Eu sou um grande fã da série Need For Speed, e gostei especialmente do reboot de 2015, com seus gráficos fotorrealistas e história contada em live-actionNeed For Speed Payback, terceiro jogo seguido da série desenvolvido pela Ghost Games, infelizmente é um retrocesso em quase todos os aspectos.

Não dá para dizer que o jogo não é bonito. Na verdade, ele é tão bonito que eu sofri para selecionar as screenshots que ilustrariam esta resenha. Porém, comparado com o visual fotorrealista do anterior, ele é inferior.

Need For Speed Payback, Delfos
Felizmente, entre o visual anterior e simplesmente feio, há um longo abismo.

A história agora também é contada de forma mais tradicional, com cutscenes em CG. Porém, a imensa maioria delas não mostra os personagens, mas apenas dois carros lado a lado enquanto você ouve as vozes, o que parece ser uma opção para economizar no orçamento.

Need For Speed Payback, Delfos
90% das cutscenes são assim. Mudam apenas os carros.

Apesar destes dois aspectos imediatamente decepcionantes, o jogo ainda tem muito espaço para brilhar. Ao começar a jogá-lo, você fatalmente vai se empolgar com o gameplay gostoso tradicional da série e as cenas de ação que parecem tiradas de Velozes & Furiosos.

Infelizmente, há algo muito errado no reino da Ghost Games, que acaba tornando jogá-lo quase uma penalidade. Mas a gente chega lá.

CORRIDAS COM CENAS DE AÇÃO

A série Need For Speed sempre teve um bocado de influência dos filmes Velozes & Furiosos, e isso se mantém em Payback. Aqui conhecemos um trio de motoristas habilidosos (um deles, não por acaso, a cara do Paul Walker) e com moral flexível que pretende dar um golpe num sujeito rico para roubar um carrão.

Eles acabam sendo traídos por uma colega, e a partir daí se aliam ao ricaço que queriam roubar para se vingar da moçoila traíra. Isso os coloca em rota de colisão com uma organização malvada chamada simplesmente de House, que quer dominar as corridas ilegais da cidade.

Para conseguir atingir os malvadões, você precisa da ajuda dos outros grupos de corredores da cidade. Mas para eles aceitarem ajudar, precisam te respeitar. E para isso, precisam perder umas corridas.

Need For Speed Payback, Delfos
Pausa para uma imagem intensa.

Cada grupo de corredores é especializado em um tipo de corrida. Podem ser as tradicionais no asfalto, offroaddrag ou drift. Se você jogou algum Need For Speed antes deve saber bem do que se trata cada uma delas. Você precisa ganhar uma sequência de corridas de cada tipo para poder finalmente desafiar o chefe do grupo em uma disputa mano a mano.

Embora a história não seja especialmente criativa, as corridas vêm recheadas de diálogos e os personagens são suficientemente interessantes para entreter e dar contexto às corridas. Alguns dos líderes são bem respeitosos e até gente boa, enquanto outros levam a rivalidade mais a sério. Tem até uma moça que faz livestream das suas corridas para seus milhões de fãs.

CUIDADO COM OS POLÍCIA

A outra ponta do gameplay são as fases da personagem Jess, chamadas de Runner. Ela se infiltra na House e cumpre missões para a organização para conseguir intel. Praticamente toda a história do jogo é contada nestas fases, que lembram bastante missões que você encararia em jogos como Grand Theft Auto.

Elas envolvem entregar pacotes em vários lugares da cidade, levar VIPs de um ponto a outro ou, as melhores, fugir da polícia. Veja bem, eu normalmente considerava as perseguições policiais a pior parte de um Need For Speed, mas aqui elas ficaram realmente legais.

Need For Speed Payback, Delfos
Não é Burnout, é o novo Need For Speed.

Você não mais precisa sumir da vista dos policiais, mas apenas chegar a um ponto específico da cidade antes do tempo terminar. A questão é que policiais e capangas contratados pela House vão te perseguir, e fazer de tudo para pará-lo.

