Essa crônica está diretamente relacionada com o período em que cursei a faculdade de cinema. É um assunto que surgia frequentemente nesse período e, mesmo anos depois de concluir o curso, às vezes ainda me pego pensando sobre isso ou discutindo com amigos em mesas de bar.
Nas aulas, era comum vermos muitos filmes e discutirmos os trabalhos de diretores influentes. Um desses diretores era Quentin Tarantino. Sem brincadeira, acho que durante toda a faculdade devo ter assistido Cães de Aluguel no mínimo umas dez vezes.
Em todo o caso, o propósito deste texto não é discutir a genialidade do diretor norte-americano nem mesmo sua influência sobre o cinema moderno. Isso é assunto, talvez, para um outro texto. Neste quero falar sobre um fenômeno bem específico e que para mim nunca fez muito sentido. Mas antes, ainda preciso preparar um pouco mais o terreno.
Minha classe praticamente se dividia em dois grupos: os intelectuais – aqueles tipinhos que você encontra em mostras de cinema, e adoram filmes de arte (e não seriam todos os filmes “de arte”?) – e o grupo ao qual eu fazia parte, que não tinha muita paciência para filmes do Godard e preferia mesmo um bom blockbuster hollywoodiano.
Agora, muito embora ambos os grupos assistissem de tudo, apesar de suas preferências, Quentin Tarantino sempre foi, talvez, a única unanimidade entre as duas facções. E isso não faz o menor sentido.
Eu posso entender porque nós, apreciadores de um bom blockbuster, gostávamos. Seus filmes são violentos a ponto de serem caricaturais, com diálogos transbordando referências à cultura pop (música, quadrinhos, programas de TV, etc) e acima de tudo, Tarantino é um cinéfilo como nós, uma verdadeira enciclopédia de filmes B e trash.
Quem conhece sua biografia, sabe que antes da fama Quentin era balconista de uma locadora com um acervo gigantesco e, portanto, teve a oportunidade de ver todo e qualquer tipo de filme. No entanto, os que o influenciaram são justamente os que os ditos intelectuais denominam como lixo cultural.
Vejamos sua filmografia: Cães de Aluguel é uma rendição dos filmes de gângsteres e policiais B da década de 70, e o mesmo vale para Pulp Fiction. Jackie Brown é uma homenagem aos filmes de blaxploitation do final dos anos 70 (filmes B, tanto em temática quanto em orçamento, destinados ao público da raça negra), Kill Bill é uma grande ode aos filmes de kung fu chineses, populares até hoje. Mesmo seu filme mais recente, À Prova de Morte, é uma homenagem a filmes de terror trash da década de 80, como A Morte Pede Carona, por exemplo.
E aí, em conversas casuais com seres desse grupinho intelectual, perguntava o que a figura achava dos filmes de Bruce Lee, Jackie Chan e outros gêneros da pancadaria oriental. Perguntava se gostava de filmes de terror ao estilo Sexta-Feira 13 e A Hora do Pesadelo. O que achava de Testosteronas Totais, com explosões inacreditáveis, miolos explodindo e outras nojeiras.
A resposta era invariavelmente a mesma. “Tudo isso é lixo, desperdício de película”, para não dizer coisa pior. Depois perguntava: e os filmes do Tarantino? “Ah, o Tarantino é demais, um verdadeiro gênio, seus filmes são ótimos, um arquiteto da violência cinematográfica” e blá blá blá. E aí eu pensava: mas tudo o que eu falei antes, sem tirar nem pôr, está no corpo da obra dele!
Por que um filme de Bruce Lee, aos olhos de tal indivíduo, é lixo e Kill Bill arranca suspiros orgásticos? Por que os filmes de ação superviolentos da década de 80 são considerados uma piada e Pulp Fiction é “um estudo da subversão da violência na era pós-moderna” (termos que eles adoram regurgitar)?
Sejamos francos, é a mesma coisa! Eu sei, você sabe. Até o próprio Tarantino sabe! É só ler qualquer entrevista dele. Só quem não percebe é essa esfera dita intelectual, cabeça ou sei lá mais o quê.
As mesmas pessoas que pagaram um pau para o diálogo do Superman em Kill Bill Vol. 2 abominam as adaptações de quadrinhos para o cinema e até mesmo as próprias HQs. Ora, mas sem isso ele não teria escrito um diálogo tão inteligente, que por sinal também não é nenhuma novidade. É só ler alguma história clássica do azulão que essa discussão com certeza estará lá.
Mas parece que eles não se dão ao trabalho de pensar nisso. E eu não estou exagerando, todos esses exemplos dados acima tirei de diálogos reais. Muito do que estou falando presenciei de fato quando estava na faculdade, algumas vezes até com as mesmas palavras que uso aqui.
E só para deixar bem claro, não tenho nada contra esses tipos. Ora, eu também vou a mostras de cinema, também gosto de filmes “de arte” (desculpe, não consegui encontrar um termo melhor) e também adoro o Tarantino. Bem como adoro filmes onde a explosão de um botijão de gás arrasa um quarteirão, um sujeito arranca a cabeça de outro com um soco e onde chineses lutam kung fu flutuando pelos céus.
A diferença é que esse outro grupo venera isso apenas quando Tarantino entrega a eles e, quando não há o nome do diretor, sacaneiam a obra, e quem gosta dela, como se fosse a anedota mais engraçada do planeta.
Mas talvez aí esteja a piada e a genialidade de Quentin: ele recicla e devolve a essas pessoas os mesmos elementos que outrora elas consideravam de baixa qualidade, transformando-a em arte do mais alto nível aos olhos delas.
E, ao final, quem ri disso somos nós, os apreciadores do bom cinema em geral e o habilidoso diretor, capaz de subverter a própria noção de gosto de todo um grupo. Só quem não deve ter gostado da piada é o povinho cabeça. Ou de repente não. Afinal, se é uma obra de Tarantino, mesmo que tire sarro deles, está aprovada.