Creio que todos estejam familiarizados com o conceito dos Direitos Humanos, caso contrário, o primeiro artigo da Declaração Universal dos Direitos do Homem da ONU é bem claro e objetivo:
“Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. Dotados de razão e de consciência, devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade.”
Apenas nesta frase temos informação suficiente para substituir este meu longo texto. Mas vivemos em um país onde tudo precisa ser explicado nos mínimos detalhes, já que até mesmo as leis que regem o progresso da nação são ambíguas e cheias de possibilidades para interpretação.
Acredito até hoje que, nas aulas de interpretação de texto, lá no ensino fundamental, deveríamos estudar a constituição no lugar de Machado de Assis. O senhor Assis e sua trupe de escritores “obrigatórios” são coesos demais. Assim fica fácil.
NUVENS ESCURAS NO CÉU
“O país está passando por um momento delicado”. Esta frase é geralmente usada para revelar ao povo que o país está passando por alguma crise financeira. Eu a estou usando para alertar a quem ler este texto que estamos passando por uma crise de identidade.
O Brasil é um país com mais de 190 milhões de habitantes. Sabe-se que entre eles existem, basicamente, pessoas que vivem suas vidas e pessoas que vigiam a vida dos outros. Este segundo grupo se subdivide em pessoas que fingem não se importar e pessoas que acreditam possuir o direito de intervir.
A crise se iniciou no momento em que o grupo dos vigias falantes começou a aumentar e tomar cargos de poder. Assim os que falavam começaram a implantar coragem e certezas duvidosas nos corações daqueles que antes apenas vigiavam, convertendo-os automaticamente a vigias falantes. Um ciclo sem fim.
Os vigias falantes estão presentes em todos os lugares, independente de religião, cor, sexo, idade ou orientação sexual. Mas ultimamente eles têm se destacado em um habitat específico: Brasília.
Nunca se discutiu tanto os direitos de minorias como homossexuais, mulheres e negros, e muito disso se deve aos recentes acontecimentos na política nacional.
Na última semana de fevereiro, o deputado Marco Feliciano, do Partido Social Cristão de São Paulo, famoso por seus discursos de ódio contra homossexuais e negros, foi indicado como forte candidato a assumir a liderança da Comissão de Direitos Humanos.
A votação deveria ter ocorrido no dia seis de março, mas foi impedida por protestos. No dia sete de março, às 9h15 da manhã, foi dado o início da votação com todos os acessos à sala fechados “para impedir a entrada de manifestantes”, segundo o G1. Marco Feliciano foi eleito com 11 votos de 18 deputados.
O deputado é autor de verdadeiras pérolas do preconceito nacional. Ele afirma que “sobre o continente africano repousa a maldição do paganismo, ocultismo, misérias, doenças oriundas de lá: ebola, AIDS, fome… etc” e que “a AIDS é o câncer gay”, por exemplo. O suficiente para desqualificar alguém que preside uma comissão que deveria defender os direitos das minorias. Certo?
SEMPRE EM NOME DE ALGUÉM
O deputado Feliciano é pastor evangélico e isso é um fato que tem levantado muitas discussões inflamadas no estilo “todos contra todos” envolvendo representantes de várias religiões e ateus. Sim, é fato que pregar contra o aborto e a homossexualidade são motivações religiosas declaradas abertamente pelo homem em questão. Mas, quando o assunto é fé (e a constituição), tudo é uma questão de interpretação.
Portanto, seria errado da minha parte criticar uma religião inteira sabendo que existem pessoas que não interpretam a bíblia da mesma forma que o deputado. A crítica contida neste texto é totalmente direcionada a este homem que faz uso de sua interpretação como justificativa para os seus preconceitos mais profundos.
