Iron Maiden – A Matter of Life and Death

0

Escrever sobre um disco clássico, já consagrado por mídia e público, é muito mais fácil do que resenhar um CD recém-lançado. O autor, ainda que tente transmitir uma visão própria e única, é invariavelmente influenciado por pré-conceitos e por opiniões alheias e sabe, antecipadamente, por onde se guiar. Por isso, comentar sobre um álbum que acabou de sair do forno é muito mais fascinante, sincero e desafiador. Ainda mais quando se trata da sua banda favorita, como é esse caso.

A Matter of Life and Death (nome tão impactante quanto pomposo) foi concebido entre novembro de 2005 e abril de 2006, sob a batuta de Kevin Shirley (produtor) e do manda-chuva Steve Harris (baixista e co-produtor). Lançado há poucos dias no Brasil, aconteceu o que já era de se esperar: o AMOLAD ou foi excessivamente elogiado pelos veículos de imprensa ou foi criticado com reservas, sempre seguindo as “verdades absolutas”. Será medo de criticar mais profundamente uma banda tão popular como o Maiden? Eu, que ainda não tenho nenhum vínculo empregatício, posso e devo analisar a música maideniana sem amarras, sem rabo preso. Para isso é necessário apontar erros e acertos, já que criticar por criticar para transmitir um quê de intelectualidade é tão infantil quanto só elogiar. Dito isso, vamos ao que interessa.

A capa do A Matter of Life and Death (desenhada por Tim Bradstreet, conhecido do público nerd pelos desenhos do Justiceiro da Marvel) anuncia o que o ouvinte irá encontrar. Se deixa a desejar em termos estilísticos quando comparada às detalhadas capas oitentistas, essa, pelo menos, não é tão bizarra e artificial quanto a do Dance of Death e cumpre seu papel: preparar o ouvinte para o clima do álbum.

Desde a bela arte gráfica do encarte (com as já tradicionais fotos individuais e datas da turnê), é possível captar a atmosfera soturna, pesada e reflexiva, bem parecida com a do X-Factor. Não poderia ser diferente: a temática predominante é a violência humana, passando pela lavagem cerebral (em These Colours Don’t Run) que convence os soldados a lutarem por sua “pátria” (já pensou se os soldados se recusassem a combater?) e chegando à possibilidade da autodestruição da humanidade com a criação da bomba atômica. Não, não é um disco conceitual e muito menos político, coisa que o Maiden nunca foi e nem teve a pretensão de ser. Como a própria banda diz em Brighter Than a Thousand Suns, são apenas reflexões de como criamos Deus com as nossas mãos.

Todos possuem um modo diferente de ver o mundoDifferent Worlds

Essa jornada reflexiva é introduzida por Different Worlds. Posso dizer que é uma Wildest Dreams mais encorpada e bem melhorada. Com linhas vocais que lembram Thin Lizzy e com um riff que se aproxima da carreira solo do Bruce, é o tipo de música que agrada a gregos e troianos. Destaque para o refrão fofo e de forte apelo comercial e para o belíssimo dueto de guitarras na metade da música. Resumindo: é uma canção conservadora, com forte presença dos clichês maidenianos e é, por isso, facilmente assimilável, ao contrário do restante do álbum. E, novamente, indo na contramão das outras músicas, sua letra não fala de conflitos bélicos ou de religião, mas de um ser humano inicialmente sem bússola e incapaz de compreender a hostil realidade que o circunda, mas que, enfim, encontra respostas no trecho: todos possuem um modo diferente de ver o mundo.

Nós navegamos para longe como nossos pais fizeramThese Colours Don’t Run

Em These Colours Don’t Run, tem-se início a atmosfera introspectiva. Inicia-se também o que já virou lugar comum criticar: as introduções arrastadas capitaneadas pelo baixo de Steve Harris, tendência que se consolidou a partir do famigerado X-Factor. De fato, em algumas canções as tais introduções soam desnecessárias e cansativas (principalmente quando têm o mesmo andamento do restante da composição), mas em outras, servem para incrementar. O que piora essa canção não é esse fator e nem a simplória melodia vocal em que o Bruce segura a última nota no fim dos versos, mas o insosso instrumental que se segue após a segunda repetição do refrão. Bateria e guitarras igualmente burocráticas acabam por macular uma composição de ótimo potencial. O refrão mais longo e menos repetitivo que o de costume e o riff são os destaques desta faixa.

