Os Headbangers não praticantes

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Vivemos em um país de maioria católica. Neste mesmo país, existem pessoas que matam por coisas tão banais quanto um tênis. Ou uma fechada no trânsito. Pela lei das probabilidades, quem faz isso tem grandes possibilidades de se dizerem católicos, o que me leva a perguntar: o que aconteceu com o tal do “ofereça a outra face”? Isso tudo acontece porque se criou uma denominação quase tão horrenda quanto as atitudes do início deste parágrafo: a do “católico não praticante”. Isso é meio que uma tentativa de justificar-se, de não assumir o fato de ser ateu, embora não siga quase nada do que o catolicismo nos ensina.

Ultimamente, tenho reparado um outro grupo que também tem “membros não praticantes” infiltrados: o dos headbangers, ou para quem não sabe, dos fãs de Heavy Metal, grosseiramente chamados por aí de metaleiros. Obviamente, não me refiro ao preconceito que existe entre fãs de um Judas Priest e outros que ouvem bandas na linha de um Linkin Park, Evanescence ou afins. O assunto a que me refiro é bem mais grave do que uma mera rivalidade entre tribos.

Como quem conhece o estilo sabe – ou deveria saber – o Heavy Metal sempre esteve liricamente muito longe do que a mídia prega. Sim, existem bandas satanistas (as do subgênero chamado Black Metal), mas também existem bandas cristãs (adivinhe como chama esse subgênero. Acertou: White Metal). Claro, existem letras que falam sobre assuntos de terror ou sobre magia (tanto negra quanto branca), mas acusá-las de adoração ao diabo por causa disso seria a mesma coisa que dizer isso de Stanley Kubrick por causa de seu clássico O Iluminado. Afinal, nem todos que se interessam por filmes/livros de terror são “do mal”. Pretendo abordar esse assunto mais profundamente em outra ocasião, mas o tema do dia é outro. Pô, então sobre o que você quer falar nesta crônica, tio Carlos? Continue lendo, meu amigo impaciente.

Fato: boa parte das bandas fala sobre assuntos fantásticos. Grupos como Blind Guardian ou Rhapsody têm em Tolkien suas principais fontes de inspirações. Obviamente, o objetivo de tais letras é principalmente entreter, levar o ouvinte a esse mundo de fantasia habitado por elfos, duendes e outras figurinhas que povoam a riquíssima mitologia nórdica e os jogos de RPG, muitas vezes servindo até mesmo de metáforas para a vida real. Justamente por isso, também não vou falar dessas bandas aqui. Quero falar sobre aquelas que passam algo que poderia ser chamado de “ideologia” em suas letras.

Quando falo sobre isso, gosto de citar o Stratovarius, banda que não é de White Metal, mas está mais próximo disso do que muito católico não praticante por aí. Tirando o primeiro álbum, Fright Night, que fala principalmente sobre os “clichês metálicos” tradicionais, essa banda sempre seguiu uma linha mais “ecopacifista” (nem sei se essa palavra existe, mas deu para entender o que quero dizer). Basta lembrarmos dos títulos de seus discos que podem até mesmo nos levar a uma reflexão mais aprofundada: Elements (Elementos), Visions (Visões) e Infinite (Infinito), apenas para citar alguns deles. Suas letras costumam criticar as atitudes humanas, tratando de temas como guerras e destruição ambiental. O Stratovarius não é exceção. Bandas como Helloween, Viper e muitas outras também já fizeram letras ressaltando os “bons valores cristãos”, mesmo não sendo consideradas bandas de White Metal. Até o Metal mais “extremo” tem letras nessa linha. Os primeiros que me vêm à cabeça são os canadenses da banda de Thrash Metal Annihilator e seu clássico Stonewall, que trata da poluição perpetrada pelas empresas irresponsáveis. Apenas para ilustração, vou transcrever parte da letra aqui, já traduzida para o português: “As poderosas corporações soltam produtos químicos no ar / Multas são aplicadas para tentar desencorajar / Mas o que são centavos para um milionário?”. Esses temas são muito recorrentes nas bandas de Thrash. O Megadeth, um dos maiores nomes do estilo, por exemplo, já abordou o assunto em músicas como Peace Sells But Who´s Buying?, Holy Wars e Fight For Freedom.

Isso me leva a pensar que a própria ideologia do movimento é uma ideologia de paz e amor – por que não dizer, até uma evolução um pouco mais crítica daquela que muitos de nossos pais seguiram, a ideologia hippie. Muitas pessoas têm medo de nós, os headbangers, principalmente porque somos comumente mostrados como os vilões em filmes, novelas e qualquer outra mídia que você consiga pensar. Na melhor das hipóteses, somos mostrados como idiotas. Porém, assim que uma dessas pessoas medrosas tiver oportunidade de conversar com um verdadeiro headbanger (um “true” como está na moda dizer atualmente), vai perceber que seu medo é completamente infundado, pois terá encontrado alguém com quem poderá falar sobre os mais variados assuntos, indo da cultura pop de um Star Wars para ensaios de Nietzsche na maior facilidade. Responda-me, delfonauta, em que outro movimento podemos encontrar culturas tão díspares depositadas na mesma pessoa? Mas agora eu pergunto de novo. Será que realmente é assim?

