Começo esta análise Trek to Yomi dizendo o óbvio. Não é segredo que eu ando bem insatisfeito com os rumos da indústria dos games. A tendência a RPGs, mundo aberto, roguelikes e soulslikes deixou tudo absurdamente padronizado. Até mesmo franquias que eram tudo que eu gostava e fizeram muito sucesso dessa forma, como God of War, Gears of War e Uncharted se renderam parcialmente à moda RPG/Mundo aberto/Souls.
O mundo gamer parecia sem esperanças para alguém com meus gostos. Até tivemos alguns jogos de ação bacanas e menores, mas eles não eram impressionantes ou inovadores. A última vez que eu joguei algo que me impressionou visualmente e cujo gameplay tenha me deixado apaixonado foi com Ryse: Son of Rome. E isso deve ter sido lá para 2015 (Ryse é de 2013, mas eu só consegui jogá-lo bem depois do lançamento). Desde então, pudemos contar nos dedos a quantidade de hack and slashes de alto orçamento, para citar uma subdivisão de “jogos de ação”.
No final da era do PS3, eu imaginava que jogos de ação bombásticos e cinematográficos seriam o caminho para o futuro. Ryse, que era exatamente isso, foi criticado duramente pela imprensa especializada. E daí as desenvolvedoras se afastaram totalmente dessa linha, rumo à trindade RPG/mundo aberto/soulslikes. Entra Trek to Yomi.
ANÁLISE TREK TO YOMI
Eu diria que Trek to Yomi é exatamente o que Ghost of Tsushima, com seu Kurosawa mode, gostaria de ser. E talvez tenha falhado nessa ambição justamente pelo seu orçamento quase infinito. Afinal, um jogo com tamanhas ambições hoje em dia precisava ser mundo aberto, RPG, soulslike ou pelo menos um dos três. Trek to Yomi, mais um fruto da excelente parceria entre a Flying Wild Hog e a Devolver Digital, está livre desse tipo de grilhão. E assim pode se concentrar em sua visão criativa, em ser um jogo de ação que remete diretamente aos filmes de samurai dos anos 50 e 60. É o verdadeiro Kurosawa mode.
O QUE É TREK TO YOMI?
Trek to Yomi é um beat’em up / hack and slash que combina exploração 3D com combate em 2D. A exploração tem caminho livre com câmeras mais ou menos fixas, estilo Resident Evil I.
O mundo é dividido em telas interconectadas. E nas telas que tem combate, o movimento é limitado para “esquerda/direita”, ainda que as câmeras possam mostrar ângulos mais estilosos. E daí você precisa vencer todos os inimigos para prosseguir, como em um Streets of Rage tradicional.
Aliás, já que citamos um beat’em up clássico da Sega, deixa eu falar de outro que Trek to Yomi me lembrou bastante: Golden Axe. Lembra como, no arcade de Golden Axe, você entrava nas vilas e via as vítimas fugindo, e os inimigos torturando os civis? Isso era muito impressionante naquela época, pois trazia um quê de narrativa a uma mídia até então bem limitada nesse aspecto (pelo menos sem o uso de textos). Trek To Yomi causa a mesma sensação na tecnologia de hoje que Golden Axe causava no fim dos anos 80.
ANÁLISE TREK TO YOMI: PORRADA NARRATIVA
Trek to Yomi é um jogo altamente narrativo, e consegue fazer isso sem ser cheio de cutscenes. Enquanto você passa pela vila, os civis falam com você, pedem ajuda, te guiam para onde os vilões estão. Ou então você pode ver os próprios vilões se vangloriando de atos inglórios ou mesmo os cometendo. Isso fez com que eu pensasse que um novo Golden Axe, feito com criatividade, e não apenas com nostalgia, seria assim – ao contrário de Streets of Rage 4, que basicamente faz o que a série sempre fez.
O resultado é que Streets of Rage 4 é ótimo, mas não especialmente criativo. Ele é básico. Trek to Yomi vai muito além do básico, e daí entra o lado que me faltava na indústria atual: ele me impressionou durante toda sua campanha. Veja só isso.
