Leia também o restante do nosso especial do dia do Rock:
– Top 5 do Corrales – Letras de Rock: Protestos, utopias e sentimento nas melhores letras segundo o Corrales.
– Top 5 do Cyrino – Letras de Rock: Críticas, bom-humor, poesia e até um astronauta figuram na seleção do Cyrino.
– Top 5 do Guilherme – Músicas favoritas de Satã: Nem todos no DELFOS são chegados em coisas fofas.
– Os 100 discos essenciais do Rock: O primeiro top 100 do DELFOS!
E não deixe de ler os especiais anteriores:
– O Corrales e o Rock – Quase uma autobiografia.
– O Guilherme e o Rock – Antes true tarde do que nunca.
– O Cyrino e o Rock – Saiba como o Rock entrou na vida do Cyrino e não saiu mais.
– O jornalismo metálico – Tudo que você sempre quis saber, mas ninguém tinha coragem de contar.
– Um garoto que descobriu o Rock – o Bruno conta como a sua história se cruzou com esse estilo de música apaixonante.
– Manual para neófitos no Heavy Metal: Parte 1 e Parte 2.
É fato: não se faz mais show como antigamente. São poucas as bandas (o Dream Theater é uma delas) que ainda hoje conseguem inovar nas apresentações ao vivo. Antes, por conta do grande número de improvisações, cada show era uma nova experiência. Hoje, devido aos repetitivos setlists e à falta de experimentações, basta assistir a um show e você já terá visto toda a turnê.
Para efeito de comparação, é só lembrar que os principais discos ao vivo foram gravados nas décadas de 70 e 80. Made in Japan do Deep Purple, Unleashed in the East do Judas Priest e Live and Dangerous do Thin Lizzy são algumas das pérolas dessa época.
O Iron Maiden, que hoje é mais exato do que um relógio britânico, um dia fez parte do seleto grupo supracitado com este Live After Death, considerado um clássico absoluto e tido por unanimidade como o melhor disco ao vivo da Donzela. Sua grande qualidade é ter captado o maior expoente da New Wave of British Heavy Metal em seu ápice técnico e criativo, isto é, desde o álbum Iron Maiden de 1980 até o Powerslave de 1985. Além disso, a produção do mestre Martin Birch (apelidado de Live Animal no encarte) é não menos que espetacular, transportando o ouvinte de volta a 1985 ao Long Beach Arena em Los Angeles, onde o disco foi gravado em quatro apresentações.
Outro ponto a favor desse petardo é o setlist. Há quanto tempo, caro delfonauta, o Maiden não toca a frenética Aces high, a punk Running Free ou a épica Rime of the Ancient Mariner? Com o leque de clássicos que a banda já possuía, não seria necessário fazer mais nada para conquistar a platéia do que o “simples” ato de tocar. Mas é impossível não se impressionar com a beleza e a magnitude do palco montado para a lendária World Slavery Tour que, inclusive, passou pelo Brasil no primeiro Rock in Rio. Todo esse cuidado com a estética tornava (repare como o verbo está no passado) a experiência de ver o Maiden ao vivo não apenas um espetáculo musical, mas também visual.
Live After Death começa com o inflamado apelo nacionalista do estadista e Primeiro-Ministro britânico na época da Segunda Guerra Mundial Winston Churchill, conclamando os ingleses a resistir aos sistemáticos bombardeios alemães sobre Londres. É com esse discurso que se inicia a já mencionada Aces High. Escolha mais do que perfeita para abrir um show de forma incendiária, essa é, facilmente, uma das maiores obras-primas de toda a história do Heavy Metal. A sua cativante e belíssima melodia, que ficou mais veloz ao vivo, ainda impressiona, tamanho é o feeling emanado pelas sincrônicas e entrosadas guitarras de Adrian Smith e Dave Murray. Bruce Dickinson, talvez por não conseguir fazer ao vivo aquilo que gravou em estúdio, aposta, durante todo o show, em tons mais graves, deixando a sua voz mais agressiva e até um tanto rouca. E é justamente a performance do Air Raid Siren que é apontada por muitos como o único ponto fraco desse clássico. Admito que causa estranheza não ouvir um agudo sequer daquele que era mestre nesse quesito, mas sou daqueles que acha que as apresentações ao vivo não devem ser meras cópias daquilo que se fez em estúdio. Caso contrário, não faria sentido pagar ingressos caros para ouvir aquilo que você já tem em casa gravado e eternizado e faria menos sentido ainda pagar por um disco ao vivo que, no fundo, não tem nada de ao vivo.
