Eu poderia começar esta resenha dizendo que 2017 tem sido um grande ano para boas adaptações de obras do Stephen King, além de umas não tão boas assim. Mas você provavelmente já sabe disso. E, se não sabia, acabei te contando mesmo assim. Agora vamos ao que interessa.

Jogo Perigoso é um filme de terror psicológico produzido pela Netflix, que toma como base um trabalho pouco conhecido de King, escrito lá em 1992 e publicado em terras tupiniquins pela primeira vez apenas em 2000.

A trama é relativamente simples e se distancia dos elementos mais sobrenaturais que costumam povoar as histórias do autor. Gerald e Jessie são um casal de seus 40 e tantos anos que, em busca de dar uma apimentada na relação, decide passar um fim de semana afastado de tudo e todos, naquele clássico casebre-no-fim-do-mundo-sem-ninguém-por-perto.

Chegando lá, Gerald revela que trouxe um par de algemas (genuínas!, ele faz questão de lembrar) com o qual deseja prender a esposa à cama na hora dos finalmentes. Ainda que relutante, Jessie aceita a proposta do marido e permite que ele a algeme na cabeceira.

Jogo Perigoso, Delfos
Parece uma ótima ideia.

QUE COMECEM OS JOGOS

Não demora muito para que a pretensa sensualidade do momento se transforme em agonia. Jessie pede que ele a solte, por não estar se sentindo confortável com aquilo, mas Gerald insiste em seu perigoso joguinho (ha) e se recusa a soltá-la.

Os dois iniciam uma acalorada discussão e, no estresse do momento (e com um Viagrão na mente), Gerald é acometido por um ataque cardíaco e bate as botas ali mesmo, em cima da cama, antes de poder (ou querer) libertar Jessie.

O que se segue são momentos da mais pura tensão, enquanto Jessie lentamente percebe que ninguém virá socorrê-la até que seja tarde demais. Como se não bastasse estar por conta própria, na companhia do cadáver de seu marido e algemada à cama, ela ainda terá de lidar com um cão faminto que entra na casa, com a desidratação que a deixa cada vez mais próxima da morte e até mesmo com uma estranha figura que surge durante a noite para vigiá-la – um ser que pode ou não ser fruto de sua mente exausta.

CADA SEGUNDO CONTA

Ainda que seja o tipo de filme que se passa essencialmente em um único cenário, Jogo Perigoso consegue manter o ritmo e jamais cai na monotonia. Muito disso, em grande parte, deve-se aos constantes diálogos que Jessie estabelece com Gerald e consigo mesma enquanto está presa à cama. Um diálogo interno, mas que é retratado de maneira literal no filme: mesmo depois de morto, Gerald continua sendo um personagem atuante, ainda que não passe de uma representação do que Jessie imagina que ele diria se estivesse vivo.

Jogo Perigoso, Delfos
E esses diálogos não são muito reconfortantes.

Também auxilia na movimentação do filme a inserção de pequenos flashbacks que contam um pouco sobre o passado de Jessie e estão íntima e metaforicamente relacionados à situação em que ela se encontra. De início pensei que essas cenas seriam apenas um subterfúgio narrativo para escapar um pouco do ambiente do quarto, mas elas vão muito além disso.

Jogo Perigoso é um filme excelente, que acerta em tudo o que se propõe, mas eu não o recomendaria a qualquer um. É preciso ter um estômago forte para conseguir assisti-lo. E digo isso não pela violência gráfica, que é quase inexistente (pelo menos até os 20 minutos finais), mas pela forma como o enredo explora o pânico e a repulsa nos mais diferentes níveis da psique humana.

Olhando em retrospecto, acho que nunca vi um filme que conseguisse ser tão perturbador em camadas tão distintas: psicológica, física e emocional. Tudo ali parece ter sido calculado para dar ruim: o relacionamento frio entre Gerald e Jessie, o medo do escuro que a mulher sente quando percebe a noite caindo, a presença do cão que poderá atacá-la a qualquer momento, a sede e a fome, os constantes diálogos que ecoam em sua cabeça apenas para lembrá-la da morte iminente, as aparições do misterioso ser que surge em seu quarto após o anoitecer.

Senhora, você teria um minuto para falar sobre a morte?

Em última instância, existem tantas ameaças e terrores cercando a protagonista que as algemas acabam quase ficando em segundo plano – afastando-se muito, nesse sentido, de um filme como 127 Horas, apesar da premissa similar.

TENTE NÃO DESVIAR OS OLHOS

Assisti a Jogo Perigoso com minha namorada. Não somos pessoas particularmente sensíveis a filmes violentos ou de terror, mas em dado momento, faltando algo em torno de meia hora de filme, concordamos em dar uma pausa e assistir a algo mais leve antes de continuar, porque estávamos nos sentindo realmente mal com o que víamos. E esta aversão, ao contrário do que você poderia pensar, não teve nada a ver com as aflições que mencionei no parágrafo anterior, e sim com a subtrama dos flashbacks de Jessie. É bem pesado, bicho.

Dito isso, reconheço o mérito de um filme que causa tantas sensações no espectador. Ninguém sai incólume após assisti-lo. Existem várias cenas memoráveis, a atuação de Carla Gugino como Jessie é fenomenal e, com certeza, foi um dos maiores acertos da Netflix em 2017.

Jogo Perigoso, Delfos
Cujo, é você?

O final de Jogo Perigoso pode gerar controvérsias. Eu gostei dele, por motivos que não posso revelar. Mas há quem diga que o filme teria se beneficiado se rolasse uma supressão dos últimos dez minutos, que talvez acabem explicando mais do que deveriam sobre a trama. Até onde sei, o livro segue exatamente a mesma linha, e Stephen King é reconhecido por não ser lá muito bom em escrever finais (então a culpa seria dele, e não do diretor). Seja como for, eu não mudaria nada – tanto na trama quanto na execução do filme.

Se você já assistiu ou pretende assistir a Jogo Perigoso, fique à vontade para nos contar suas impressões nos comentários. Se você não assistiu e nem pretende assistir, eu entendo. É um filme para poucos, mas você não sabe o que está perdendo.