Antes de iniciar essa análise Martha is Dead, permita-me uma contextualização. Eu sou um cara firmemente contra qualquer tipo de violência na vida real. Mas como todo ser humano é um poço de contradições, eu adoro violência e histórias pesadas NA FICÇÃO. De fato, terror é um dos meus gêneros preferidos. E, como um macaco velho apaixonado por cultura e pelo gênero, é muito difícil me impressionar. Pois, meu amigo, Martha is Dead conseguiu.
UM POUCO DE CONTEXTO SOBRE MARTHA IS DEAD
Algumas semanas antes do lançamento de Martha is Dead, a desenvolvedora LKA divulgou um comunicado dizendo que a Playstation exigiu mudanças no jogo. O comunicado é um tanto aberto. Não se sabe até o fechamento dessa matéria se sequências inteiras foram cortadas, ou se apenas tiraram a interatividade delas. Mas o fato é que seja lá o que foi modificado, aconteceu apenas nas versões de Playstation. No Xbox e no Windows o jogo continua como originalmente planejado.
Eu estava com um pedido para cobrir Martha is Dead no PS5 em aberto já há vários meses. Quando fiquei sabendo disso, imediatamente cancelei o pedido e mudei a versão solicitada para a de Xbox Series X. Afinal, queria jogar a visão original para fazer um texto de acordo com o que os criadores planejaram.
ANÁLISE MARTHA IS DEAD
Martha is Dead é semelhante a um point and click em primeira pessoa. Muita gente deve se lembrar do primeiro Resident Evil ao jogá-lo, mas o fato de não existir combate ou “fracasso” o aproxima mais de um dos meus jogos preferidos de todos os tempos: Phantasmagoria.
Outra semelhança com o clássico escrito por Roberta Williams é que toda a história acontece em uma casa isolada e nos arredores dela. E os arredores têm coisas como cemitério, floresta e igreja.
Você controla a jovem Giulia, em primeira pessoa. Mas o gameplay em si não é muito diferente do de Phantasmagoria. Você vai clicar em detalhes do cenário, ouvir os comentários da protagonista, pegar alguns itens e usá-los em soluções de quebra-cabeças. É um jogo bem tradicional, e até antigo, mas a sua história é MUITO pesada.
A HISTÓRIA DE MARTHA IS DEAD
O jogo começa com Giulia encontrando um corpo no lago. É o corpo de Martha, sua irmã gêmea surda. Quando os pais encontram as duas, se confundem e acreditam que a que morreu é Giulia. Giulia não os corrige, e então se vê obrigada a fingir ser a falecida irmã. Para sempre.
Isso já é horrível. Fingir uma deficiência não é legal. E você já deve imaginar que o fato de os outros acharem que ela é surda significa que ela vai ouvir coisas que não deveria ouvir. A coisa também exige uma certa suspensão de descrença. Eu cheguei a conviver um bom tempo com amigos que eram irmão gêmeos idênticos. E embora eu não conseguisse diferenciá-los em fotos, pessoalmente nunca os confundi. Sei lá, talvez o jeito, a voz, todas as pequenas individualidades que formam uma pessoa, os diferenciavam. E eu era só um amigo deles. Então é difícil acreditar que os próprios pais possam confundir duas jovens adultas. Mas essa é a história e, se você quiser ver o resto, precisa aceitar a premissa.
Uma coisa que achei bacana é que, apesar de a história acontecer durante a Segunda Guerra, não a conta do lado dos aliados. Martha is Dead é um jogo italiano (inclusive com o idioma original sendo italiano – e tem legendas em português brasileiro). E nós sabemos que a Itália estava do lado alemão na guerra. Assim, o pai de Giulia é um oficial do exército nazista. A parte política da história não é o foco – Giulia se mantém distante das motivações da guerra quase o tempo todo – mas ao mesmo tempo é um ar fresco ver uma história protagonizada por uma família que hoje a gente veria como vilã.