Show, para este que vos escreve, é o momento de o músico extravasar, de deixar um pouco de lado o tecnicismo e apelar para a emoção e para as improvisações. É, enfim, o momento de surpreender a platéia. Por isso, mesmo que o Dickinson tenha usado o artifício mencionado para esconder uma possível fragilidade e não como uma experimentação, não acho que sua performance tenha sido comprometedora ou abaixo da média. As canções, cantadas de forma mais grave, ficaram com uma roupagem mais dramática e menos teatralizada. Assim sendo, prossigamos sem mais delongas.
2 Minutes to Midnight ficou bem mais energética e pesada em Live After Death. Destaque para o baixo gritante do mestre das cavalgadas Steve Harris, para a linha de bateria variada e criativa e para o riff singelo, dançante e extremamente eficiente. Costumo comparar o Maiden a um time de futebol bem estruturado, no qual os talentos individuais destacam-se naturalmente, sempre apoiados numa sólida base tática. É o que acontece em 2 Minutes to Midnight. O ponto forte é o conjunto solidificado que, por osmose, realça as qualidades de cada integrante.
The Trooper é outra música que também ficou mais encorpada e pesada do que sua versão original. Os duetos e os solos executados ao vivo ficaram ainda mais belos e emotivos do que em Piece of Mind. E essa é uma das características que tornaram Live After Death tão memorável: a banda conseguiu melhorar o que já era estupendo. Várias canções têm aqui suas versões definitivas. The Trooper é uma delas.
Revelations é, indubitavelmente, a música mais bonita e emocionante do Maiden. Transitando com singular polivalência entre o peso e a leveza e dona de uma melodia formidável, a banda desmoraliza o argumento dos preguiçosos de plantão que afirmam ser o Heavy Metal um estilo barulhento e nada mais. A interpretação e a carga emotiva conferidas por Bruce Dickinson também são dignas de nota.
Uma curiosidade: Foi durante Revelations no primeiro Rock In Rio que Bruce Dickinson, utilizando uma guitarra (não me pergunte o porquê), atingiu seu rosto com o instrumento e saiu do palco durante os solos. Quando voltou, o sangue escorria de um corte próximo ao olho. Foi aí que a mídia tupiniquim denunciou toda a sua falta de preparo para lidar com o assunto. O jornalista Celso Freitas, da Globo na época e hoje na Record, soltou a seguinte pérola: “Atenção! É agora que Bruce Dickinson sofre o acidente com a guitarra. Tire suas conclusões. Sangue ou apenas um truque para dar mais clima ao show?”. É, esse nunca deve ter visto um show da Donzela na vida. Até porque o Maiden não precisava dessas armações para convencer quem quer que fosse em 1985.
As novidades da versão ao vivo de Flight of Icarus são, além da maior dramaticidade por conta dos vocais mais graves, os backing vocals de Steve Harris e Adrian Smith que deixam o refrão ainda mais pujante e marcante. Sem contar os esplêndidos solos cheios de pegada e que, apesar de serem velozes, são repletos de feeling. Uma aula de como usar o virtuosismo em favor da canção e não como um mero massageador de egos.
