3, que estão no cerne da jogabilidade. Ambos são muito bem executados e instigantes. Mas o verdadeiro charme do jogo está nas histórias contadas dentro de seu universo – tanto pelo próprio ambiente quanto pelas dezenas (talvez centenas) de personagens com os quais cruzamos pelo caminho.
Algumas são pesadas e violentas. Outras, engraçadas e absurdas. Há uma tonelada de diálogos, muito humor e um pouco (poderia ter mais) de crítica social. Às vezes prevalece o nonsense, mas temas sérios e atuais também dão as caras: crise de refugiados, corrupção e política, para citar alguns, fundamentam a narrativa principal.
Mesmo assim, os escritores nunca pesam a mão. Se num momento eu estava sendo confrontado com a decisão de perdoar ou não um assassino arrependido, detendo sua vida ficcional na ponta dos dedos, no outro estava ouvindo um prisioneiro dizer que há anos sobrevivia lambendo água da parede e se alimentando de cogumelos feitos com “adubo próprio”. Quando lhe perguntei por que estava preso, ele respondeu: porque a porta está trancada!
VIVENDO EM COMUNIDADE
Há uma ampla variedade de gangues e facções distribuídas por Wasteland 3. Muitas delas estão em rota de colisão entre si, enquanto outras apenas tentam sobreviver mais um dia no território hostil do Colorado. Dá para ajudar umas, eliminar outras e bater de frente com quase todas. Algumas são pacíficas, mas a maioria faz seu nome na base da violência.
Existem os Mannerites, extremamente polidos e guiados por um rígido código de etiqueta; os Payasos, que acham tudo uma grande piada, incluindo o fim do mundo; os Dorseys, inimigos do Patriarca e assassinos do Team November; e o Exército dos Monstros, sobreviventes fantasiados de vampiros e lobisomens.
Há os Marshalls, a polícia corrupta a serviço do Patriarca; as Cem Famílias (que na verdade são 63), compostas pela burguesia de Colorado Springs; o Sindicato de Brygo, mafiosos estilo Scarface que não fogem de um tiroteio; os Scar Collectors, escravagistas viciados em modificações corporais; e os Gippers, um culto a uma inteligência artificial que acredita ser Ronald Reagan.
Também temos os Refugiados, civis que não têm para onde ir e cujo destino é moldado pelo jogador; a Comunidade das Máquinas, um grupo de robôs pacifistas e gente fina; os Godfishers, que desmembram pessoas e enviam seus torsos para o céu amarrados em pipas, a fim de alimentar o desejo de sangue dos deuses; e uma porção de outras facções menores.
Todos esses grupos têm backgrounds e arcos narrativos próprios. A diversidade de crenças e mitologias envolvendo cada um é extensa, e suficiente para nos manter interessados ao longo de toda a jornada. Há também muitos documentos, anotações, fitas de áudio, cartas e livros que aumentam o lore e o tempo de jogo. Admito que não li nem metade de todos os arquivos que encontrei, mas no geral eles são bem escritos e devem entreter os mais aficionados.
O BOM, O MAU E O BIZARRO
Um dos lugares mais interessantes que visitei em W3 foi o Bizarro, um mercado escondido sob a neve. Para acessá-lo, precisamos de um ingresso, que pode ser obtido de múltiplas formas. Eu optei pela mais simples: pagando. Lá dentro, há um microcosmo de gente e atividades – de médicos a strippers, de vendedores a DJs.
Por ali, encontrei um androide que não engana ninguém; uma armeira que tem as armas por religião; um sujeito obcecado por macarrão instantâneo; um bartender monossilábico; um alfaiate mais do que dedicado à sua profissão; e Flab, o Inalador, que de tão gordo resfolega a cada palavra, fazendo jus ao seu apelido – e essas são apenas algumas das figuras com que trombei no Bizarro. É uma área cheia de coisas para fazer e personagens pra conhecer. Há batalhas a serem travadas, segredos para descobrir e horas de conversa nas quais se aprofundar.
O Bizarro tem até mesmo seu próprio museu, sendo possível solicitar uma visita guiada por ele. Há um monte de easter-eggs entre os artigos em exposição, como uma cópia de Wasteland 4, vários fliperamas que referenciam jogos clássicos como Pac-Man e uma bonita homenagem a John Bain, youtuber e ex-desenvolvedor de jogos conhecido como TotalBiscuit, que morreu em 2018.
