Tem dias que realmente é melhor não sair de casa, especialmente quando a missão em questão envolve assistir a um filme que é continuação de um que você nem sabia que existia e que tem certeza que nenhum delfonauta sequer considerava assistir. Mas ossos do ofício, vamos lá.
A IDA
A princípio, tudo normal. O ônibus demorou para passar, então chegou lotado. Quando finalmente dava para atravessar a catraca, estava quase chegando ao meu destino, então resolvi enrolar mais um pouco, na esperança de a passagem ainda valer para a volta. É, a vida de um jornalista pobre continua sendo uma droga. Assim, fui passar – e pagar – quando já estava bem próximo ao meu destino e só então fui perceber que o meu bilhete único estava sem crédito.
Minha memória já até virou motivo de piada em várias ocasiões aqui no DELFOS, sobretudo vinda dos meus colegas sem coração. Basicamente, ela funciona como a da Dory, de Procurando Nemo. Eu lembro do que acabou de acontecer, mas alguns minutos depois, só dá para acessar os arquivos passados através de ativação. No caso, da última vez que eu tinha pegado ônibus, eu pensei “preciso me lembrar de carregar”, e imediatamente esqueci-me disso até o momento em que o display mostrando “Saldo: 0,00” ativou essas memórias.
Pouco depois pensei “sem problemas, eu sempre trago um dinheirinho na carteira para essas situações”. Só que em São Paulo, esse dinheiro serve APENAS para essas situações, já que absolutamente tudo, de sexo a bodes de sacrifício, pode ser comprado com cartão de crédito. Tudo, claro, menos passagem de ônibus. Dessa forma, nunca é minha prioridade reabastecer esses trocados. E adivinha só: justo quando eu preciso, não tinha nada. Será que o cobrador aceita Visa ou nota promissória?
O QUE FAZER?
Pior que meu ponto se aproximava, então não tinha nem tempo para pensar numa solução. Pus minha melhor cara de cachorrinho abandonado (que costuma funcionar melhor em mulheres, mas fazer o quê?) e expliquei a situação para o cobrador, que me olhou com a sua melhor cara de “conheço esse golpe”. Ainda assim, ele disse que eu podia descer e eu pedi desculpas insistentemente pelo meu erro, prometendo me dar 15 chibatadas quando chegar em casa. Mas ele não liberou minha passagem pela catraca e disse para eu descer pela frente. Lá vamos nós então explicar tudo de novo para o motorista.
O motorista foi muito mais gente boa que o cobrador, e falou algo na linha “ah, beleza, sem problemas”. Novamente pedi desculpas e desci no próximo ponto, apenas para perceber que, em minha apreensão, tinha descido uns dois pontos antes do que deveria. Bora andar até o Shopping Paulista então, enquanto tento criar um plano infalível para conseguir voltar, já que sabia que a maioria dos lugares que carrega bilhete único não aceita cartão também.
Vários minutos depois, finalmente me ocorre: “ei, eu posso sacar dinheiro e usar esse dinheiro para carregar o cartão”. Sim, eu sei que pode parecer uma solução óbvia, mas é que em São Paulo, uma vez que você começa sua vida adulta, o dinheiro em notas praticamente some da sua vida. Tudo é feito através de transações digitais e cartões. Acredito que fazia meses que eu sequer encostava em uma nota de dinheiro. Eu nem lembrava que nossas notas eram rosas. Cara, nosso dinheiro é muito gay. Saque a referência e ganhe um exclusivo e personalizado parabéns nos comentários.
Quando pensei nisso, comecei a procurar por alguma agência do meu banco. De um lado da rua, tinha dois bancos, do outro, mais dois. Nenhum dos quatro era o meu. E eu sequer sabia que existiam cinco marcas de bancos no Brasil.
Finalmente, quase do lado do shopping, achei o banco que precisava. Mas quanto sacar? O ônibus em São Paulo custa R$ 2,70. Como multiplicar isso para se tornar um número redondo, sem centavos? Fazer contas sem calculadora é outra coisa que não fazia há tempos. Mais precisamente desde que passei no vestibular. Que falta faz o Homero e suas habilidades nas artes arcanas da matemática. Finalmente, depois de uns 10 ou 15 minutos fazendo operações matemáticas de cabeça e desenhando os números no ar à minha frente, percebi que, se comprasse dez passagens, sairia 27 mingaus.
Mas 10 passagens acabam muito rápido e eu não quero passar por esse aperto de novo, então vou colocar vinte de uma vez. 27 vezes dois, noves fora, carrega o sete, encaixa no logaritmo, me perco, começo de novo, faço regra de três e A-há! Deu 54 reais! Toma essa, Deus! Aí começo a fazer a minha dancinha da vitória na fila do banco, mas quando percebo que estou chamando muita atenção, dou uma pigarreada, arrumo as mangas da camisa e me dirijo ao caixa automático.
