Há muito tempo quero escrever este texto. Acontecimentos quase diários têm feito minha cabeça fervilhar com opiniões sobre o assunto que eu mesma nunca havia cogitado antes, talvez pela minha educação machista. Sim, até pouco tempo atrás eu era uma mulher machista. Saber disso certamente vai lhe ajudar a entender este texto.
No dia 11 de janeiro, publiquei aqui no DELFOS um texto deveras polêmico sobre o caso da garota de 21 anos que cometeu suicídio em São Paulo após supostamente ter sido estuprada por um colega de trabalho na festa da empresa. Algumas pessoas me chamaram de corajosa, outras de inocente, outras ainda disseram que eu desconsiderei o que acontece em outras realidades que não a da moça. Infelizmente, aquilo era apenas mais um exemplo do que acontece todos os dias na nossa cara. Não se engane, não sou ingênua a ponto de pensar o contrário.
Recentemente, outro caso na Índia chocou o mundo. A estudante que foi atacada e violentada com uma barra de ferro é outro exemplo claro de que a violência contra a mulher é um assunto mundial. Mas, este e o caso da estudante de São Paulo foram acontecimentos escancarados (não que o estupro tenha a discrição como regra), tiveram repercussão na mídia e não há como ocultar a polêmica. Quero, através deste texto, voltar as atenções para o que acontece ao nosso redor, para algumas coisas consideradas insignificantes, mas que servem como estopim para que a violência contra a mulher se torne um problema digno de mobilização em massa.
O CRUEL SE TORNA BANAL
Sei que é clichê colocar a culpa de tudo na mídia, no governo e no povo, mas infelizmente somos um país que vive de clichês e, sim, a televisão é lamentavelmente um dos maiores fornecedores de munição para a cultura do estupro.
A variedade é grande. São programas de humor que julgam divertido uma mulher fora dos padrões de beleza impostos pela sociedade sofrendo assédio em um metrô enquanto ouve alguém dizendo que ela devia ser grata por um homem demonstrar desejo sexual por ela. Programas ditos infantis com mulheres minimamente vestidas rebolando e fazendo papel de objeto de desejo. Propagandas mostrando que é supernatural e divertido sair por aí arrancando o biquíni de mulheres na praia.
As novelas. Céus, o que falar das novelas? Elas até mesmo merecem um parágrafo à parte. Lembro-me de uma personagem que ouviu um brado de “Gostosa!” na rua e o recebeu com gratidão. Pobre atriz! Deve ser difícil interpretar júbilo em uma situação que só causa constrangimentos e sentimento de invasão. Mas depois vamos falar deste assunto com mais detalhes.
É claro que não podemos dizer que tudo parte da TV e do rádio. Afinal a mídia é controlada por seres humanos. Mas ambos certamente têm um grande poder de potencializar o que já é popular. A internet, por outro lado, é literalmente a voz do povo, e é exatamente nela que podemos ver os resultados assustadores da verdadeira lavagem cerebral promovida pela mentalidade aqui abordada.
De qualquer forma, todos os meios de comunicação populares são utilizados como ferramentas para a banalização de algo gravíssimo como o estupro. Os consumidores dessas mídias ficam tão habituados a ver mulheres minimizadas através de piadas e comerciais que passam a não enxergar a crueldade escondida pelo humor. É como o já antigo e batido caso do comediante e sua piada sobre “mulher feia ter o dever de agradecer por ser estuprada”.
INVASÃO NÃO É ELOGIO
Mas afinal, onde está então esta tal cultura que sequer percebemos, mas controla praticamente tudo, inclusive a tal da mídia? Vou começar colocando no banco do réu ela que está presente em construções, esquinas, estradas, festas, calçadas, letras de música, etc. A cantada.
Defendida por muitos como apenas um elogio, ela está por toda parte, é grosseira, invasiva e desrespeitosa. Que direito tem o homem de invadir o espaço da mulher gritando grosserias no meio da rua? Se um homem pode me chamar de gostosa (e estou sendo branda, pois já ouvi coisas muito piores) no meio da rua, eu também posso sair ofendendo com termos de baixo calão, não é? A premissa é a mesma. É invasão de espaço de qualquer forma!
“Ah, Tis. Mas o homem estava certamente elogiando enquanto você estaria ofendendo.” Rá! É aqui que mora o machismo. É claro que eu tenho que aguentar esse tipo de agressão, né? Afinal eu sou mulher e provavelmente indigna de respeito por estar usando alguma roupa provocante. Já o pobre agressor, “tadinho” dele, só estava fazendo seu papel de macho alfa perante a sociedade, ridicularizando e diminuindo um objeto com peitos que passava por ali.
Sim. É exatamente assim que uma mulher se sente ao ser “elogiada” na rua. Algumas fingem não ouvir, outras se revoltam, e as poucas que parecem gostar são tão vítimas do machismo quanto as outras, pois foram infectadas por ele, acreditando que homem é assim mesmo e é besteira lutar contra. Não, homem não é assim, o machismo é que é.
O MACHISMO NOSSO DE CADA DIA
O abuso nasce do machismo intrínseco na cabeça de uma sociedade inteira. Não apenas homens. Não se engane achando que machismo é sinônimo de masculino. Não é. Existem mulheres machistas e elas são tão disseminadoras desta cultura quanto homens machistas.