Em outras palavras, são missões de combate e você deve jogar seu carro nos desgramados na esperança de quebrá-los. Porém, não rola destruir todo mundo e seguir até seu objetivo no sossego, pois sempre há novos carros atrás de você. Por outro lado, a missão sempre tem um momento para acabar, evitando aquelas perseguições quase infinitas dos jogos anteriores.

Need For Speed Payback, Delfos
É bem satisfatório destruir os carros inimigos.

As perseguições finalmente são legais, e as corridas também poderiam ser. Às vezes até são. Porém, o jogo se perde totalmente ao não ficar satisfeito com o que você pagou para jogá-lo. Para isso, como você deve imaginar…

ELE VIROU UM RPG

Pois é, até Need For Speed cedeu à moda do RPG. Se ainda fosse uma opção criativa, como em The Crew, até podia ser legal. Porém a motivação para isso estar aqui é bem mais malvada. Pois é, delfonauta, mais uma vez estamos falando de microtransações.

Funciona assim: seu carro tem um nível. Cada prova tem um nível recomendado. Ao vencer cada corrida, você pode escolher entre três cartas aleatórias que podem, talvez, com um pouco de sorte, subir alguns níveis no seu carro.

Need For Speed Payback, Delfos
Por que escolher uma entre três se o que vai sair é aleatório? Ninguém sabe.

Mesmo quando você dá sorte e consegue upar após uma corrida, fatalmente o gap para o nível da próxima vai ser maior do que o que você conseguiu subir. Eu fiz um teste, e comecei uma questline 20 níveis acima do recomendado. Na última missão da questline, fazendo apenas as corridas, uma depois da outra, e aplicando os upgrades que rolaram naturalmente, estava 22 abaixo do recomendado.

Estar em um nível mais baixo do que o recomendado torna simplesmente impossível vencer, por melhor que você jogue. É aquela coisa: você está em primeira posição, numa linha reta, pisando fundo no acelerador, e os corredores da AI vão te passando um a um, simplesmente porque os carros deles são de níveis superiores.

Need For Speed Payback, Delfos
Eu gosto de viver perigosamente.

Para conseguir encarar os desafios, não basta diminuir a dificuldade para o easy (o que, aliás, parece não fazer diferença alguma). Você precisa upar seu carro. E para subir de nível, é necessário repetir as corridas já vencidas para ganhar uma única carta por vez (que, de novo, pode, talvez, subir o nível do seu carro). Isso deixa o jogo extremamente repetitivo.

Claro, você não precisa fazer isso para progredir. Pode optar simplesmente por pagar com dinheiro real para vencer, pois a loja de microtransações está sempre a um clique de distância.

Need For Speed Payback, Delfos
E, claro, quanto mais você paga, maior é a possibilidade de, talvez, subir o nível do seu carro.

Infelizmente, fica ainda pior.

AS CARTAS NÃO SE TRANSFEREM ENTRE OS CARROS

Cada carta que você ganhar ou comprar fica presa ao carro que você estava usando quando a faturou. E cada uma das modalidades de jogo usa um carro diferente. Assim, você pode ter um carro nível 300 para corridas, mas um nível 150 para offroad.

Para deixar ainda mais irritante, os carros têm limites de upgrades. Ou seja, chegando a determinado nível, você só vai receber cartas mais fracas, obrigando a comprar outro carro. Até aí tudo bem, comprar um carro novo sempre foi algo legal em Need For Speed. Só que Need For Speed nunca foi um RPG.

Need For Speed Payback, Delfos
Carros que voam são consideravelmente mais caros.

Em determinado momento, estava com um carro de corrida perto do nível 200, mas ele não subia mais de nível, e as missões de história estavam escalando rápido. Só que a loja não me deixava comprar os carros realmente pintudos, mesmo eu tendo dinheiro para pagar, pois os carros liberados para compra dependem do ponto em que você está na história.

