Senhores, uma vez mais lhes concedo o prazer de deglutirem o mais refinado conhecimento através de minha sempre virtuosa pena. Desta feita, convido-os a descortinarem as atrocidades cometidas com nossas crianças através de dissimulados truques da indústria do entretenimento. Sim, senhores. Desta feita alertar-lhes-ei para a necessidade de bem cuidarem do futuro de nossa nação.
Senão vejamos. Quantos de nós já não presenciamos vezes e vezes nossos pequeninos obliterados diante de aparelhos de TV, silenciosamente assimilando as mais vis condutas daqueles nocivos personagens que povoam os desenhos animados. Tal qual fizeram com o Cavalo de Tróia, oferecem às nossas crianças singelos patinhos, porquinhos, coelhos e passarinhos que por trás de suas tenras e inocentes feições desfilam um inesgotável arsenal de más condutas. Competitividade, desonestidade, violência, e toda a sorte de grosseria são apresentadas às nossas crianças. Senão vejamos.
O desprezo pelas regras, pelo espírito esportivo e pelo companheirismo em situações adversas é propagado através dessas nefastas peças infantis. Quais de nós já não assistimos perplexos aos episódios da Corrida Maluca nos quais os competidores não medem esforços para pôr em prática as mais odiosas estratégias, cujo objetivo último é sempre prejudicar seus oponentes? Estupefatos, assistimos aos falsos defensores da moral e dos bons costumes, como o personagem Peter Perfeito, entregarem-se à vilania única e exclusivamente para saciar o desejo de vitória.
A aparentemente dócil e indefesa Penélope Charmosa por mais de uma vez lançou mão de seus atributos físicos para seduzir os sete componentes da Quadrilha da Morte, quiçá maldosamente insinuando uma orgia com os contraventores mafiosos. Não me espantaria em nada se essa orgia contasse com o adendo de alimentos na melhor tradição delfiana.
O que dizer da homenagem prestada à truculência política dos regimes ditatoriais que proliferam mundo afora através do Carro Tanque? Símbolo maior das ditaduras, da ausência de diálogo: um tanque de guerra (certamente este é o preferido do Senhor Corrales, um Ditador Supremo assumido)! Vitória a todo custo, senhores. Esta é a mensagem que transmitem às nossas crianças.
O consumismo e as atitudes violentas atingem nossos imberbes através de perseguições em altíssimas velocidades, propagando também o desprezo pelas regras de trânsito. Falo das desesperadas perseguições pelas auto-estradas levadas a cabo pelo famigerado Willie Coiote e o inominável Papa-Léguas.
O inescrupuloso Coiote exibe em cada episódio um consumismo patológico que fortalece impérios como a fictícia rede de vendas no varejo ACME, que lhe oferece toda a facilidade da entrega de seus produtos em seu domicílio. Não se trata de uma metáfora ao capitalismo e às sedutoras redes de venda virtuais e suas iguais facilidades? Abram os olhos, senhores! Artefatos explosivos de toda a natureza são manuseados sem qualquer advertência. Limites de velocidade são ignorados sem qualquer pudor. Eliminar seus opositores a qualquer custo. Esta é a mensagem que transmitem às nossas crianças.
Antes que me acusem de inflexível, purista e outros adjetivos indevidos, digo-lhes que nem tudo é desprezível nesse fantasioso mundo que se oferece aos nossos cativantes pimpolhos. Observem o belíssimo exemplo oferecido pelo personagem conhecido como Bob Esponja. O apego ao trabalho, a lealdade ao patrão e as persistentes tentativas de obter o almejado posto de funcionário padrão fazem desse personagem um verdadeiro bastião na proteção do mundo infantil.
Quanto esforço vemos por parte desse humilde funcionário na proteção do segredo da vitoriosa receita do estabelecimento de fast-food de propriedade do austero, porém justo, patrão Sr. Siri Queijo? Nada de greves em prol dos próprios bolsos. Nada de estratégias para desviar dinheiro do caixa. Nada de corpo-mole para estender o horário de almoço. A cada um o seu lugar, eis uma belíssima mensagem às nossas crianças. Apego ao trabalho, senhores. Eis a mensagem que deveria ser transmitida a nossos mini-me’s. Sugiro-lhes humildemente que substituam esses ídolos dissimulados por verdadeiras referências de luta por um mundo melhor, mais fraterno, cheio de carinho e bons sentimentos. Sugiro-lhes tipos como o Subcomandante Marcos, cuja imagem ilustra este modesto texto.
Que futuro queremos para nossa nação, senhores? Não necessitamos de indivíduos idiotizados por esses desenhos animados. Necessitamos de indivíduos fortes, saudáveis, cumpridores das determinações que lhes são transmitidas. Indivíduos capazes de mostrar ao restante do mundo que uma nação forte e próspera se constrói com objetivos únicos. Combatam o fogo com fogo, senhores. Não permitam que nossas crianças falem com estranhos, principalmente se estes insistirem em apresentar a elas um infindável retorno à fantasia. Cuidado, senhores. Quando estão em frente a desenhos animados, navegam em águas turvas e traiçoeiras.