Existem alguns sinais pouco sutis para avisá-lo de que você está ficando velho: os cabelos brancos (ou a queda deles), aquela barriguinha que chega para ficar, o cansaço absurdo após subir alguns lances de escada e o fato de que um de seus discos favoritos acaba de completar 20 anos de idade, mesmo que para você ele continue soando como se tivesse sido lançado semana passada.
Estou falando, é claro, do Nirvana, o terror dos roqueiros farofas, a banda que popularizou o movimento grunge (que não era exatamente um movimento), as camisas de flanela, o rock vigoroso e desleixado calcado no Punk e no Hardcore e a depressão junkie como estilo de vida. Ah, os gloriosos anos 1990!
Mais especificamente, refiro-me a In Utero. Lançado em 13 de setembro de 1993, é o terceiro e último disco de estúdio da banda, visto que apenas alguns meses depois, já no começo de 1994, Kurt Cobain ficou de saco cheio e, ao invés de se aposentar e ir plantar batatas em algum canto remoto do planeta, achou que seria uma ideia melhor simplesmente engolir uma azeitona. Lógica não se discute, não é?
O objetivo desta matéria não é fazer uma simples resenha do disco. Isso seria muito mundano e você pode ler milhões delas internet afora. No DELFOS gostamos de fazer as coisas de modos diferentes (vai falar que você nunca percebeu? Estou fazendo uma matéria sobre o Nirvana para um site no qual a esmagadora maioria do público despreza a banda! Eu gosto de viver perigosamente).
O que pretendo é contar um pouco sobre o contexto de sua criação, com análises mais aprofundadas (como você só lê aqui) e curiosidades. E assim celebrar seus 20 anos em um artigo mais encorpado, de gente grande, como o próprio In Utero já se tornou. Então vamos nessa.
CREDIBILIDADE ALTERNATIVA X SUCESSO MAINSTREAM
O contexto em que o trio se encontrava antes da gravação de In Utero não poderia ser mais simples. Naquele momento, o Nirvana era a maior e mais importante banda de Rock do planeta. Nevermind, o segundo disco do grupo, vendeu milhões de cópias, a banda desbancou do topo das paradas ninguém menos que Michael Jackson (que naquela época, apesar de já ser uma figura bizarra, ainda era o rei do Pop e não apenas um personagem excêntrico). A popularidade do Nirvana era tanta que fez gerar interesse de público e crítica por várias outras bandas da região de Seattle, popularizando o assim chamado movimento grunge.
Para se ter uma ideia da importância dos caras, essa foi a última vez em que o Rock foi de fato um estilo musical de massa. E quanto a Nevermind, um monte de críticos o aponta até hoje como o último disco realmente relevante para a história do Rock. Não concordo exatamente com isso, mas esse viés convenientemente oportunista me ajuda a passar a noção de quanto eles eram importantes naquele começo de década.
Estavam no topo do mundo e colhendo os louros. Dinheiro, mulheres, drogas, bacon, guitarras cravejadas de diamantes e 277 toalhas brancas no camarim. Contudo, Kurt Cobain não estava feliz.
Claro, ele era um depressivo de carteirinha, mas o que de fato o incomodava no estouro de sua banda era justamente a magnitude alcançada. O Nirvana era a banda de Rock mais popular do mundo e Cobain se pelava de medo de perder a credibilidade indie conquistada quando ninguém conhecia os caras.
A grande maioria das bandas e músicos que ele admirava vinha da cena alternativa. Sua própria banda foi criada com o intuito de trafegar neste nicho. Era a onda dele. O fato de ela ter estourado foi um acidente de percurso imprevisível, tipo ganhar na loteria ou ser atingido por um raio. Do dia para a noite, aquele trio de sonoridade nervosa virou uma megabanda. Cobain tinha medo de perder o respeito dos colegas de cena e, sobretudo, de ser taxado por todos como “vendido”.
