Ele está de volta, amigo delfonauta! Ele, o terror de todos os gamers adultos. O chef José Marques. E mais uma vez ele vem colocar seu ingrediente especial em um jogo deveras promissor. Falamos, é claro, de Sifu. Vamos ver se eu consigo escrever um texto inteiro sem tirar sarro do título? Bora lá!
A VOLTA DO CHEF JOSÉ MARQUES
Já leu o meu texto sobre Returnal? Lá eu criei uma metáfora que se aplica perfeitamente à indústria dos games atual. Tem um monte de gente fazendo jogos simplesmente fantásticos. Porém, o objetivo de um gamedesigner que vive e trabalha no ano de nosso senhor 2022 não é mais divertir seu público. É frustrá-lo. Daí, eles criam o melhor jogo que conseguem, e pensam consigo mesmos: “hum… como eu posso estragar minha obra?”. E daí vem o ingrediente especial. Que, no caso do nosso amigo, o chef José Marques, envolve fazer pipi no prato que criou. Sifu é um lasanhão coberto por pipi, meu amigo. Você aceita comer?
Antes de entrar no pipi, no entanto, vamos falar dos outros ingredientes. Você sabe, a parte gostosa da coisa toda.
SIFU
Sifu é um beat’em up fantástico e raríssimo. Ultimamente tivemos um revival do gênero, com jogos excelentes como Streets of Rage 4 e The Takeover. Porém, são todos sidescrollers. Quando sai um raro jogo de porrada em 3D, normalmente tende ao hack and slash, estilo Devil May Cry. Assim de cabeça, eu não me lembro de ter jogado outro beat’em up em 3D desde Monkey King. E isso deixa Sifu MUITO especial.
Mas a coisa não para aí. Sifu é perfeito em quase tudo que faz. Os gráficos são fantásticos. As animações são impressionantes. E principalmente, o combate é uma senhora delícia. Fazia muito tempo que eu não jogava algo de soquinho tão satisfatório. O jogo tem uma cena na primeira fase que imita a famosa luta no corredor de Oldboy (completa com câmera lateral), e é assim que você se sente jogando: como um mestre de artes marciais invencível.
Cada soco, cada desvio, cada arma… É tudo muito satisfatório. Sifu tem um dos gameplays mais bacanas dos últimos anos. A música também é muito boa, se não para ouvir no dia a dia, funciona muito bem no contexto do game.
Sifu é um roguelike, mas abre mão de algumas das características do gênero, como as fases procedurais. Aqui as fases são roteirizadas e mais ou menos lineares, e são as mesmas a cada nova partida. Ou seja, são muito legais na primeira rodada, e pioram um pouquinho a cada repetida. E daí você começa a sentir o pipi do seu José Marques.
SIFU ROGUELIKE
A questão é que Sifu acha que os gamers de hoje são crianças com muito tempo nas costas. Então apesar de terem criado um beat’em up sensacional, colocaram um monte de travas artificiais nos avanços, tanto de história como de personagem. Quer um exemplo? Para você ter uma habilidade permanentemente, é necessário comprá-la com XP. Até aí beleza, né? Só que depois de comprá-la, você precisa gastar o mesmo XP nela mais cinco vezes para que ela fique permanente.
Se você tomar um gameover antes de comprar pela sexta vez, perderá a habilidade, mas salva a quantidade de vezes que você a comprou. Por exemplo, se faltar duas compras, na próxima partida você precisa investir três vezes (uma para desbloquear a habilidade e as outras para de fato contarem para o save). Tá sentindo esse gostinho estranho? O que será?
O INGREDIENTE SECRETO DO CHEF JOSÉ MARQUES
E daí entra a mecânica de idade, e isso é um tanto complicado de explicar em palavras, embora seja fácil de entender no jogo. Cada vez que você morrer, sua idade avança o mesmo número que estiver no placar de mortes. Por exemplo, morreu cinco vezes, da próxima vez vai envelhecer seis anos, sacou? Vencer alguns inimigos mais poderosos diminui o placar de mortes. Se você jogar bem, vai conseguir manter esse placar relativamente baixo o tempo todo. O problema é que, quando você começa a morrer em um chefe ou em uma luta mais difícil, a coisa vai subindo em progressão geométrica. Numa morte você perde cinco anos, na próxima, seis, na próxima sete. Só com essas três mortes, você já perdeu 18 anos de vida. A permadeath rola quando você morre após passar de 70.