E sabe por que ele impressiona tanto, até mais do que jogos como Ghost of Tsushima ou The Last of Us Part II? Por causa do uso que faz de suas limitações.
AS LIMITAÇÕES DE TREK TO YOMI
Muitos jogos querem parecer cinema. Mas a maior parte deles quer parecer cinema moderno. Trek To Yomi, por outro lado, tem como sua principal inspiração o cinema de 70 anos atrás. Emular isso hoje em dia, com as atuais limitações técnicas da tecnologia gamer, é perfeitamente viável. E ele consegue isso justamente pegando as limitações dos anos 50 e as abraçando.
Você já percebeu pelas imagens que Trek to Yomi é em preto e branco. Ele tem também granulado e bloom, que podem ser desligados, mas que fazem parte da experiência visual (então recomendo não desligar). Essas coisas, que atuam como “interferência” na qualidade da imagem, são vitais para fazer Trek to Yomi parecer um filme.
ANÁLISE TREK TO YOMI E A INTERFERÊNCIA QUE AUMENTA
Com seus gráficos em alta resolução e animações elaboradas, um The Last of Us Pt II da vida é muito mais caro e trabalhoso. Porém, tem muito mais “cara de videogame”. Você pode até se impressionar com The Last of Us – e eu sem dúvida me impressionei – mas não vai se sentir assistindo a um filme. Trek to Yomi, com muito menos dinheiro e trabalho técnico, mas com uma quantidade enorme de coração, conseguiu. E o resultado é de deixar boquiaberto o tempo todo.
Se fosse colorido e mais “nítido”, Trek to Yomi ficaria muito menos especial. Provavelmente ia ter cara de um bom jogo indie. Mas do jeito que foi feito está entre os jogos mais belos e impressionantes desde Ryse. Digo mais, acho que não tinha a sensação de “jogar um filme” neste nível desde a época do Sega-CD e da moda dos FMV, como Sewer Shark e Night Trap.
Talvez a música seja menos impressionante, mas é igualmente perfeita. Claro, é mais fácil fazer uma trilha sonora com instrumentos asiáticos típicos do que recriar a tecnologia cinematográfica antiga. Mas as músicas são lindas, contribuem muito para a atmosfera e para o prazer de explorar esse mundo. Eu gostaria muito de ter essa trilha em MP3, mas infelizmente, este não é um dos jogos que a inclui no pacote.
APRESENTAÇÃO É LINDA, MAS E O GAMEPLAY?
A questão é que nada adianta o jogo ser lindo e tecnicamente impressionante se for chato de jogar. Vide qualquer lançamento recente da Ubisoft. E a soma da apresentação absurda com um gameplay delicioso é o que torna Trek to Yomi meu GOTY pessoal. Para começar, eu já vi vários games que combinam gameplay em 3D e 2D. Mas não me lembro de um em que a exploração seja totalmente 3D e o combate 2D. E eu amei isso.
O combate também é bem bacana e diferenciado. Os inimigos em geral morrem bem rápido, mas você também. Quando os vilões ficam mais resistentes, você já estará craque em administrar seus recursos. Em especial, usar combos que deixa a galera tonta e terminando com finalizações que recuperam vida. É assim que você se mantém vivo em batalhas mais longas, contra vários meliantes ao mesmo tempo.
O impacto de cada golpe, assim como a defesa dinâmica, que faz o personagem bloquear “da forma certa” com um único toque de botão, contribuem para o visual absurdamente realista. E também para que cada ataque desferido ou recebido seja gostoso. Pois é, até apanhar em Trek to Yomi é bom.
ANÁLISE TREK TO YOMI: DIFICULDADE PERFEITA
Eu esperava que Trek to Yomi, assim como qualquer jogo de ação dos últimos cinco ou mais anos, tivesse aquele tempero especial e inevitável. Você sabe do que estou falando, não sabe? Que o nosso camaradinha, o chef Jose Marques, tivesse participado do desenvolvimento.
