Todo mundo sabe que Alan Moore e o cinema combinam tanto quanto óleo e água. É tão comum ler entrevistas do barbudão detonando as adaptações para as telas de suas obras que esse ato parece até ter virado um de seus passatempos favoritos. Seu ódio é tão grande que ele se recusa até mesmo a ter seu nome nos créditos, chegando a doar sua parte dos royalties, geralmente para o desenhista da obra em questão.
E é justamente por sua aversão com o mundo do cinema que este Fashion Beast – A Fera da Moda se torna bem mais interessante. Na década de 1980, Moore estava com tudo, fazendo um trabalho seminal atrás do outro (V de Vingança, Watchmen e Batman – A Piada Mortal, para citar três exemplos). Ele foi então procurado por Malcolm McLaren, o sujeito que foi o criador e empresário dos Sex Pistols, que queria trabalhar com ele em alguma coisa.
Mais especificamente, Malcolm queria fazer algo com Moore no cinema, veja só. McLaren tinha algumas ideias de argumentos e queria que o autor escolhesse uma e desenvolvesse o roteiro. O escritor concordou, conforme conta no prefácio de abertura da graphic novel, mais porque, segundo ele, tinha curiosidade em escrever num formato (o roteiro de cinema) com o qual nunca havia mexido antes, pouco lhe importando se o filme em si seria produzido ou não.
Ele cumpriu sua parte, entregando um tratamento finalizado do roteiro, mas o projeto do filme nunca saiu do papel. O texto ficou num canto escuro da gaveta do mago por algumas décadas, até que a pequena editora estadunidense Avatar Press se interessou por adaptá-la para quadrinhos. É nessa mídia que o roteiro finalmente viu a luz do dia na HQ publicada entre 2012 e 2013 e lançada por aqui recentemente pela Panini.
E tirando essa curiosidade de uma colaboração para cinema entre um dos maiores escritores de HQs de todos os tempos e uma das figuras mais importantes do Punk, o que resta é um trabalho até interessante, porém menor dentro do âmbito da obra de Alan Moore.
Basicamente é uma versão de A Bela e a Fera inserida dentro do universo da moda em uma cidade não especificada e distópica, estrelada por dois personagens principais andróginos. Doll Seguin é uma mulher que parece homem e Jonathan Tare é um homem que parece mulher.
Doll vai procurar emprego de modelo na empresa de Celestine, o fashionista mais poderoso da cidade. Este, um sujeito recluso, excêntrico e deformado, fica imediatamente encantado por ela e a transforma na estrela de sua grife, onde Jonathan, que não se entende muito bem com Doll, trabalha como assistente.
A linha principal da narrativa trata da ascensão vertiginosa de Doll ao estrelato e de sua relação com Celestine, enquanto Tare e sua aspiração de ser ele mesmo um designer tão poderoso quanto Celestine só passa a ganhar mais importância com a história já mais avançada.
Tirando os detalhes da ambientação do mundo onde se passa, como um inverno radioativo e outras esquisitices, a trama em si é bem normal e mundana. Esses elementos de ambientação, aliás, nunca são explicados ou plenamente utilizados. A maioria sequer possui qualquer importância para a trama.
Isso me deu a impressão de ser algo que poderia ter mais importância no roteiro original para cinema, mas sofreu com a adaptação para quadrinhos, a cargo de um tal de Antony Johnston, permanecendo apenas como pano de fundo. Mas é pura especulação da minha parte. De resto, não é difícil localizar os principais elementos de A Bela e a Fera e para quem gosta dessa clássica história, talvez a graphic novel seja mais interessante.
No mais, a característica que mais se destaca é testemunhar Alan Moore fora de seu elemento, escrevendo um trabalho centrado tão fora de sua alçada como o mundo da moda. Não chacoalhou as estruturas, mas até que se saiu bem. E no caso ajuda muito contar com a detalhada e bela arte de Facundo Percio, um sujeito do qual nunca tinha ouvido falar antes, mas que fez um excelente trabalho, tanto nos figurinos (parte essencial para uma história ambientada dentro de um ateliê de moda), quanto nas caracterizações dos personagens.
Doll, por exemplo, parece realmente mais um homem. E Tare, no início, lembra (e se veste) como uma daquelas lésbicas mais masculinas. E as duas administradoras do ateliê/fábrica, que mais parecem chimpanzés em trajes vitorianos também são outro destaque no quesito estilo visual.
Fashion Beast – A Fera da Moda é uma obra rápida e divertida, ainda que sem grandes surpresas. Está longe de ser o melhor de Alan Moore, mas mesmo um de seus trabalhos medianos ainda possui qualidades suficientes para merecer uma leitura.