Além do Bizarro, Wasteland 3 está repleto de localidades interessantes: fazendas, cidades-fantasma, aeroportos, esconderijos, mansões, resorts, minas, fábricas abandonadas e vilarejos povoados pelo que de pior reside no Colorado. Assim como as facções, cada região tem seu próprio sistema político, suas regras e particularidades, tornando o mundo extremamente vivo (mesmo nos lugares em que todos acabam mortos).
ESCOLHAS! ALTERNATIVAS! DECISÕES!
O mundo de W3 está constantemente pedindo ao jogador que tome partido de seus problemas. Uma rede de decisões permeia cada passo que você dá sobre a neve. Em alguns casos, eu tinha tantas opções para abordar ou concluir as quests que precisava parar por um momento e refletir sobre o assunto.
Pra começar, nada é preto no branco. Escolhas que parecem boas a princípio podem provocar consequências terríveis. Lidar com uma tarefa assim ou assado, por mais que pareça o ideal em um primeiro momento, pode influenciar tanta coisa que você só terá realmente noção do que fez muitas horas depois.
Logo no começo do jogo recebi, quase simultaneamente, dois chamados pelo rádio. Um deles era dos Dorseys, dizendo que haviam sequestrado três gerações de uma família. Se eu não fosse até lá, dando minha cara a tapa, os reféns morreriam. A outra ligação era dos Marshalls, informando que um comboio cheio de power armors estava sendo atacado. Não dava tempo de ajudar todo mundo: ou era a família, ou era o comboio.
Ambicioso e egoísta, optei pelo comboio, acreditando que descolaria equipamentos melhores. Pois bem, a coisa não saiu como esperado: resgatei as power armors, mas não tive acesso a nenhuma delas. Voltando para a estrada, cabisbaixo e abatido, recebo contato pelo rádio. Era o líder dos Dorseys, que me obrigou a ouvir os reféns sendo assassinados a tiros.
Tudo bem que é só um jogo, mas fiquei me sentindo mal sempre que algum personagem comentava sobre o acontecido. Mais tarde, deu até para visitar a casa e contemplar a destruição que causei. Como diz aquela música, fiquei lavado no sangue do cordeiro.
TOLERÂNCIA ZERO
A liberdade oferecida por W3 chega a ser até maior que em RPGs como The Witcher 3 e Fallout 4. Isso porque ele te deixa verdadeiramente livre para agir como quiser, sem te prender à personalidade de um personagem com sua própria agenda. Aqui, é o game que reage a você, e não o contrário. Sobre isso, saiu até um vídeo comentando a possibilidade de matar todos os personagens dentro do jogo, e como o universo reagiria a isso.
Eu mesmo acabei eliminando um personagem-chave da trama. A missão me dizia para invadir um bunker e resgatar esse caboclo que seria essencial para nossos planos. Ao chegar lá, descobri que o rapaz era um líder escravagista aprisionado pelo Patriarca. Escutei sua emocionante história de vida e suas expectativas para o futuro. E quando ele ofereceu uma aliança temporária em prol de interesses comuns, eu lhe meti o pipoco. Os Rangers não se aliam a escravagistas!
Desde então, adotei uma política de tolerância zero contra qualquer escravagista que passasse por mim. Sem conversa, sem negociações. Mesmo quando um grupo deles ofereceu códigos que abririam salas secretas dentro da minha base, às quais eu não teria acesso de outra forma.
MATA QUEM QUER, MORRE QUEM PODE
Matar esse personagem-chave, como você pode imaginar, influenciou todo o resto do jogo. Ele poderia ter se integrado à minha party e alterado significativamente minhas abordagens na segunda metade da campanha. Mas minha decisão de matá-lo ali mesmo fechou essa porta – e se abriu outras, eu não sei dizer.
Não seria condizente ter em minha equipe um comerciante de escravos, foi o que pensei, ainda que o jogo parecesse confortável em me ver nessa posição. Também encasquetei com os androides. Afinal, foi por causa de uma inteligência artificial que os Rangers perderam sua base no final do game anterior. Por isso, guiado por motivos que me pareceram lógicos, assassinei brutalmente todos os androides que encontrei pelo mundo – e eu encontrei todos eles.
Também dizimei comunidades inteiras, por acreditar que sua existência seria um risco para o povo de bem do Colorado (se é que existe gente de bem nessas bandas). Foi o caso dos Gippers, que queriam botar seu “Presidente-Deus” para governar o Colorado. Puxei bastante o saco deles enquanto foi necessário. Mas, assim que a missão acabou, fiz suas almas queimarem nos pixels do inferno – e não me arrependo de nada.
