No cinema estadunidense, tocado como se fosse uma linha de produção, é cada vez mais difícil para um diretor ser tratado como um autor, onde você vai ver o filme porque foi dirigido por fulano de tal e não porque as explosões mostradas no trailer pareciam legais. Quando um sujeito consegue colocar seu nome à frente dos títulos de todos os seus filmes e ainda dedicar-se quase que exclusivamente ao cinema de terror (com algumas outras incursões por outros gêneros do cinema de fantasia), subestimado por profissionais da área, crítica e público em geral, o feito fica ainda mais impressionante.
A essa altura você já deve ter sacado que estou falando de John Howard Carpenter, ou simplesmente John Carpenter, como ficou mundialmente conhecido. Ou ainda, como eu gosto de chamá-lo, o popular João Carpinteiro.
Este sujeito, nascido em 16 de janeiro de 1948, em Carthage, Nova Iorque, é amante de faroestes e pode ser considerado um cineasta completo. Dirige, escreve, produz e até mesmo compõe as trilhas sonoras de seus filmes. Em mais de 30 anos de carreira, Carpenter, às margens da indústria hollywoodiana, apavora platéias com suas obras, ou quando não consegue, ao menos as diverte com as tosqueiras de suas produções baratas e sempre criativas.
A produção do tremendão da vez começou à tenra idade de 14 anos, quando estreou na direção de curtas metragens com Revenge of the Colossal Beasts (traduzindo literalmente, A Revanche das Feras Colossais). E até 1969 comandou mais cinco curtas amadores.
Na faculdade, Carpenter estudou na Western Kentucky University e depois na USC, em Los Angeles, onde escreveu, com mais quatro amigos, o curta The Resurrection of Broncho Billy, filme em que escancarava sua paixão pelos velhos westerns e ganhou o Oscar de Melhor Curta Metragem em 1971. Ainda na faculdade, ele também começou a rodar seu primeiro longa, uma ficção científica com toques de comédia chamada Dark Star, de 1974.
Feita no esquema custo zero, com os interiores da nave Dark Star construídos com materiais caseiros, não é um filmão, mas inspirou um clássico do cinema de terror/ficção científica. É que Dan O’Bannon, co-roteirista do filme, reaproveitou a cena do monstro dentro do sistema de tubulações da nave (no caso, uma simpática bola de praia, tipo a do Quico, do Chaves) como ponto de partida para o roteiro de Alien – O Oitavo Passageiro, de Ridley Scott.
Dois anos depois Carpenter lançou Assalto à 13ª DP, um policial onde um grupo de tiras numa delegacia prestes a ser desativada é atacado por uma gangue de meliantes. Novamente com orçamento apertado, o filme é bem tosco e trata-se de uma nova homenagem de John aos westerns, em especial a Rio Bravo, de seu ídolo Howard Hawks, do qual é praticamente um remake transposto para os dias atuais (que já nem são tão atuais assim). O filme ganhou uma refilmagem muito superior em 2005, estrelada por Ethan Hawke e Laurence Fishburne.
Se os dois primeiros longas de Carpenter não prometiam muita coisa, tudo mudou em 1978 quando ele entrou de vez no gênero que o consagrou, o terror. Halloween – A Noite do Terror, o filme em questão, simplesmente foi o pioneiro de um novo subgênero, o slasher, onde um assassino psicopata (geralmente mascarado) trucida adolescentes bobalhões com objetos cortantes.
Halloween apresentou o maníaco da máscara branca, Michael Myers (favor não confundir com o comediante Mike Myers), alçou a estreante atriz Jamie Lee Curtis a condição de “rainha do grito” e possibilitou os nascimentos de Jason, Freddy Krueger, e outras adoradas figuras icônicas do horror, todas inspiradas pelo filme em questão. Marcou também pela trilha sonora, de autoria do próprio John, cujo tema principal ficou bem famoso. Além disso, o sucesso da produção gerou nada menos que sete seqüências (embora Halloween 3 não tenha nada a ver com Michael Myers, sendo uma história completamente diferente) e vai ganhar um remake ano que vem pelas mãos de Rob Zombie.
Já em 1980, Carpenter rodou A Bruma Assassina, onde contou novamente com Jamie Lee Curtis no elenco, desta vez em uma história de fantasmas. Uma cidadezinha portuária é atacada por espíritos malignos que chegam junto com um denso nevoeiro. Este é outro que ganhou refilmagem em 2005, sob o título A Névoa. Com Tom Welling (o Clark Kent de Smallville) e Maggie Grace (a Shannon de Lost) no elenco, o remake é ruim de doer. Tanto que no Brasil foi lançado direto em DVD. Então fica a dica, prefira o original.