ANÁLISE MARTHA IS DEAD: PUZZLES BACANAS, MAS TAMBÉM OBTUSOS
Martha is Dead tem um cuidado mecânico e uma profundidade que não são costumeiros em point and clicks. Giulia é uma apaixonada por fotografia, e passa boa parte do jogo fotografando coisas. E daí você precisa revelar as fotos. Isso é feito em uma simulação bastante elaborada para um jogo do gênero, e mesmo assim os desenvolvedores optaram por colocar um aviso de que “o processo foi simplificado para o game”. Esse é um exemplo das atividades elaboradas, mas bacanas que você faz.
Uma outra atividade consideravelmente mais pentelha é o código morse. Você precisa mandar mensagens via código morse, escolhendo as palavras que passam o que quer dizer de forma concisa. E daí deve usar os botões do controle para simular os barulhos reais daquelas letras em código. No caso, através de apertar os botões de forma curta ou longa.
O problema é quando o outro lado responde. Você vai receber várias mensagens muito longas e deve então usar a cheat sheet fornecida para traduzir. O problema é que a tradução aparece muito pequena na tela, mesmo em uma TV de 65 polegadas, e eu não conseguia entendê-la. Acabei usando esse tradutor online para conseguir passar. Sim, eu precisei usar um tradutor REAL de código morse para avançar no jogo. E não, isso não foi legal.
ANÁLISE MARTHA IS DEAD E O PESO DE VIVER
Lembro de, em 2008, quando fui cobrir o lançamento do retorno de José Mojica Marins à direção, de ter achado que aquele era o filme mais violento a que já tinha assistido. Bom, videogames sempre foram mais violentos do que cinema. E, dessa forma, eu não diria que Martha is Dead é mais gore do que um God of War Ascension, por exemplo. Mas o peso dele está na temática, e nas coisas que acontecem na história, mais do que em extrapolação gráfica.
Eu não vou entrar em detalhes aqui, mas posso adiantar que a história traz cenas fortes de crueldade contra crianças e adultos e até violação de cadáveres (de forma interativa ainda por cima). Quando eu pensava que já tinha visto tudo de horrível que Martha is Dead me mostraria, ele dava um upgrade e ficava ainda mais impressionante. Em mais de um momento, eu gemi de desgosto com as coisas que estava vendo.
O curioso é que boa parte das cenas mais pesadas acontecem em um teatrinho de marionetes. É uma estética fofa para coisas horríveis, mas é o jeito que Giulia recupera memórias reprimidas. E daí você já pode imaginar que, se foram reprimidas, não sai boa coisa daí. Também causa estranhamento que no último capítulo ele avisa de uma cena pesada, e pergunta se você quer ver a versão censurada. Essa cena em questão é bem leve perto de tudo que veio antes e foi mostrado. E a diferença entre a censurada e a uncut é que a câmera sobe na hora do machucado para não mostrar o ferimento.
Não vou me estender mais nisso, porque o ideal é mesmo ver sem saber o que vem por aí. Mas pense bem antes de escolher jogar Martha is Dead, pois é um jogo muito pesado, que faz você se sentir mal com sua história.
O VALOR DE CHOCAR
Vale fazer o aviso, pois Martha is Dead não é um jogo comercial. A violência que você vê aqui não é aquela bonita de um filme oriental de kung fu, ou a fantasia de poder de um bom hack and slash. Aqui a coisa é muito mais séria, realista e chocante. Compreensível porque a Playstation não quis o jogo dessa forma em sua loja, mas ao mesmo tempo eu não me arrependi de ter jogado a versão uncut de Xbox Series X.
É difícil me chocar, e Martha is Dead conseguiu isso. Mas eu vejo com bons olhos. Por mais que eu também adore historinhas fofas como Wall-E, vejo um grande valor artístico em obras culturais que conseguem nos arrancar de nossas zonas de conforto. Isso é algo que vemos no cinema em alguns cineastas não comerciais específicos (Lars Von Trier vem à mente, embora você saiba que eu não gosto da obra dele). Mas em games, uma indústria tão comercial e colaborativa, normalmente essas ideias morrem no meio do caminho. De alguma forma, Martha is Dead foi preservado e lançado como a experiência crua que foi originalmente planejada para ser. Então se você acha que tem estômago para algo sem medo de chocar, é uma experiência única e altamente recomendada.