O SCORPITRON DOURADO
Dirigindo o Kodiak pelo sul do mapa (a última área a que temos acesso), me deparei com um daqueles encontros aleatórios que surgem ao pilotar nossa nave pelas estradas. Mas não era um evento comum. A própria descrição do jogo informava que se tratava de um Scorpitron, provavelmente o inimigo mais agressivo e barra-pesada da série Wasteland. Havia a opção de meter o pé e fugir, mas decidi ficar e pagar pra ver. Desci do carro e fiz cara de mau.
O bicho não era apenas um Scorpitron, mas um Scorpitron Dourado: um inimigo único no game, e talvez o mais durão de toda a campanha. Um chefe secreto e monstruoso, com uma barrinha de vida de seis mil pontos. Dei uns tiros nele e levei outros. Dois personagens morreram na hora. No turno seguinte, achei que poderia bloquear seus ataques usando o Kodiak. Avancei com o tanque para cima do Scorpitron e o atropelei. Não é que o bicho morreu instantaneamente? Foi a vitória mais fácil do jogo inteiro, no fim das contas, e a batalha toda não me tomou mais do que cinco minutos.
A CÁPSULA DO TEMPO
Como recompensa, encontrei nessa área alguns itens bacanudos, como ogivas táticas e um distintivo especial, além de uma cartinha muito elegante que dizia o seguinte:
“Parabéns, Ranger, você encontrou a cápsula do tempo escondida!
Quando começamos o desenvolvimento de Wasteland 3, nós dissemos que esconderíamos uma cápsula do tempo especial em uma área dentro do jogo, e a primeira pessoa que a encontrasse seria elegível a receber um prêmio especial. Achar essa mensagem é prova de que você encontrou a cápsula do tempo, e também de suas habilidades como jogador.
Para nos informar de que você achou a cápsula do tempo, por favor tire uma foto ou faça uma captura desta tela, agora mesmo, mostrando esta carta, e mande um e-mail para wastelandcommunity@inxile.net. Nós escolheremos aleatoriamente um vencedor a partir de todas as capturas de tela recebidas (confira nosso site para os detalhes completos do concurso e requerimentos de inscrição).
Mandou bem achando esta carta, e obrigado por jogar Wasteland 3!”
RESUMO DA ÓPERA
Como você já sabe, o objetivo principal de toda a campanha é encontrar os três filhos rebeldes do Patriarca e entregá-los vivos ao pai – para que, em troca desse favor, ele envie suprimentos para os Rangers no Arizona. Ou isso, ou nossos amigos no deserto estarão condenados à morte.
Eu só fui encontrar o primeiro filho lá pela metade do jogo, e os dois últimos na reta final. São oferecidas diversas opções de abordagem para lidar com eles. Dá para se juntar aos rebentos, matá-los a sangue frio, negociar com eles ou aprisioná-los. Um deles (o mais louco de todos) pode até se tornar um membro jogável da sua party, o que tornará seu time desprezível aos olhos de algumas facções – mas respeitado e temido por outras.
Porque me ative ao objetivo inicial (ajudar os Rangers em casa), dei um jeito de capturar os filhos vivos e devolvê-los ao Patriarca, como prometido – mas tudo podia ter sido bem diferente. É possível inclusive, dependendo das suas escolhas, encerrar precocemente sua partida. Seja por uma atitude em relação aos filhos do Patriarca, seja por outro motivo, dá para ativar alguns finais diferenciados ao longo da campanha. Tipo aquele em que todo o seu esquadrão explode ao tentar desarmar uma bomba durante uma missão secundária.
E, falando em final…
A BATALHA FINAL
O fim de W3 demandou bastante de mim no quesito “escolha”. Existe uma decisão importantíssima a ser tomada, que se anuncia desde o início do terceiro ato. E optar por uma ou outra alternativa me fez queimar os neurônios, tamanha a quantidade de implicações a serem calculadas.
É lógico que não vou estragar a surpresa e te dizer mais do que isso – vale a pena ver por si próprio. Mas digo o seguinte: foi uma decisão entre o ruim e o menos pior. Como disse Lucia Wesson, logo antes da briga final: “Se temos que escolher entre dois demônios, que seja o demônio que já conhecemos”.