Basicamente, depois do furacão Nevermind, ele queria reduzir o tamanho de sua banda na cena musical, devolvendo-a a um lugar que ele achava mais condizente com suas origens e influências. Era impossível, claro, voltar ao que era na época de Bleach (1989), e ele sabia disso. Mas ao menos afastar os fãs de ocasião parecia algo viável.
A GÊNESE DO NOVO ÁLBUM
Para conseguir isso, era preciso primeiro ter um novo conjunto de canções. Elas nasceram basicamente em duas sessões de ensaios/improvisos/demos. A primeira em outubro de 1992 em Seattle, foi onde nasceram várias versões instrumentais das músicas que entrariam no novo disco.
E a segunda rolou em janeiro de 1993, durante a lendária passagem da banda pelo Brasil no festival Hollywood Rock. Mais especificamente, no Rio de Janeiro, nos estúdios da gravadora BMG Ariola. Inclusive a insuportável faixa Gallons of Rubbing Alcohol Flow Through the Strip, um longo e modorrento improviso, foi tirada diretamente dessa seção e incluída como faixa bônus nas versões não estadunidenses do disco. E nessas horas eu queria ter comprado meu CD na terra do tio Sam…
Mas enfim, com as ideias para o repertório do novo álbum no caderno e em fitas demo, era hora de desenvolvê-las e registrá-las em estúdio. Hora de trabalhar no disco pra valer.
ESTROFE, REFRÃO, ESTROFE
Kurt apontava o sucesso estrondoso de Nevermind não só às qualidades melódicas Pop soterradas pelas distorções de guitarra que as canções daquele disco possuíam, mas muito em parte pela produção de Butch Vig (também baterista do Garbage), que ressaltava justamente o lado mais melodioso e grudento de seu som. Ele pegou certa birra das técnicas que Vig usou em estúdio (como vocais dobrados, por exemplo) para atingir isso, e resolveu seguir um caminho diferente no álbum seguinte.
Ao invés de uma produção polida, o Nirvana queria então um som mais abrasivo e natural. Queria um caminho oposto ao que foi Nevermind. Basicamente, queria um estilo de produção e gravação mais condizente com uma banda de pequeno porte, algo que eles não eram mais, mas ansiavam por voltar a soar como uma.
O primeiro passo para isso foi contratar um novo produtor. Steve Albini era um dos principais produtores de bandas alternativas à época, tendo trabalhado com nomes como Pixies, Tad e The Jesus Lizard, todos admirados pelo trio. A presença de Albini na mesa de som ajudaria a trazer de volta a credibilidade indie que Kurt tanto temia ter perdido e moldaria um som completamente oposto ao que Butch Vig fizera no disco anterior.
Gravado rapidamente, em cerca de duas semanas, com a banda se dedicando nesse período exclusivamente ao registro das músicas, sem interferências externas, o som de fato ficou mais visceral. Talvez até demais…
SUICÍDIO… COMERCIAL
Você conhece essa história. Várias bandas têm aquele disco que eles fizeram exatamente do jeito que queriam, mas na hora de mostrá-lo para a gravadora, os executivos ficam de cabelo em pé, preocupados por ele ser pouco comercial. Este é um desses casos.
O pessoal da Geffen não ficou nada feliz com o que escutou. E as palavras “suicídio comercial” começaram a ecoar pela sala de reuniões e pelos corredores da gravadora como um mau agouro. Ânimos se exaltaram, assistentes foram humilhados (provavelmente) e cabeças de morcegos não foram arrancadas a dentadas, afinal, essa não é uma história do Ozzy Osbourne.
Após muito bate-boca, a gravadora queria que ao menos algumas faixas fossem remixadas para deixar o som mais radio friendly (ou radiofônico, em bom português). Cobain, o cabeça da banda e o mais intransigente, acabou concordando eventualmente, e revelou depois que também não havia ficado feliz com o resultado final da produção.
Scott Litt foi trazido para remixar duas faixas e deixá-las mais amigáveis ao gosto do ouvinte de rádio. Estas faixas foram Heart-Shaped Box e All Apologies. Não à toa a primeira foi o single inicial do disco e gerou um videoclipe de bastante sucesso.