Por muito tempo, responderia sim a essa pergunta e defenderia essa posição com todas as minhas forças. Afinal, todos os que conhecia eram assim. Porém, minha experiência com jornalismo cultural me fez encontrar um outro tipo de fã de Heavy Metal. Um fã que defini pela singela alcunha de “headbanger não praticante”. Como conheci esse grupo de pessoas, você pergunta? Meu amigo leitor, és deveras impaciente. Continue lendo que todas as tuas dúvidas serão respondidas.

Pouco depois de ter começado o DELFOS, outros sites começaram a pedir para usar nossos textos. Claro, como o DELFOS era (e ainda é) um site pequeno, ter uma certa exposição em veículos maiores é algo bem vantajoso para nós. Creio que boa parte de nossos visitantes assíduos no momento, nos conheceu através de uma dessas colaborações. Mas, para variar, estou divagando. Onde estava mesmo? Ah, sim. Os sites que usam nosso conteúdo. Pois bem, alguns desses veículos que usaram e usam nossos textos são focados exclusivamente em Heavy Metal. Sites que eu achava que teriam uma audiência bem semelhante à do DELFOS, já que este é apenas um pouco mais amplo, abrangendo também cinema, games, literatura, etc. Mas no fim considerava ser tudo farinha do mesmo saco. São todos ingredientes que achava fazerem parte da “receita headbanger”. Ledo engano. É verdade, existem aqueles entre nós que querem um mundo melhor e que se preocupam com causas importantes. Mas existem os “infiltrados”. Esses são os que me preocupam.

Esses “headbangers não praticantes” podem ser facilmente identificados, sobretudo em sites que permitem comentários anônimos. Enquanto os “true”, ao discordarem da opinião de um crítico, falam isso de forma civilizada, com argumentos que demonstram seu QI acima da média, outros preferem comentar coisas como: “Esse cara não gosta de Gamma Ray! Vai ouvir pagode então, seu preto!”. Sim, é triste, mas é verdade. Esse é um dos comentários que este texto meu obteve em um site parceiro do DELFOS. O cara, além de ser um semi-retardado que não sabe diferenciar o fato de uma banda ser boa ou ruim com o de terem colocado no mercado um produto de qualidade inferior à sua capacidade (ou simplesmente incapaz de respeitar a opinião de outra pessoa), demonstrou ser um idiota preconceituoso e de lógica duvidosa. Aliás, para efeitos humorísticos, vamos analisar essa pretensa “lógica” do indivíduo: “Esse resenhista não gostou do DVD do Gamma Ray. Logo, ele não gosta de Heavy Metal. Logo, ele gosta de Pagode. Afinal, todo mundo que não gosta de Heavy Metal, gosta de Pagode. São os únicos dois tipos de música que existem no mundo, oras. Alguns músicos que tocam Pagode são da raça negra. Logo, todo mundo que gosta de Pagode é negro. E se todo mundo que gosta de Pagode é negro, esse cara deve ser negro. Hum… como eu posso ofender alguém da raça negra? Já sei! Vou substituir negro por preto! Bwahahaha (risada de super-vilão)! O resenhista não perde por esperar. Quando eu xingar ele de preto, vai se arrepender de ter nascido. Vai ser o pior xingamento que ele já recebeu!”. Ok. Vou fazer uma pausa agora para você, inteligente leitor, dar uma gargalhada da cara desse aspirante a símio. Afinal, para ele ter a inteligência de um macaco, ainda precisa estudar muito.

Pronto? Recupere-se, enxugue as lágrimas e vamos continuar com essa crônica.

Vou dar um outro exemplo que vai ajudar você a ver onde quero chegar. A resenha para o show do Children of Bodom, acontecido por volta de agosto de 2004, foi uma das mais polêmicas que já escrevi. O ápice da polêmica foi uma reclamação que fiz. No início do show, estava eu no chiqueirinho dos fotógrafos para fazer meu trabalho quando o guitarrista, vocalista e líder Alexi Laiho entrou no palco com a boca cheia de água (pelo menos espero que tenha sido água) e cuspiu tudo na direção do público. Obviamente, boa parte do público não se molhou, mas como nós, fotógrafos, estávamos imediatamente na frente do palco, tomamos uma bela de uma chuva. Isso, além de ser nojento, poderia ter danificado a minha câmera, equipamento que precisei trabalhar muito para conseguir comprar, assim como qualquer fotógrafo ou pessoa que goste de se aventurar nessa forma de arte. Mantenho a minha opinião de que isso, além de ser uma atitude patética, digna de um “headbanger não praticante”, foi um tremendo desrespeito com aqueles que estavam lá para ajudar na divulgação da banda e mesmo para com aqueles que foram prestigiá-la e que chegaram cedo o suficiente para conseguir um lugar próximo ao palco.