Assim, eu tive que comprar um carro do nível 150 apenas pela possibilidade de upá-lo acima dos 200 e conseguir me manter competitivo. O negócio é predatório. Ou você paga para avançar e curtir o jogo ou fica constantemente repetindo as corridas e ficando com cada vez mais raiva.

A história de Need For Speed Payback é relativamente curta e, não fosse isso, poderia ser bem agradável, mas do jeito que está, eu passei quase todo meu tempo com ela pensando quanto ainda teria que jogar até ela acabar e eu estar livre do jogo.

Need For Speed Payback, Delfos
D’oh!

Até o multiplayer fica limitado por níveis. Para jogar partidas ranqueadas, você precisa de um carro acima de 275 ou não pode sequer entrar na modalidade. Obviamente, uma vez que entre, não tem chance alguma de ganhar contra os jogadores que pagaram para upar.

PIOR É QUE ALGUMAS MISSÕES SÃO REALMENTE LEGAIS

Entre as fases de corrida e as de Runner, tem algumas mais focadas na história, que são os seus golpes contra a House propriamente ditos. Estes são os momentos em que o jogo realmente brilha.

Normalmente elas envolvem roubar carros que são muito melhores do que os que o jogo deixa você usar, e você vai alternando entre os três personagens jogáveis em cenas de ação pintudas que não fariam feio em um blockbuster de ação.

Need For Speed Payback, Delfos
Esta imagem não é meramente ilustrativa.

São missões mais narrativas e mais focadas no espetáculo do que no gameplay. Isso significa que o nível não tem tanta importância, permitindo que todo mundo se divirta. Claro, você precisa upar pra caramba para conseguir vencer missões o suficiente para liberá-las.

O pior é que eu tenho a sensação de que nada disso fez parte do design criativo da Ghost Games. Existe um bom jogo por trás de toda essa baboseira e a sensação que dá é que a baboseira em si foi colocada a mando de algum produtor mais interessado em monetizar do que em ter um bom jogo.

Need For Speed Payback, Delfos
O produtor é o carro da esquerda. O resultado final do jogo é o da direita.

Parece que ele não percebe que, sendo assim, as pessoas simplesmente não vão gastar dinheiro no jogo. Need For Speed Payback é um jogo AAA vendido a preço cheio, mas que custa muito mais se você pretender realmente usufruir dele. E o pior é que, por ser focado em loot boxes, não é nem um preço fechado.

Não dá para pensar que, por 500 reais, você teria o jogo e um carro competitivo, pois para conseguir competir você precisa dar sorte de receber loot útil.

NEED FOR SPEED PAYBACK

Eu falei antes e repito: eu sou fã da série Need For Speed, mas o foco em pay-to-win deste é tão grande que nos faz pensar a que o título Payback realmente faz alusão.

Need For Speed Payback, Delfos
Chama os polícia, meu!

Temos aqui um jogo que poderia ser bom. Ele poderia ser vendido a preço cheio sem microtransações (ou pelo menos não tão agressivas), ou podia ser um free-to-play do jeito que é. Infelizmente, não dá para ser os dois, o que o torna o pior Need For Speed que eu já joguei.

Para saber mais sobre microtransações e porque elas existem, leia: Microtransações e loot boxes: como chegamos a este ponto?

REVER GERAL
Nota:
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Carlos Eduardo Corrales
Editor-chefe. Fundou o DELFOS em 2004 e habita mais frequentemente as seções de cinema, games e música. Trabalha com a palavra escrita e com fotografia. É o autor dos livros infantis "Pimpa e o Homem do Sono" e "O Shorts Que Queria Ser Chapéu", ambos disponíveis nas livrarias. Já teve seus artigos publicados em veículos como o Kotaku Brasil e a Mundo Estranho Games. Formado em jornalismo (PUC-SP) e publicidade (ESPM).
need-for-speed-payback-entre-o-grinding-e-o-pay-to-winDisponível: PS4, Xbox One e PC<br> Analisada: PS4<br> Desenvolvedora: Ghost Games<br> Editora: EA<br> Gênero: Corrida / RPG / Mundo aberto / Pay-to-win<br>