O ponto aqui não é o fato de o deputado ser cristão e pastor evangélico, a questão é o preconceito palpável que ele exala pelos poros e principalmente pela boca. Um evangélico liderando a Comissão de Direitos Humanos? Ok. Uma criatura racista e homofóbica ocupando o mesmo cargo? Bem, aí o assunto já é outro e independe totalmente da fé do sujeito em questão. Se ele fosse homossexual, ateu e pregasse o ódio aos heterossexuais, tampouco me agradaria.
O que incomoda quando a fé de uma pessoa se mostra o principal norteador de suas decisões (e declarações também são decisões) em cargos de poder é que as palavras têm força e elas se disseminam com muita facilidade. É perturbador saber que o deputado prega para centenas de pessoas em seus cultos à sua própria fé, e que, se 30 destes fiéis retornarem para o próximo encontro, serão mais 30 vigias falantes… e votantes.
É como comprar o creme dental caro indicado pelo moço simpático que se vê na televisão todos os dias só porque ele disse que é bom, sem se importar com a equipe ortodôntica por trás daquele sorriso branco e brilhante.
A BRUXA
A nova bruxaria a ser queimada tem nome: homossexualidade. Os ataques do deputado saem para todos os lados atingindo, negros, mulheres e até mesmo o John Lennon, mas o alvo favorito é, sem dúvida, o movimento LGBT.
No programa Agora é Tarde da Band, comandado por Danilo Gentili, que foi ao ar no final de março, Marco Feliciano declarou que acha um absurdo que sua filha veja dois homens se beijando na rua. Quando Gentili perguntou como ele agiria se tivesse um filho homossexual, o deputado respondeu dizendo que “uma criança que tem em casa um pai e uma mãe que se amam dificilmente vai se desvirtuar.”.
O deputado afirma que homossexualidade é uma escolha, em seguida afirma que é uma desvirtude, e já se declarou publicamente a favor da chamada “cura gay”. Isto são apenas alguns exemplos da intolerância pregada por Feliciano.
Mas por que o Brasil não se manifesta quando o assunto é o mensalão, a roubalheira, a saúde precária, a educação quase nula? Estas são batalhas longas, não surgiram há alguns meses. Já são anos torcendo para que as leis funcionem e os responsáveis sejam presos. Embora precários e estagnados, os setores da saúde e da educação já evoluíram bastante em relação há alguns anos. São batalhas que ainda não terminaram e ainda vão demorar.
Já o direito de poder viver com quem se ama, ter filhos e formar uma família, ou simplesmente escolher não ter nada disso, é natural. Nasceu comigo, com você e com várias outras espécies que mantêm relações, homossexuais ou não. Impedir que um dia meus filhos sejam livres para fazer tais escolhas é um retrocesso digno de ser chamado de inquisição. É jogar na fogueira o direito primordial de simplesmente ser.
Se formos seguir a lógica da “prioridade dos problemas” do nosso país, os políticos deveriam se preocupar mais com essas questões importantíssimas para a população de uma forma geral, e deixar de se preocupar em curar a homossexualidade (por exemplo), que sequer é uma doença.
ANTES QUE TUDO VIRE CINZAS
Ninguém quer ser amado por todos. Ninguém quer ser recebido com sorrisos amarelos e flores por onde passa. O que todos querem é respeito. É o direito de ir e vir sem precisar ouvir gracinhas no meio do caminho, ou levar um lâmpada fluorescente na cabeça. É o direito de ser o que quiser sem ter que passar por retaliação pública ou agressão física.
Como presidente eleito da Comissão de Direitos Humanos da câmara dos deputados, Marco Feliciano tem o poder de colocar ou retirar da pauta projetos de lei que envolvam direitos humanos e de minorias, como por exemplo a PLC122, que prevê a ampliação da L7716 abrangendo também o preconceito por identidade de gênero, orientação sexual, idade e deficiência. Como vamos confiar em alguém que afirmou que a comissão em questão se tornou um centro de “privilégios” para homossexuais?
Não faz sentido.
Como cidadã brasileira, mulher e heterossexual estou me sentindo afrontada por esta decisão da câmara de deputados. E você?