No ano seguinte, João Carpinteiro resolveu mudar um pouco de ares e investiu numa mistura de ação com ficção cientifica. Estou falando do clássico Fuga de Nova York, o início da parceria de quatro filmes com o ator Kurt Russell. Aqui, Russell é o criminoso tremendão Snake Plissken, que no futuro vislumbrado pelo filme, é recrutado pelo governo dos EUA para resgatar o presidente, cujo avião caiu na cidade do título, que foi convertida numa enorme prisão. Divertidíssimo e valendo-se do enorme carisma de Russell como o mal-humorado e de poucas palavras Snake, o filme virou cult e em 1996 diretor e astro se reencontraram para uma continuação, Fuga de Los Angeles, basicamente um replay da história do primeiro, mas desta vez, como o próprio nome entrega, passado em LA. Não é tão bom quanto o primeiro, mas sem dúvida vale uma assistida, pois ainda é bem divertido.
E já que o assunto é a parceria com Kurt Russell, vou aproveitar para falar dos outros dois filmes que realizaram. Um é Os Aventureiros do Bairro Proibido, de 1986. Trata-se de uma aventura descerebrada e cheia de toques de misticismo, que virou um verdadeiro clássico tosqueira da Sessão da Tarde. O outro filme é, talvez, o melhor de toda a carreira do diretor.
Trata-se de O Enigma do Outro Mundo, uma refilmagem de O Monstro do Ártico, uma fita dos anos 50. Na refilmagem de Carpenter, um grupo de cientistas na Antártida encontra uma nave espacial enterrada no gelo e libertam sem querer seu ocupante, uma forma de vida que mata a pessoa e assume sua forma, tornando impossível saber quem é o intruso. Com isso, John entrega um verdadeiro estudo sobre a paranóia e a desconfiança, num filme assustador, tenso e absolutamente nojento (tanto que entrou nessa lista aqui). Se você é fã de filmes de terror, assistir a O Enigma do Outro Mundo é uma tarefa obrigatória.
Pois bem, agora que já tratamos das colaborações com Kurt Russell, podemos voltar à nossa programação normal. Mas aí você me pergunta, será que um diretor voltado para o cinema de terror não faria nenhuma adaptação do mestre da literatura do gênero, o sr. Stephen King? Claro que sim. Em 1983 Carpenter, cuidou da transposição para a telona do livro de seu chapa Stephen King, Christine. Christine – O Carro Assassino trata de… bem, como o subtítulo do filme em português revela, de um carro assassino, oras! Pois é, o carango tem vida e vontade próprias e não hesita em passar por cima de seus desafetos. O filme na verdade é assistível, mas meia boca. Não por culpa do diretor, mas sim pela fonte original, já que a película é uma adaptação bem fiel do romance. O problema é: carro assassino? Convenhamos, é uma idéia bem idiota.
Em 84 ele lançou seu filme mais inusitado. Ainda sem abandonar a fantasia, desta vez Carpenter mostrou desenvoltura também no drama. Starman – O Homem das Estrelas conta a história de um alien que toma o corpo do marido morto de uma mina e pede que ela o ajude a cruzar os EUA, do Wisconsin até o Arizona, enquanto são perseguidos pelo exército. E claro, no meio disso a tiazinha vai se apaixonar pelo ET no corpo do falecido maridão. Jeff Bridges, o protagonista, foi indicado ao Oscar de Melhor Ator pelo papel e essa por enquanto foi a única indicação que um filme dirigido por John Carpenter conseguiu para os prêmios da Academia.
Voltando ao terror, em 1987 veio O Príncipe das Sombras e no ano seguinte Eles Vivem, e sobre esses dois não vou poder comentar, pois são os únicos de sua filmografia que não assisti. Embora deva dizer que a premissa de Eles Vivem parece ser bem interessante. Um sujeito acha um par de óculos que lhe permite ver mensagens subliminares em veículos de mídia e também alienígenas disfarçados de humanos. Legal, não?
Em 1992, Carpenter mira seu taco para a comédia com Memórias de um Homem Invisível, com Chevy Chase no papel do sujeito que fica invisível por acidente. Filme simpático, vira e mexe passa nas madrugadas da TV aberta.