Foi na última batalha que muitas das decisões tomadas ao longo do game se fizeram valer. As power armors que salvei no comboio, por exemplo, foram usadas pelos aliados do Patriarca. Dependendo do que você disse e fez até aqui, personagens ficarão do seu lado ou te abandonarão para lutar contra você. Eu dei sorte, e quase todo mundo permaneceu comigo – o que facilitou a vida.
Na verdade, a batalha final é dividida em vários combates menores, um atrás do outro, até que você chegue nos finalmentes. E vou te dizer: eu esperava mais desse confronto (o último dos últimos). Tanto em questão de roteiro quanto de jogabilidade. Não sei se eu estava muito overpower, mas achei tudo fácil demais. Enfrentei só uns seis ou sete inimigos, e nenhum deles trouxe muito desafio. Em 20 minutos ou menos, o combate já tinha terminado.
Considerando que muitos confrontos no meio do jogo duram cerca de 40 ou 50 minutos, eu realmente esperava uma senhora batalha para o final. Tipo acontece no X-COM 2, em que a última luta demora cerca de uma hora e meia ou duas, dependendo da dificuldade escolhida.
No confronto final ninguém ficou invisível, pelo menos.
O FIM DE UMA SAGA
Apesar dos pesares, eu gostei do final que conquistei, e os resultados refletiram quase fielmente tudo aquilo que eu tinha buscado ao longo da campanha – sinal de que sim, o jogo se adaptou às minhas escolhas e me deixou no controle do meu próprio destino.
Rola um slide-show e uma musiquinha personalizada no fim, narrando de forma cômica os principais eventos que você vivenciou e as decisões tomadas durante o jogo. Ainda que essa ideia da música seja divertida e realmente combine com o clima do game, acho que a inXile podia ter inserido algum tipo de cutscene, como aquela que abre o jogo, para não ficar apenas mostrando imagens estáticas. Mas ok…
Se você acompanhou esta série, já deve saber que considero Wasteland 3 um jogo incrível. Ele tem uma ótima trilha sonora, um roteiro caprichado, personagens memoráveis e dublagens de tirar o chapéu. Sua jogabilidade teve um enorme salto de qualidade em relação ao jogo anterior, e as mecânicas implementadas são consistentes e funcionais – ainda que haja espaço para melhorias.
O jogo tem muitas e demoradas telas de carregamento (o que foi ligeiramente melhorado com a última atualização). Mexer no inventário não é lá essas coisas, já que os filtros não dão conta de todos os itens e navegar entre as opções é um exercício de paciência. E também senti falta de mortes permanentes, como havia em W2. Eu estava bem disposto a manter a rotatividade de personagens no meu esquadrão. Mas quando um deles morria, bastava ressuscitá-lo após o combate e injetar uns consumíveis, como fazemos com um amigo caído depois de uma bebedeira. Mesmo assim, são pormenores que de forma alguma diminuem o jogo.
O VEREDITO
Honestamente, eu teria conferido a W3 o cobiçadíssimo Selo Delfiano Supremo, não fossem seus incontornáveis e abusivos bugs e crashes. A inXile está trabalhando para corrigi-los, vale lembrar – e deveria mesmo. Um jogo tão maneiro não pode ser autossabotado por inconsistências técnicas desse nível.
O saldo final foi bom, muito bom. E teria sido ainda melhor se eu não precisasse reiniciar o jogo a cada par de horas, nem perdesse tanto tempo tendo que refazer uma batalha só porque o game não funcionou como deveria.
De toda forma, assim que os créditos subiram eu me senti meio vazio. Agora não tenho mais que acordar de madrugada para jogar, nem nadar contra a corrente em um mar de bugs. Mas também não estarei na companhia de Jeremias, Zebedaia, Cherno Bill e Berenice. Sentirei saudade dessa galera. E quando os créditos acabaram e voltei à tela inicial, fiquei tentado a reiniciar uma nova campanha e testar outros caminhos – e acho que essa vontade de rejogar um game logo após terminá-lo é o maior elogio que se pode fazer a um jogo. Quem sabe num futuro próximo?
MAS AINDA NÃO ACABAMOS… OU ACABAMOS?
A inXile já anunciou que tem planos para um DLC de história, apesar de não haver uma janela de lançamento. O próprio Brian Fargo afirmou que, por ora, a equipe está concentrada em corrigir os bugs e otimizar a experiência do usuário. Confesso que estou bastante ansioso para retornar ao mundo de Wasteland 3, seja daqui a um mês ou um ano.
Se eu ainda estiver por aqui, certamente vou resenhar o DLC. E, se não estiver…