Nós não somos os filhos de DeusBrighter Than a Thousand Suns

A melhor música da Donzela desde o Seventh Son. É assim que defino a brilhante (e viva os trocadilhos!) Brighter Than a Thousand Suns. É, sem dúvida, a composição mais criativa da banda em anos. Riff matador, solos estupendos, baixo cavalgado e abruptas alternâncias rítmicas apimentam uma perfeita mescla de Metal Tradicional com Metal Progressivo. Até o defunto artístico Nicko McBrain é infectado por essa atmosfera favorável, ressuscita e cria uma linha de bateria mais arrojada, agressiva e bem distante do “feijão-com-arroz” dos últimos álbuns. Bruce Dickinson, por sua vez, canta uma melodia mais elaborada, ora mais suave, ora mais agressiva, com a regularidade de sempre e com a voz encorpada que adotou com o passar dos anos e com a perda de potência. A letra, sobre a criação da bomba atômica e a intolerância, é uma pérola, ainda que trate de um assunto clichê. Brighter Than a Thousand Suns já nasceu clássica. Uma preciosidade.

Liberdade e esperança divina transformando água em vinho / Então lhe ofertamos uma despedida / Reino do céu ao infernoThe Pilgrim

The Pilgrim, a quarta do disco, mantém a uniformidade. Dona de uma levada bem oitentista e de guitarras extremamente melodiosas, é daquelas que não precisam de mais do que duas audições para serem digeridas. O bridge bastante inovador antecede um refrão poderoso e pujante. Destaque positivo para os melodiosos e melancólicos duetos de guitarra. Destaque negativo para Nicko McBrain, que aqui parece ter voltado ao seu estado de hibernação. Primeira e penúltima composição do contestado Janick Gers no álbum. Tenho séria impressão de que, como guitarrista, ele é um belo compositor. Lembra-se de Man On The Edge, Lord of the Flies, Montségur e Dance of Death? Pois é, todas tiveram a participação do dito cujo na composição. Bem que ele poderia deixar de tocar e ficar só no campo das idéias…

Para transformarem homens de carne e sangue em açoThe Longest Day

Posteriormente é a vez da The Longest Day. Como o nome sugere, sua letra versa acerca do famoso Dia D, ou seja, do sangrento desembarque, durante a Segunda Guerra Mundial, das tropas aliadas na Normandia, região francesa que na época era ocupada pelos nazistas (vale destacar que esse embate, ao contrário do que é alardeado pelos estadudinenses, foi apenas o golpe final no exército alemão, já que o Führer e seus seguidores estavam bem debilitados após a batalha de Stalingrado contra os soviéticos). Essa é daquelas músicas mais demoradas que o necessário. O riff inexpressivo colabora para que a música demore a engrenar e, quando isso acontece, nos deparamos com um refrão bastante agradável à primeira vista, mas que perde o encanto por conta de outro maléfico legado da infrutífera fase Bayley (embora, verdade seja dita, o responsável por isso é mais Harris do que o pobre Blaze): a exaustiva repetição do refrão. Não parei para contar quantas vezes o tal refrão é repetido, mas certamente, perderia a paciência antes mesmo de chegar à metade das contas. Tirando isso (quase a música inteira), o que sobra são lampejos de criatividade no ótimo bridge, em algumas passagens instrumentais bem progressivas e nos duetos de guitarra, que esbanjam bom gosto. De resto, é uma exigente prova de paciência até para os mais fanáticos.

Oh, existe a beleza e certamente existe a dor / Mas devemos tolerar isso, para vivermos novamenteOut of the Shadows

Out of the Shadows é a cara da carreira solo do Bruce. Sua semelhança com Tears of the Dragon (esta é a balada do álbum) é evidente e, por isso, tinha todos os atributos necessários para figurar entre as melhores do álbum. Tinha, porque a pieguice e a (mais uma vez) excessiva repetição do refrão quase colocam tudo a perder. Se na primeira audição a música convence, da segunda em diante já provoca cansaço. Alguém duvida que o enfado vem da participação do Steve Harris na composição e da sua teimosia de alongar as canções mais do que o necessário? Qual o problema de compor uma música de três ou quatro minutos? Muitas músicas soam forçadas por essa burra necessidade de posar como anticomerciais, como os revolucionários que se mantêm fiéis ao Metal e que nunca se vendem. Out of The Shadows é outra canção de ótimo potencial manchada pela mesquinhez do manda-chuva Steve Harris.