Só que o maldito caixa automático não foi com a minha cara e se recusou a me deixar tirar 54 reais. Ele estava irredutível dizendo que só poderia sacar múltiplos de dez. Fiz as contas e, uns minutos depois, quando cheguei ao resultado, percebi que o múltiplo de dez mais próximo era 60, então foi isso que saquei.
Ok, dinheiro sacado. 10h20m. Cabine marcada para 10h30m. Preciso agora encontrar uma lotérica no shopping, carregar o cartão e subir para o cinema a tempo. Por que não faço isso depois do filme, você pergunta? Leia o parágrafo sobre a minha memória novamente, por favor.
NO SHOPPING
Na minha última aventura tentando carregar o bilhete único no Shopping Paulista (que foi frustrada justamente porque o lugar não aceitava cartão de crédito – não dá para entender como um estabelecimento comercial se mantém tão alheio à sua época, exigindo ser pago apenas em uma moeda ultrapassada), me lembro que a lotérica ficava um piso abaixo do da entrada. Saio correndo pelo Shopping, mas encontro apenas escadas que sobem.
Como eu mesmo não confio na minha memória, começo a duvidar se de fato existe um andar abaixo do que estou e resolvo pedir informação. Aproximo-me de uma das garotas uniformizadas e exclamo gentilmente “oi, sabe onde eu posso carregar bilhete único aqui no shopping?”. A moça me olha como se eu tivesse perguntado onde é o bordel do shopping e diz, atônita: “Bilhete único? Nunca me fizeram essa pergunta”. Holy fuck, Deus! Sério que no evil monkey de hoje você me fez pedir uma informação sobre bilhete único para a única pessoa de São Paulo que não sabe o que é bilhete único? Sério, Deus, isso não foi legal! Depois vou te xingar muito no Twitter. Decido então ser mais objetivo e o seguinte diálogo se segue:
– Carlos Corrales, o Ditador Supremo do DELFOS e futuro ditador do mundo, doravante abreviado apenas como DS por patrocínio da Nintendo of America Brazil: Ok, tem uma lotérica aqui no shopping?
– Mulher útil laboriando na área, doravante abreviada como M.U.L.A.: Ah, lotérica tem.
(pausa)
– DS: (suspiro) E onde ela fica?
– M.U.L.A.: No piso abaixo.
(pausa)
– DS: (contendo a raiva que apenas alguém que morou 30 anos num lugar terrível como São Paulo consegue acumular) E como eu chego ao piso abaixo?
– M.U.L.A.: Segue por aqui, vira as derecha, depois as esquerda e ali vai ter a escada rolante que desce.
– DS: Ok, obrigado.
Brinco com ela e vou embora (eu tinha acabado de reler Macunaíma). Encontro a escada rolante e, pouco depois, a lotérica. Perdi muito do meu escasso tempo para chegar aqui, mas agora seria rápido e eu conseguiria chegar ao cinema a tempo. Não é?
NÃO, NÃO É!
Não tinha nenhum cliente na lotérica e as duas pessoas que estavam nos caixas abertos estavam conversando. Paro na frente de um deles e aguardo. Um tempo depois (sem exagero, uns 20 segundos depois), o sujeito vira para mim e pede para eu passar no do lado. Vou para o do lado e paro na frente da moça que estava lá. Ela não interrompe a conversa e sequer olha na minha cara. Aguardo um tempo e nada. Então passo o bilhete único para ela e falo “carrega 54, por favor”, e passo os 60 reais que moraram no meu bolso por tão poucos minutos. Pobrezinhos, mal tiveram tempo de se acostumar à sua nova residência.
Sem olhar na minha cara, ela carrega e começa a contar o troco. Percebo que ela me daria uma nota de cinco e várias moedinhas totalizando o um real restante. Isso não seria um problema, mas meus bolsos são lugares amaldiçoados onde moeda nenhuma consegue viver. Ou então tem um furo na parte de baixo, escolha o que parecer mais realista. Qualquer dúvida, releia o texto A Triste Vida de um Jornalista Pobre.
Aliás, existe algum motivo para moedas existirem? Se tem algo mais ultrapassado que dinheiro em papel é dinheiro em latão. Deviam fazer todos os valores em nota e pronto. Só gosta de moeda quem trabalha com troco ou joga muito cara ou coroa.
Como eu vejo pelo caixa aberto que ela tem notas de dois reais adoidado, explico a situação e peço a gentileza de ela dar meu troco em três notas de dois. Ela tira todo o calhamaço de notas do caixa (devia ter umas oitenta notas de dois), mostra o calhamaço para mim como quem mostra chocolate para uma mulher fazendo regime e diz que só tem aquilo e, se der para mim, vai ficar sem troco para as outras pessoas. “Como assim? Você tem algumas dúzias de notas aí, o meu troco são só três delas! Você tem menos moedas do que notas!”, exclamo apontando para as sete ou oito moedas que habitavam o compartimento do dinheiro ultrapassado. Ela suspira e fala “Tá bom, moço, não vou discutir por causa disso”, e me passa as três notas. Feliz com mais um excelente exemplo do sempre amigável e eficiente atendimento ao cliente paulistano, brincamos e então saio correndo rumo ao cinema, quatro ou cinco andares acima.