Quando isso acontece, você perde toda XP e pontos conquistados, todos os boons que comprou e todas as habilidades que tiver comprado menos de cinco vezes (depois de destravar, então no mínimo seis vezes). Daí você pode voltar para a primeira fase para conseguir todos os upgrades e boons que conquistou de novo. Ou então pode continuar do início da fase mais avançada, com a menor idade que chegou lá e sem nenhum upgrade não permanente. Peraí, melhor não colocar na boca que o gosto tá estranho.
Além do efeito na aparência, envelhecer também afeta o gameplay. A cada década envelhecida, você fica mais forte e com menos vida. Na prática, não achei que isso faz muita diferença. O limite de vidas pegou mais pra mim do que a diminuição da barra de vida. E a essa altura você já está sentindo o glorioso gosto do xixi radioativo do nosso chef preferido, não está? Olha como ele brilha!
AUTOSABOTAGEM
Se não fosse essa morte permanente e upgrades efêmeros, eu provavelmente colocaria Sifu no meu cobiçado rol de melhores games de todos os tempos. Ele estaria lá se tivesse algo tão básico quanto checkpoints opcionais. Ora, funcionou para Song of Horror, que também queria ser um roguelike, mas aqueles desenvolvedores eram mais maduros que os da Sloclap, sem exigir esse mesmo nível de sacrifício do jogador.
A Sloclap não quer te divertir. Quer te frustrar. Eles querem colocar um jogo fantástico na mão das pessoas e daí tirar para nos fazer chorar. É tipo aqueles jogos de celular, que são planejados para você só se divertir pagando, sabe? Aqui você só paga uma vez, mas a partir daí tem que pagar com seu tempo. E ele exige MUITO tempo. Tem gente que gosta disso, suponho. Deve ter um motivo para tantos jogos assim serem feitos hoje em dia. Mas eu não tenho tempo para jogar a primeira fase de um jogo dezenas de vezes na esperança de um dia ver a última.
Obviamente, isso não seria uma questão se o jogo fosse fácil ou se desse vidas suficientes para terminar (acredito que se cada morte acrescentasse apenas um ano seria o suficiente para chegar ao final). E o gameplay lembra bastante Sekiro. Você precisa defletir os ataques para fazer dano à postura dos meliantes. Quando quebrar a postura, dá pra vencê-lo imediatamente e ainda recuperar vida.
É um gameplay interessante, mas exige muito do jogador. Eu me esforcei muito para aprender esse sistema em Sekiro, mas só consegui chegar até o último chefe na base do stealth. Quando precisei lutar, não tinha chance. Eu simplesmente não tenho a coordenação motora para defender dezenas de ataques seguidos e rápidos na fração de segundo exata para ter uma chance de atacar. Sifu, assim como Sekiro, exige de mim uma habilidade que me elude, que é impossível para mim conquistar. E aí voltamos àquele velho papo de acessibilidade.
SERIA FÁCIL DE RESOLVER SIFU
É o tipo de coisa que seria fácil de resolver. Checkpoints opcionais, vidas infinitas, ou uma quantidade limitada, mas sempre igual para cada fase. Com mudanças em poucas linhas de código, Sifu poderia ser grande. Assim como Returnal, toda a parte difícil, de se criar um jogo excelente e um gameplay gostoso, a Sloclap conseguiu. Mas daí cismaram com o ingrediente secreto: uma ideia elitista de que apenas os melhores dos melhores têm permissão para curtir Sifu. E é uma pena. Porque eu gostei muito de Sifu. Mas ele não retribuiu meu amor. Então precisei encerrar o relacionamento.