Algo para me salvar de mim mesmoThe Reincarnation of Benjamin Breeg

The Reincarnation of Benjamin Breeg dá prosseguimento ao disquinho. Sua letra versa sobre um personagem cuja identidade permanece envolta em mistério (seria mais uma das estratégias de marketing da Donzela?) e sobre o qual foi criado um site (www.benjaminbreeg.co.uk) que traz uma possível biografia desse ser enigmático.

Neste endereço, há um texto de um tal de A. Breeg, que se diz parente de Benjamin Breeg. Segundo o texto, Benjamin teve uma infância conturbada, sendo levado a um orfanato aos oito anos, logo após a morte de seus pais em um incêndio de causa desconhecida. Tornou-se um adolescente inteligente (sempre interessado em pintar quadros e na leitura da Bíblia), mas pouco sociável. Sua vida, entre os anos de 1955 e 1959, é um mistério. Sabe-se ainda que viajou bastante entre os anos de 1960 e 1970, finalmente estabelecendo-se na Inglaterra, onde começou a trabalhar no Instituto Internacional de Investigação Paranormal. Durante os anos de 1971 e 1977, escreveu quatro livros a respeito das suas viagens, mas nenhum está disponível atualmente. Breeg desapareceu em 18 de Junho de 1978, aos 38 anos. Bela história, não? Só para constar, a letra de Benjamin Breeg é bastante supérflua e genérica, acrescentando nada ou muito pouco às informações disponíveis no site supracitado. Claro que a graça é não revelar por completo a identidade do personagem, mas a letra não concede nenhuma pista e muito menos traz novidades para quem já conhece a possível biografia do dito cujo.

Deixando as frescuras de lado, Reincarnation é a única composição de Dave Murray no AMOLAD. Apesar de ser extremamente reta e calcada quase que num riff só, o single agrada. Não por sua complexidade, mas justamente por sua simplicidade (cada vez mais rara no Maiden) e por seu formato inusitado, visto que o refrão (pouco repetido, deve-se destacar) só dá as caras lá pelos quatros minutos. Bruce Dickinson dá uma aula de interpretação e o riff cavalar pilotam essa viagem sonora.

Você sabe, a religião tem muito a que responderFor the Greater Good of God

X-Factor! Essa foi a impressão que tive tão logo terminei de ouvir For the Greater Good of God. Desde o pequeno solo de baixo introdutório (semelhante ao início de Blood on the World’s Hands) até o pobre riff e o andamento arrastado, tudo lembra o supracitado CD. Ouvindo For the Greater Good of God, é possível imaginar como seria o X-Factor com o Bruce nos vocais. Certamente, não seria muito diferente. Como aqui, Bruce investiria em tons mais graves, já que grande parte das melodias vocais é composta pelo Steve. Dessa forma, essa música serve para provar que a má fase não se devia exclusivamente à entrada do Blaze Bayley, e sim à excessiva centralização das composições na figura do Harris. Mas como o X-Factor não é de todo ruim, os duetos guitarrísticos de For the Greater são muito bons, assim como o refrão e o riff que o acompanha. Algumas pontes instrumentais também salvam a canção. Liricamente – para o desgosto desse escritor – a canção, ainda que timidamente, apresenta a religião como a solução para as mazelas humanas (influência do Nicko McBrain?) e pergunta a um ser superior qual o significado da vida, do amor e da guerra (já se emocionou?); desmistificando ainda mais a balela de que a banda flerta com o satanismo. Só para deixar claro, acredito que a religião (não importa qual seja) é um dos maiores entraves da humanidade. Mas isso é outra história…

Somos parte do mesmo estranho plano/ Porque esta chacina da irmandade dos homens?Lord of Light