Qual não foi minha surpresa ao encontrar comentários do tipo: “Esse cara é um viadinho. Se não quer tomar cuspe, vá assistir a um show da Sandy e Júnior”. Creio que não preciso me repetir explicando como o cara relacionou o fato de alguém não gostar de levar cuspe a gostar de Sandy e Júnior. Olha a que ponto isso chegou! Será que esses fãs são tão fanáticos que realmente gostariam de levar um cuspe do Alexi? E não parou no comentário. Essa resenha teve repercussão nacional, quiçá até internacional. Soube que algumas pessoas entraram em contato com o dono do site para reclamar de mim por causa disso. Até um outro membro da equipe do site me mandou um e-mail dizendo que eu não posso reclamar de desrespeito, que isso tudo é parte da graça de cobrir um show de Metal. Já outro membro, que escreveu a resenha para o show da banda em outra cidade (infelizmente não me lembro qual), meio que me agradeceu porque, graças à minha resenha, pôde evitar a chuva que aconteceria dentro da casa de shows, no início do espetáculo. Isso prova que existem headbangers “true” (aqueles que reprovam esse tipo de atitude primata) e “não praticantes” (aqueles que gostam disso e que, se bobear, saem na rua cuspindo na cara de todo mundo) convivendo juntos. Às vezes até no mesmo veículo. Não me entenda mal. O Children of Bodom é uma tremenda banda e o próprio Alexi é um senhor guitarrista. Mas é necessário saber separar a música da pessoa. Principalmente se a pessoa age que nem um Homo-Erectus.

O problema do “headbanger não praticante” é o fanatismo. Ele é aquele que não separa a pessoa do músico. Aquele para quem os ídolos são deuses. São aqueles que matam o músico caso a sua banda preferida tenha se separado – como aconteceu com John Lennon e Dimebag Darrel, para citar dois exemplos. Eles são perigosos. E são cada vez mais numerosos.

Creio que esse aumento substancial na quantidade desses… “seres”, tem a ver com a maior popularidade do Heavy Metal. É inegável que a recente popularidade do estilo acaba atraindo pessoas que ouvem pelos motivos errados (para se fazer de revoltado, porque gosta de ser bad boy, enfim…), sem absorver o que o estilo tem de bom para nos ensinar. Basta lembrar que, há menos de 10 anos, as bandas de Heavy Metal vinham para o Brasil e tocavam em lugares mequetrefes, como o KVA, Cia do Brasil e afins. Hoje, praticamente todos os shows de metal internacional que passam por São Paulo tocam no Credicard Hall, Via Funchal ou Directv Music Hall. Isso demonstra o crescimento do estilo.

Não sou daqueles puristas que acham que o Heavy Metal deve ser algo limitado àquelas pequenas “elites”, chamando bandas que vendem mais do que 10 mil cópias ou tocam na MTV de traidores do movimento (como acontece atualmente com o Nightwish, banda que ouço desde 1997 e que não vou deixar de ouvir unicamente por causa de sua maior popularidade – deixaria de ouvi-los, isso sim, caso sua música deixe de ser boa). Palavras não podem expressar o quanto acho isso ridículo. Quanto mais os discos de determinada banda venderem, mais chances temos de assistir a um show dela. E eu prefiro ir a um show no Via Funchal do que no KVA. E tenho certeza que quem assistiu aos primeiros shows que o Stratovarius ou o Hammerfall fizeram no nosso país hão de concordar comigo.

Contudo, penso que um outro tipo de “elite” deve ser mantido. A elite dos “true”, da forma como eu os defino – porque é fato que, quem mais gosta de se dizer “true” são os “não praticantes”. Essa elite dos “true” seria formada por aqueles que sabem respeitar as opiniões alheias, que não são bitolados por uma única banda, ou mesmo por um único gênero de música. Que saibam reconhecer a qualidade de um Milton Nascimento, de um Beethoven e, por que não, até admitir que a Sandy é uma boa cantora, independente de gostar da música que ela faz ou não. Aquelas pessoas que citei no início desse texto, que sabem explicar para um leigo tanto como a força funciona quanto ilustrar com riqueza de exemplos A Alegoria da Caverna de Platão. Esses sim, são os “true”. Esses que precisam conhecer e, por conseqüência, gostar do bom Heavy Metal. E não aqueles que matam um músico porque sua banda preferida acabou. Por favor, não.

E no fim, esse texto acaba até servindo como um teste para saber se você é um “true” ou um “não praticante”. Se você se incomodou com essa crônica, se a carapuça serviu, como dizem, você é um “não praticante”. Pode começar a me xingar, já esperava por isso no momento em que a redigia. Agora se você concordou ou, principalmente, se discordou de algo, mas é capaz de respeitar e se manifestar de forma civilizada, expondo seus pontos de vista com argumentos, parabéns. Você é 100% “true”. É de pessoas como você que nós precisamos. Manifeste-se para sabermos que pessoas como você ainda existem. Afinal, ficaria muito decepcionado se constatasse que o que considerei headbangers durante mais de 10 anos da minha vida eram apenas fantasias do meu subconsciente. Putz, se continuar assim, daqui a pouco vou começar a pensar que Papai Noel não existe…

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