A seguir vem a maior e mais épica canção da Donzela. Não obstante a enrolação lá pela metade da música, Rime of the Ancient Mariner é deveras embasbacante. O instrumental é tão técnico, coeso e sincopado que deixa qualquer terráqueo boquiaberto. Os duetos são de uma beleza ímpar e de um bom gosto de fazer inveja. Há ainda a poética letra muitíssimo bem escrita por Steve Harris, contando em pouco mais de 13 minutos uma história com início, meio e fim baseada em um poema de Samuel Taylor Coleridge e inclusive com trechos do próprio. Mais uma vez, a grande diferença da versão ao vivo é o peso.
Powerslave é a prova de que Bruce Dickinson não é apenas um vocalista incomum e um dos melhores frontmen do rock, mas é também um compositor de mão cheia. Não só a letra, que versa sobre um faraó que não aceita a morte por acreditar ser um deus (Bruce é egiptólogo, daí a sua afinidade com o tema), é um primor. O instrumental bastante climático – totalmente relacionado com a temática da música – também é fantástico, com um show particular da cozinha e, particularmente, de Steve Harris. Ele dá uma verdadeira aula de cavalgada no baixo (ainda mais alto do que na versão original), tocando seu instrumento com uma raça impressionante. O refrão longo que a princípio poderia soar cansativo ao vivo, ficou extremamente poderoso.
Sobre The Number of The Beast, tenho a mesma opinião que o Corrales expressou na sua resenha sobre o disco. Como ele, acho que essa faixa se tornou famosa muito mais pela polêmica que causou frente aos grupos religiosos conservadores nos EUA por conta da sua temática do que por sua qualidade propriamente dita. Noves fora a voz do Bruce Dickinson e o inimitável grito à Godzilla da versão em estúdio, ao vivo essa canção não apresenta grandes variações.
Hallowed Be Thy Name é daquelas músicas que você tem que ouvir algumas centenas de vezes antes de morrer. Como em Powerslave, seu instrumental também está diretamente relacionado à letra, que fala sobre os últimos momentos de um inocente condenado a morrer na forca, levando-o a questionar a existência de Deus num dos momentos mais sublimes da música pesada. O destaque, além dos cativantes duetos, vai para a interpretação ao mesmo tempo agressiva (característica ausente na gravação de 1982), dramática e emocionate do Bruce, que encarna o eu-lírico e transmite ao ouvinte, sem pieguice, toda a sua angústia. Como ocorreu em Aces High, a melodia ao vivo de Hallowed ficou bem mais veloz. Os solos, por sua vez, ficaram com ainda mais pegada e feeling. Essa é também uma das canções cuja versão definitiva se encontra em Live After Death.
Mais uma curiosidade: a Globo aprontou mais uma das suas no Rock in Rio I justamente numa das canções mais clássicas da Donzela. Antes mesmo de Bruce Dickinson cantar os primeiros versos de Hallowed Be Thy Name, a emissora dos Marinhos simplesmente subiu os créditos e encerrou a transmissão num dos momentos mais empolgantes de qualquer concerto do Maiden. Quando será que a grande mídia hegemônica irá tratar o Heavy Metal com o mínimo de respeito?
Iron Maiden, a única música tocada em todos os shows da Donzela, não tem ao vivo a mesma pegada punk e crua evidenciada no primeiro registro da banda. Contudo, seu refrão ficou muito mais marcante com a inclusão dos backing vocals. Em suma, é um hino que mesmo depois de tanto tempo não perde sua magia e força.
Um dos melhores e mais cativantes refrões do Heavy Metal é o que faz de Run to the Hills uma canção tão especial. Em Live After Death, o grande diferencial é o riff e o próprio refrão, que ficaram ainda mais melódicos do que no registro original. O lado negativo dessa execução ao vivo é a interpretação um tanto quanto preguiçosa de Bruce Dickinson, que só empolga quando chega o refrão.