Lord of Light é outra ótima criação do trio Harris/Smith/Dickinson. A segunda melhor música do AMOLAD é também umas das melhores compostas pela banda em anos. A introdução bem progressiva (um pouco longa, é verdade) se desenrola num riff sensacional, o melhor do CD. Em seguida, Bruce conduz a música de forma soberba, com um alcance embasbacante. Enquanto isso, o riff deveras bangueável continua conquistando o ouvinte e o dueto de guitarras subseqüente só faz elevar ainda mais a avaliação da música. O refrão, por sua vez, é bastante criativo e pouco repetitivo. Mais uma vez, a banda tem um lampejo de lucidez que contagia todos os integrantes. Bateria, baixo, guitarras e voz. Todos esses elementos soam entrosados e, como o Maiden nunca se destacou pelo seu virtuosismo excessivo, formam mais um possível clássico calcado na essência da banda: a força do conjunto.

Apenas pense em qual legado você vai transmitirThe Legacy

The Legacy, a mais progressiva música já composta pela Donzela, fecha brilhantemente o décimo quarto disco de estúdio da banda. Os violões dos minutos iniciais fogem à monotonia quase que inerente ao instrumento e enriquecem ainda mais a canção, dando um quê de originalidade. Sem repetições enfadonhas, sem os clichês maidenianos e esbanjando feeling e criatividade, The Legacy surpreende até os mais ecléticos fãs. Cheia de alternâncias climáticas e rítmicas até na voz do Bruce, ora mais limpa, ora mais abafada; The legacy não se assemelha a nenhuma música da banda. Por soar original e por fugir das amarras ideológicas que ainda podam a criatividade do grupo, a música derradeira é, junto com Brighter Than a Thousand Suns e Lord of Light, o clímax do novo álbum. E a letra? The Legacy expõe as contradições das guerras, como alguns lucram enquanto tantos outros morrem e como um país é persuadido a acreditar em políticos messiânicos para, por meio de um nacionalismo ufanista, perpetuar a violência e a intolerância. Além disso, The Legacy meio que fecha a temática do álbum, perguntando ao ouvinte qual o legado que ele e sua geração irão deixar para o futuro. Uma bela conclusão.

Em suma, A Matter of Life and Death é o melhor e mais regular disco da Donzela desde o Seventh Son. Mostra que a banda ainda tem lenha para queimar, principalmente se a tendência for se aproximar da carreira solo do Bruce, com o Adrian mais participativo. Mas, se o Steve voltar a fortalecer sua ditadura em trabalhos futuros, tudo se encaminhará para a criação de trabalhos insossos, tal qual o X-Factor.

Vale ressaltar ainda que, apesar de esse ser o CD mais demorado da história do grupo (cerca de 72 minutos), foi o que menos tempo levou para ser gravado. Apenas dois meses foram suficientes para aparar todo o trabalho, uma prova de que, tirando as discussões entre o Nicko e o Steve acerca da inclusão do pedal duplo em Lord of Light, tudo fluiu bem nos estúdios. Até a produção, bastante embolada no disco anterior, está mais cristalina e pesada: um deleite para os mais aficionados que gostam de capturar todos os detalhes das músicas.

A Matter of Life And Death já é um sucesso de vendas por todo o mundo. O primeiro lugar em diversos países europeus (Alemanha e Suécia, por exemplo) e no Brasil, explicita a máquina de fazer dinheiro que é o Maiden. Espero que, em trabalhos futuros, a banda deixe de se plagiar apenas para engordar as contas bancárias e arroje, como fez em algumas músicas do bom AMOLAD, que você pode comprar aqui.

Galeria

REVER GERAL
Nota
Artigo anteriorHypocrisy – Virus
Próximo artigoDália Negra
Carlos Eduardo Corrales
Editor-chefe. Fundou o DELFOS em 2004 e habita mais frequentemente as seções de cinema, games e música. Trabalha com a palavra escrita e com fotografia. Já teve seus artigos publicados em veículos como o Kotaku Brasil e a Mundo Estranho Games. Formado em jornalismo (PUC-SP) e publicidade (ESPM).
iron-maiden-a-matter-of-life-and-deathAno: 2006<br> Gênero: Heavy Metal Tradicional<br> Duração: 72 minutos<br> Artista: Iron Maiden<br> Número de Faixas: 10<br> Produtor: Kevin Shirley<br> Gravadora: EMI<br>