All Apologies também é uma das mais palatáveis do álbum, embora tenha ficado mais famosa na versão desplugada do Acústico MTV.
PROBLEMAS PESSOAIS
Nas letras também havia uma diferença bastante clara. Se Nevermind era críptico, mais sobre emoções abstratas gerais comuns à juventude, o que sem dúvida contribuiu para a identificação do público com a obra, este aqui tinha uma temática muito mais pessoal.
Um disco que abre, inclusive, fazendo referência autodepreciativa ao anterior, com o verso teenage angst has paid off well (“a angústia adolescente compensou muito bem”, em tradução livre), para seguir com now i’m bored and old (“agora estou entediado e velho”).
Ao longo de sua duração, toca em outros temas caros ao Cobain letrista, que moldaram seu caráter ou contribuíram para sua derrocada física e mental. O divórcio dos pais, seu casamento, sua filha, o uso de drogas e a insatisfação com seu papel de astro do Rock milionário e ídolo de uma geração. Tudo é abordado de maneira muito mais direta do que fizera antes em suas letras, contribuindo bastante para a crueza e pungência das canções.
EU ME ODEIO E QUERO MORRER
Para o título do álbum, a ideia inicial era que tivesse o singelo nome de I Hate Myself and Want to Die (eu me odeio e quero morrer), o qual, no entanto, era uma brincadeira do vocalista. Sempre que um jornalista, sabendo de seu estado sempre melancólico, lhe perguntava como ele estava, ele respondia jocosamente com essa expressão.
No entanto, nem gravadora nem companheiros de banda viram graça nenhuma e acharam o título de muito mau gosto. Foi o baixista Krist Novoselic quem convenceu Kurt a mudá-lo e I Hate Myself and Want to Die acabou batizando apenas uma canção, que ficou relegada a lado B.
A banda ainda brincou com a possibilidade de batizá-lo como Verse Chorus Verse (que também dá nome a um lado B do trio), título que seria perfeito para Nevermind por ele realmente ter essa estrutura, mas para esse, com canções de construção mais solta, nem tanto.
Por fim, acabou sendo nomeado como In Utero. Toda a concepção gráfica do disco foi de Cobain, realizada por Robert Fisher. As imagens da mulher com as entranhas expostas na capa e os fetos na contracapa também diziam respeito ao momento pelo qual o músico passava, com seu casamento com Courtney Love, o nascimento de sua filha Frances Bean, e seu cansaço e desejo de sumir, ou voltar para dentro do útero, como canta em Heart-Shaped Box.
A REPERCUSSÃO
In Utero foi recebido positivamente pela maioria dos críticos, muitos (eu incluso) o considerando inclusive superior a Nevermind. O grande público, para desespero de Cobain, também gostou, e o álbum recebeu cinco vezes o disco de platina (tradução: vendeu “bagarai”).
Na excursão do disco, o guitarrista da banda punk Germs (e futuro integrante do Foo Fighters, ao lado do então baterista Dave Grohl), Pat Smear, foi incorporado à banda, que se tornou oficialmente um quarteto. Não porque as músicas novas fossem mais elaboradas ou difíceis, mas porque Kurt estava usando tanta droga que mal conseguia tocar direito em cima dos palcos.
No final de 1993, eles gravariam um dos melhores acústicos da história e o resto você já sabe, eu dei o spoiler lá no começo do texto: Cobain se matou. Novoselic tocou numas três bandas que não deram em nada. Grohl formou o Foo Fighters e se tornou um dos sujeitos mais tremendões do Rock. E In Utero está comemorando seus 20 anos com edições de relançamento cheias de extras.
Se você não conhece o disco, acho redundante dizer que recomendo. Mas vá lá: corra atrás que vale a pena. É a despedida em alto nível de uma das mais significativas bandas da história do Rock. Ame ou odeie, sua importância é inegável. E o último álbum de estúdio do Nirvana é parte integrante disso. Feliz aniversário.