Dia desses, em uma rede social, uma menina acima do peso postou uma foto sua seminua com a legenda “Eu sou linda!”. É triste dizer isso, mas eu já esperava comentários machistas de homens, e eles vieram. No entanto, qual foi minha surpresa quando vi mulheres dizendo absurdos como “Vai se tratar! Gostosa sou eu que tenho corpão! Tira isso aí!”. Traduzindo o que esta criatura disse: “Você não merece se achar bonita porque eu é que sigo os padrões de beleza impostos pela sociedade e sei que sou exatamente o que os homens desejam. Você não tem o direito de expor o seu próprio corpo onde quer que seja porque sua aparência me ofende!”. Triste. Mais triste ainda é saber que esta pessoa só fez isso para conseguir admiração de alguns homens tão preconceituosos e machistas quanto ela. Mal sabe o quanto deve ao feminismo e o quanto ela mesma ainda é uma vítima daquilo que tem guiado suas palavras.
A mulher machista desempenha também um papel ainda mais prejudicial: o de mãe. A maioria dos pais (e estou incluindo as mães) sabe que existe uma maneira padrão de criar os filhos, que ninguém nunca precisou escrever em lugar algum. Menino tem que ser criado solto, pode fazer o que quiser desde que seja heterossexual, enquanto a menina tem que sentar de perna fechada quando estiver de saia, manter o quarto limpo e aprender desde cedo com a mãe como é que se mantém uma casa limpa. Ah sim, e ela também deve ser heterossexual.
Assim está formado o casal perfeito. A moça submissa que deve cuidar do lar, dos filhos e conceder prazer ao marido quando o mesmo solicitar (mesmo que ela não queira). E o moço que deve trabalhar, sustentar a família, servir à pátria e comparecer aos seus deveres de marido na cama. Duas vítimas do machismo.
A VIOLÊNCIA CONSIDERADA COISA DA IDADE
Mas nem tudo neste ciclo fica a cargo da família. Um dia a criança cresce, vai para a escola e lá é exposta a mais um fator crucial para que a cultura do estupro siga acontecendo: outras pessoas criadas da mesma forma. E então chega a adolescência e a loucura hormonal e é aqui que uma vida inteira de “treinamento” aflora.
A violência começa geralmente nesta época, com a chamada mão boba. O menino está maravilhado com a descoberta da Playboy e do que a sua própria mão é capaz de fazer por ele. Então ele descobre que a mulher da revista é bastante parecida com as colegas que estão com o corpo em pleno amadurecimento. “Por que não, se meu pai diz que é supernormal e meus amigos me chamam de gay se eu não passar a mão nas meninas?”.
Os pais do menino dirão que é coisa da idade (acredite eu já vi isso), se houver alguma reclamação por parte da vítima. Mas, geralmente a vergonha é maior do que a vontade de justiça e o agressor sai impune, certo de que pode fazer o que quiser com o corpo feminino, certo de que é direito seu.
Você acha que tocar no corpo de uma mulher sem consentimento não é violência? Eu, assim como tantas outras mulheres, já passei por isso e digo que sim, é violência, e já é motivo para certos traumas.
Se você ainda tem dúvidas, coloque-se no lugar de uma menina que de repente passa a ser assediada na rua, ouve coisas horríveis sobre sexo. E ainda palavras agressivas e ofensas quando uma provocação não é respondida. A mesma menina que já foi alvo de mãos passando pelo seu corpo sem permissão e não entende por que eles acham que têm o direito de fazer o que fazem. Quando você sentir vontade de gritar, terá entendido o que é ser uma mulher e ter medo de estupro todos os dias. Se você continua achando tudo isso uma grande frescura, eu tenho medo de você.
A SOCIEDADE APROVA O ESTUPRO
“Mas, Tis, eu posso até ter tido esse tipo de criação, mas nunca estuprei ninguém!” Não estou dizendo que a sociedade forma estupradores. O estupro exige um estudo mais profundo e provavelmente é causado por coisa mais graves do que as que eu citei neste texto. Estou dizendo com todas as letras que a sociedade aprova o estupro. Todos os pequenos fatores que eu apresentei aqui reforçam o costume de culpar a vítima e inocentar o agressor.
Se uma mulher é assediada na rua é porque ela estava usando uma roupa muito curta. Se uma mulher é vítima de passadas de mão, é porque ela estava se oferecendo. Se uma mulher foi estuprada, é porque deve ter provocado, foi andar naquele lugar àquela hora e todas as desculpas anteriores juntas. O estupro é aceito como “natureza” do homem, a mulher é que não devia ter provocado.
É mais fácil questionar e culpar a vítima, enquanto o agressor é esquecido. É mais fácil seguir educando a mulher a ser submissa e reservada “para protegê-la” do que mudar a maneira como educamos nossos homens ensinando-os a controlar seus impulsos e respeitar a mulher como uma igual. Assim segue o ciclo da cultura do estupro.
O bom é ver quantas vítimas, hoje, têm coragem de contar suas histórias e alertar outras mulheres dos perigos que nos cercam, muitas vezes dentro de casa. Aos poucos vamos enfraquecendo este vício social, e um dia será mais uma vitória, assim como o direito ao voto, ao estudo, ao divórcio, à escolha.
Se mesmo depois de ter lido tudo isto, você ainda acha que estou sendo radical, tente a partir de hoje observar estes pontos que apontei no texto e, em seguida, observe a reação de quem está absorvendo a informação. Você talvez entenda o quanto pode ser cruel, por exemplo, rir de uma piada sobre estupro.