CHEGANDO
Entro no terreno do Cinemark exatamente às 10h32m e sou recebido pela moça que estava substituindo a assessora de sempre da Paramount, que estava de férias. Ela pergunta meu nome e, como é costume para alguém que odeia soletrar o sobrenome, respondo enfatizando cada sílaba perfeitamente: “Meu nome é Carlos CÔR-RRRRA-LÊSSS.” Curiosamente, ela escreve o meu nome corretamente e eu a parabenizo por esse fato brincando com ela. Depois de brincarmos, digo que o fato de ela saber escrever Corrales corretamente a coloca entre os 2% dos brasileiros com maior QI.
Em seguida, ela pergunta meu veículo e eu respondo “DELFOS”. Ela pergunta se é com PH. Por que todo mundo acha que DELFOS é com PH? Em português é com F, carambola! Nós estamos no Brasil e nossa língua é o português. Por que diabos seria com PH? Ela ainda faz mais uma brincadeira dizendo “tá vendo? Sei escrever seu nome, mas não sei escrever o nome do seu site”. Sorrio para ela, brincamos novamente e ela me diz que a cabine acabou de começar.
KCT, Deus, qual é a sua, hein? Todas as cabines já feitas nesse país costumam atrasar pelo menos 15 ou 20 minutos. Em seis anos de DELFOS, a única que começa na hora é exatamente a única na qual eu chego dois minutos atrasado! Tudo isso é ódio, Deus cujo relações públicas convence as pessoas que é o Deus do Amor?
Enfim, entro correndo na sala e, claro, logo hoje o cinema decidiu não acender as luzinhas de cada degrau da escada. Tropeço umas sete vezes, caio, quebro o pescoço e fico com uma fratura exposta na perna, mas fico aliviado ao constatar que não perdi nada, para a felicidade do meu público, que vai poder ler uma detalhada resenha sobre um filme tão importante. Yada, yada, yada, Mary Poppins sem o mesmo charme e muito menos Supercalifragilisticexpialidoso, yada, yada, yada, filme nada.
A VOLTA
Depois de toda essa aventura, pelo menos a volta seria tranquila. Cinco minutos esperando no ponto. Nada. Dez minutos, os ônibus começam a se repetir. 15 minutos e ainda nada de um dos que serviam para mim aparecer. Finalmente, ele chega, e eu sou a única pessoa do ponto a entrar nele.
Passo pela catraca e vejo que o único lugar vazio é uma das cinco cadeiras do fundo. Porém, nelas, tem quatro garotas atraentes conversando entre si, mas curiosamente, um dos lugares do meio é que está vago.
Veja bem, estamos em São Paulo, uma grande cidade do Brasil, e todos sabemos que a mulher brasileira é uma das mais feias do mundo (com exceção de algumas cidades do sul, de onde normalmente saem as beldades que fazem os gringos acharem que nossos exemplares femininos são todos daquele jeito). Isso fica ainda pior nas grandes metrópoles, onde 98% de toda a população é undateable. Dessa forma, já é difícil ter sequer uma única mulher atraente em um ônibus, quanto mais quatro juntas.
Fui andando para o lugar em questão meio devagar, achando que uma delas iria trocar para que elas continuassem juntas. Quando cheguei perto, elas abriram espaço para eu sentar ali, mas continuaram conversando entre si, comigo no meio. Admito que não entendi essa situação, mas como elas eram bonitas, minha mente já começou a fantasiar que era um convite para uma orgia gostosa perto da lareira.
Como sempre quando estou sozinho em lugares públicos, estava com meus fiéis fones de ouvido, curtindo um disco do Trem da Alegria chamado “Cantos de Guerra de Valhalla”.
Assim, conseguia ouvir apenas uma ou outra frase vindo delas fora de contexto, entre uma música e outra. Entre essas frases, consegui entender algo como “delfonautas dedicadas”, “agasalhar a banana ditatorial”, “nós e você”, “brincar de Smurfs ao contrário” e “ruivas com bacon”. Típica conversa de mulher. Certamente, nada a ver comigo. Enquanto as mais próximas de mim falavam isso, uma delas, que era ruiva e estava sentada na janelinha, olhava para mim sugestivamente enquanto chupava um pedaço de bacon. Como eu fico constrangido quando tem alguém olhando para mim, me esforçava para continuar olhando para frente, como se estivesse em um mictório e o sujeito ao lado não tivesse respeitado o código da splash zone.
Pouco depois, chegou o meu ponto e eu desci. Elas ficaram, certamente ainda animadas com seu papo de mulher. Fico feliz por ter conseguido assistir ao filme inteiro e não ter perdido nenhuma oportunidade interessante. Apesar das confusões, hoje foi um bom dia e fico feliz por ter fornecido ao meu público tantas informações sobre este filme.
Carlos Eduardo Corrales é o editor-chefe do DELFOS, é atrapalhado pra caramba, não tem memória, senso de direção e muito menos capacidade de entender as mais diretas insinuações.