Felizmente, o senhor Marques e, mais importante, seu pipi, não dão as caras por aqui. Trek to Yomi não é babaca. Eles quer ser jogado por todo mundo que se interessar, sem gatekeeping ou git gud. Eu joguei na dificuldade padrão, e achei perfeitamente tunado para mim. Eu morri bastante, mas nunca senti que o jogo ficou difícil demais, ou que não tinha chance de ganhar. Os checkpoints são frequentes e ainda dá para trocar de dificuldade a qualquer momento, para quem quiser mais ou menos desafio. Então este é um daqueles raros jogos em 2022 que qualquer pessoa pode jogar. E acredita que dá até para pausar? O que mais essa indústria vai inventar, não é mesmo? Opções de dificuldade e pausa. O futuro é mesmo mágico.
Trek to Yomi parece bom demais para ser verdade, não é? Como lançaram algo assim em 2022, e não em 2009? Mas lançaram. E de fato chega perto – muito perto – da perfeição. Eu sinceramente não esperava que um jogo fosse capaz de me divertir e me impressionar tanto nesse ponto da minha vida, em que a industria deixou os meus gêneros preferidos para trás. Mas cá estamos. E durante toda minha campanha, pensei comigo mesmo “Trek to Yomi vai ter que fazer alguma besteira muito grande para não levar o Selo Delfiano Supremo“. Bom…
Trek to Yomi comete dois pecados mortais nos seus últimos minutos.
PECADO 1: CHEFE FINAL DUPLO SEM CHECKPOINT
O último chefe é dividido em duas lutas. E você precisa vencer ambas as lutas na mesma vida. Assim, morrer para o último chefe, exige que você luta – e vença – o penúltimo para tentar de novo. As batalhas em si não são tão longas, chatas e entediantes quanto as que costumamos ver na From Software. Mas não muda o fato de que, para terminar Trek to Yomi, eu precisei repetir a luta contra o penúltimo chefe mais de 15 vezes. E isso é um saco. Eu odeio repetição.
Foi o único momento em toda a campanha que eu pensei em diminuir a dificuldade. Não porque estava difícil demais, mas porque eu estava de saco cheio de vencer o penúltimo chefe tantas vezes e queria me livrar disso logo. Você sabe, querer “se livrar” de um jogo é a pior sensação que um gamer pode ter. E poderia ter sido perfeitamente evitado – e ter garantido o Selo Delfiano Supremo – com um simples checkpoint entre as batalhas.
PECADO 2: TCHAU, SAVE!
A segunda coisa chata é que terminar o jogo simplesmente APAGA SEU SAVE. Durante minha campanha, eu só não encontrei dois colecionáveis. Então estava animado para usar um level select e fazer a rapa depois. Mas não há level select nem new game plus. Depois de terminar, seu save some totalmente, e você tem apenas a opção de reiniciar uma nova história do zero, resetando totalmente suas habilidades e colecionáveis.
Na segunda campanha, uma nova dificuldade é destravada, mas não dá para escolher jogar de novo apenas seus pontos preferidos da campanha, e nem começar um jogo com todos seus golpes. É tipo uma versão turbinada e mais babaca daquilo que a Nintendo costuma fazer. Mas eu provavelmente vou jogar Trek to Yomi muitas vezes na minha vida. Então isso não é tão importante. O que custou o Selo ao jogo foi mesmo os dois chefes seguidos sem checkpoint.
TREK TO YOMI É MEU GOTY!
No final das contas, não pude justificar dar o Selo da perfeição para um jogo com tamanha falha. Mas isso não muda o fato de que eu não me impressionava e me divertia tanto com absolutamente nada desde Ryse: Son of Rome.
Assim, vou ficar sinceramente muito surpreso se Trek to Yomi não encabeçar minha lista de melhores games de 2022. Mas até o fim do ano ainda tem chão. Será que isso muda até dezembro? Mantenha-se delfonado!