Já 1995 foi o ano de João Carpinteiro em dose dupla com A Cidade dos Amaldiçoados e À Beira da Loucura. O primeiro é refilmagem de uma obra de 1960 e mostra uma cidadezinha onde as mulheres, depois de um estranho fenômeno, dão à luz crianças alienígenas e com poderes paranormais. Se a premissa não é suficiente para chamar a sua atenção, então que tal o fato de que este filme junta dois ícones nerds no elenco? Estou falando de Mark Hammill (o Luke Skywalker, cara!) e Christopher Reeve (o Superman). Aliás, este foi o último filme de Reeve antes dele sofrer o acidente que lhe deixou tetraplégico.
A outra fita a sair no mesmo ano, À Beira da Loucura, tem talvez uma das histórias mais interessantes que eu já vi num filme de terror. Um investigador de seguros tenta descobrir onde o maior escritor de livros de terror do mundo (uma clara homenagem a Stephen King) foi parar e começa a descobrir que as histórias dele podem não ser mera ficção. De fato, a condução do filme é impecável, a história é sensacional, mas o final absolutamente imbecil joga tudo isso no lixo. Dá até raiva de ver um projeto com tanto potencial arruinado por um desfecho sem pé nem cabeça. Seja como for, Carpenter costuma dizer que este filme, junto com O Enigma do Outro Mundo e O Príncipe das Sombras formam sua “trilogia do Apocalipse”. Bom, como eu disse antes, não vi O Príncipe das Sombras, mas não vejo semelhanças entre O Enigma do Outro Mundo e À Beira da Loucura, nem mesmo na temática. Mas de qualquer forma, talvez valha a pena assistir os três juntos para constatar do que John Carpenter está falando.
Por fim, os dois últimos filmes voltam a prestar homenagens aos faroestes, porém com resultados completamente opostos.
Vampiros, de 1998, combina faroeste e terror ao mostrar um grupo de caçadores de dentuços sancionados pelo Vaticano às voltas com um vampirão que está atrás de um artefato que lhe possibilitaria caminhar à luz do dia. Aventura com bom ritmo, um James Woods bem canastrão (isso é um elogio) e um método de caça aos vampiros bem criativo (eles são basicamente pescados) garantem muita diversão.
Já seu filme mais recente, Fantasmas de Marte, de 2001, usa sua obsessão pelo western numa aventura de ficção científica. No colonizado planeta Marte, fantasmas de uma extinta raça marciana possuem os trabalhadores, fazendo com que uma pequena força policial, e o bandido que eles foram prender, juntem forças para sobreviver. Muitos tiroteios e um bom elenco, com Natasha Henstridge (A Experiência) o rapper Ice Cube e o tremendão Jason Statham (de Adrenalina) não salvaram um filme de história estapafúrdia, ação chinfrim e direção pouco inspirada.
E foi assim, em baixa, que John deu um tempo do cinema. Ultimamente ele apenas dirigiu dois episódios da série de TV Masters of Horror, onde cada episódio é dirigido por um grande nome do cinema de horror (Joe Dante, Dario Argento, etc…) e são histórias fechadas, individuais, como médias metragens.
No entanto, segundo o popularíssimo site Imdb, a volta de Carpenter às telonas deve acontecer em 2008, com Psycopath, onde um ex operativo da CIA começa a questionar sua própria sanidade enquanto caça um assassino serial. Parece promissor. E realmente, depois de sete anos longe das telas, é bom que seja mesmo. Afinal, é muito tempo para um tremendão como John Carpenter ficar afastado dos cinemas.
Enquanto isso, se você não conhece todos os trabalhos do diretor, eu recomendo correr atrás. Poucos filmes chegaram ao DVD em versão nacional (como Halloween, por exemplo), mas a maioria existe em VHS, exigindo um verdadeiro trabalho de garimpagem para encontrá-los, mas vale a pena. Ou então fique de olho nas programações tanto das TVs a cabo quanto dos canais abertos, pois vira e mexe eles sempre passam algum filme do nosso glorioso Carpinteiro com alguma freqüência.
Momento mais tremendão: O Enigma do Outro Mundo sem dúvida é seu melhor cartão de visitas. Mas Halloween – A Noite do Terror por sua enorme importância (e também qualidade) também não pode ser esquecido.
Momento menos tremendão: Dark Star e Assalto à 13ª DP, embora interessantes, sofreram com a falta de grana. Já Fantasmas de Marte não tem desculpa, é ruim e pronto.