A música que encerra o primeiro CD de Live After Death é Running Free. Assim como em Iron Maiden, Running Free perdeu em agressividade e em crueza, mas ganhou em melodia. Ah, é em Running Free que Bruce Dickinson resolve fazer aquela brincadeira clichê de gritar alguma coisa e pedir para o público repetir. Isso pode até ser divertido para quem está no show, mas é um saco para quem ouve o disco. Ainda mais por que eles interrompem a música por cinco intermináveis minutos para fazer essa brincadeirinha de mau gosto. Assim, Running Free que originalmente tem pouco mais de 3 minutos, aqui toma desnecessários oito minutos. Tempo suficiente para tocarem Invaders, por exemplo.
Originalmente, a versão CD de Live After Death acabava aí. A versão em vinil conta com um segundo disco com algumas músicas extras. Em um dos mais recentes relançamentos da discografia da banda, esse segundo disco foi incluído na versão CD e é dele que vou falar agora.
O segundo disco começa com Wrathchild. Essa canção já denunciava o som mais elaborado que o Maiden viria a praticar em álbuns posteriores (ela é do Killers, seu segundo trabalho). Aqui a música perdeu grande parte da sua pegada e da sua energia muito por conta da falta de punch do Nicko McBrain. Além disso, a melodia vocal de Wrathchild definitivamente não se encaixa no estilo de Bruce Dickinson. A versão original é bem superior.
Ao contrário do Corrales, acho 22 Acacia Avenue bastante burocrática. O riff não me empolga e a exagerada melodia vocal emperra a música. As qualidades são os ótimos solos e a divertidíssima letra, que dá continuidade à história da prostituta Charlotte, iniciada no primeiro álbum. Essa é uma das poucas canções que o Maiden não conseguiu melhorar ao vivo.
Children of the Damned ficou formidável em Live After Death. Sua gravação original, que já era bastante melodiosa, conseguiu ficar ainda mais grudenta. Os solos deixaram de ser tão cadenciados e as linhas vocais que já eram fantásticas, tornaram-se mais emotivas. E como a maioria das músicas presentes aqui, ficou mais pesada, caracterizando-se de vez como uma power ballad, o que a Donzela parece ter esquecido como se faz.
Adrian Smith e Dave Murray arrumam a casa para Steve Harris detonar mais uma das suas infinitas linhas de baixo deveras criativas. Die With Your Boots On (algo como morra com dignidade) é mais uma daquelas músicas perfeitas com um instrumental muito coeso. Em Live After Death, Die With Your Boots On é mais acelerada e o baixo está no talo, quase falando por si próprio. É impressionante a velocidade com que Harris toca seu instrumento. Mais uma gravação definitiva.
A música derradeira dessa versão de Live After Death é a grandiosa Phantom of the Opera. Sua letra, baseada na história francesa homônima escrita por Gaston Leroux, versa acerca de um assassino deformado que esconde sua deficiência física por trás de uma máscara e que se apaixona por uma garota, sem, no entanto, ter seu amor correspondido por conta da sua aparência nada aprazível. Instrumentalmente falando, Phantom of the Opera é possivelmente a canção mais virtuosa de toda a carreira do Maiden. As bruscas transições rítmicas, o baixo impecável e as guitarras dobradas (ainda mais técnicas aqui devido à presença de Adrian Smith, que não gravou a versão original) ditam o andamento de mais um clássico.
Existe ainda uma versão limitada lançada em 1995 que substitui esse segundo disco resenhado acima por um outro que tem versões ao vivo da instrumental Losfer Words (Big ‘Orra), e as mais antigas Sanctuary e Murders in the Rue Morgue. Essa versão é quase impossível de encontrar hoje em dia e não deve sair muito barata para aqueles completistas que querem ter tudo da banda.
Live After Death é isso: um desfile de vários clássicos executados de forma única e espontânea, algo que o Maiden não faz mais atualmente. Ouça essa preciosidade e você entenderá porque não se faz mais show como antigamente. Felizmente, sempre teremos os registros antigos para nos lembrar disso.