Especial Lost – As viagens no tempo em Lost

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Atenção: o texto abaixo pode conter SPOILERS àqueles que não são familiarizados com Lost ou não assistiram até o fim. Leia por sua própria conta e risco.

INTRODUÇÃO

Se você leu o meu perfil no Quem Somos do DELFOS, sabe que eu sou aficcionado por obras de ficção que envolvam viagens no tempo. Se você ainda não o leu, clique aqui e leia. Eu espero.

Tô esperando.

Pronto? Então vamos lá. Pessoalmente, eu acho viagens no tempo tão fascinantes pelo simples fato de serem impossíveis de se fazer. Eu sei, muita coisa do universo sci fi é impossível de se fazer, mas certas coisas são mais plausíveis, em se tratando de engenharia e concepção, do que as viagens no tempo.

Convenhamos, se o mundo não acabar em 2012, inevitavelmente nossos bisnetos verão carros voadores, pistolas laser, colônias em Marte, e coisas do tipo.

Mas e as viagens no tempo, será que eles conseguirão ver? Sinceramente, eu duvido muito.

O tempo não é algo que pode ser controlado pelo homem. Pode apenas ser quantificado e medido, e isso com ressalvas.

Pense, por exemplo, no fogo. Imagine como ele foi, há milhares de anos, assustador e implacável do ponto de vista do homem primitivo. Hoje, basta um click no isqueiro, e temos o fogo literalmente na palma da mão. E, salvo incêndios de proporções colossais, sabemos que o fogo pode ser controlado. Para isso servem os bombeiros, oras! =D

O ar não pode ser necessariamente controlado, mas o homem já está avançado o bastante para prever ciclones, furacões e tornados. O mesmo vale para a água e seus tsunamis. É, falta uma boa dose de controle sobre estes elementos no que diz respeito a catástrofes naturais, mas a humanidade está se esforçando.

Já com o tempo, o homem não faz nada, simplesmente conta-o no relógio e no calendário. Não o muda, não o pára, não interage com ele, simplesmente vê ele passar, impotente para qualquer outra coisa.

Há vários conceitos bizarros quando se fala em alterar o tempo, desde uma mudança significativa no presente (como visto na maravilhosa trilogia De Volta Para o Futuro ou em Efeito Borboleta) ao complexo e imaginativo Paradoxo do Avô, que, para os leigos entenderem, consiste basicamente de algumas dúvidas interessantes:

Se eu voltar no tempo e matar meu próprio avô antes de meu pai nascer, eu existirei? E, o mais intrigante: se eu não existo, como eu voltei no tempo para matar meu avô?

Deu para entender? =P

Mas, tudo isso é papo de aficcionado no assunto e não vem ao caso agora. O foco aqui são as viagens no tempo de Lost. E atenção, pois daqui para frente teremos eventuais spoilers.

CONTEXTUALIZANDO

Sim meus caros, bem ou mal, Lost se aventurou pelos tortuosos e incertos caminhos das viagens no tempo. Mas será que fez isso de maneira satisfatória?

Analisemos:

A partir da quarta temporada (com exceção de Desmond, que já via flashes do futuro desde a terceira), o seriado começou a flertar fortemente com a ficção científica. Isso foi ruim para a série, pois grande parte do público americano médio (o chamado Homer Simpson) achou tudo aquilo confuso demais, e preferiu largar mão.

Os que ficaram, como este que vos escreve, foram brindados com uma quinta temporada deliciosamente nerd, repleta de viagens no tempo alucinantes, explicações físico-quânticas do impagável Daniel Faraday e momentos que, de um jeito ou de outro, contribuíram para a elucidação de certas dúvidas.

O lance de como a Ilha viaja no tempo nunca foi devidamente explicado, mas convenhamos, não foi algo que fez muita falta. Ok, sabemos que há a tal da roda congelada (vide galeria) nos subterrâneos da Ilha, mas o que faz essa roda mover a Ilha pelo tempo? O bolsão eletromagnético? A fonte luminosa? Sinceramente: who cares?

Se o Doc Brown explicasse em minúcias o funcionamento do DeLorean ou do Capacitor de Fluxo, boa parte do público acabaria dormindo.

E a graça de uma obra de ficção é essa, meu caro: você não precisa dar respostas lógicas para tudo. O Faraday se esforçou, mas infelizmente bateu as botas antes de sanar todas nossas dúvidas sobre constantes, variáveis e coisas do tipo.

Os pulos que a Ilha deu pelo tempo foram meio estranhos, mas sagazmente bem encaixados na história maior que se desenrolava. Por exemplo: se Jin não tivesse encontrado a jovem Rousseau no momento em que ela chegava à Ilha (episódio The Little Prince, quinta temporada), em 1988, ele não saberia onde ficava o Templo, informação que lhe seria muito útil posteriormente.

E foram muitos pulos antes da tal roda congelada estabilizar. Vimos, em poucos episódios, fatos de várias épocas, como a estátua egípcia ainda inteira (considerando que ela foi destruída em 1867, com a chegada de Richard Alpert com o navio Black Rock, presume-se que os fatos vistos no episódio This Place is Death, quinta temporada, ocorreram antes disso), Charlotte ainda criança, entre outras coisas.

Vimos também o futuro, considerando-se que o ano que representava o presente na cronologia original era 2004 (o voo Oceanic 815 caiu na Ilha no dia 22 de setembro de 2004) e os sobreviventes ficaram mais de três meses por lá. Em um dos saltos da Ilha, o grupo de Sawyer volta à praia (onde ficava o acampamento) encontra uma garrafa d’água da companhia Ajira Airways. O voo 316 da Ajira (que levaria os Oceanic Six de volta à Ilha) aterrissou por lá somente em 2007.

CONSEQUÊNCIAS

Sempre que um salto no tempo era dado, um clarão tomava a tela (vide galeria), acompanhado de um som agudo. Os pobres ilhados que passaram por muitas destas viagens “relâmpago” sofreram severas consequências: o “jet lag”, como Faraday apelidou, causava dor de cabeça (foto na galeria), tontura e sangramento nasal, evoluindo para um quadro irreversível de aneurisma cerebral (imagem lá em cima). Isto ocorria porque o cérebro não conseguia acompanhar (racionalmente falando) as viagens, e quando ficava impossível de estabelecer o que era passado, presente ou futuro, dava um tilt na cabeça do sujeito, o aneurisma.

Nunca havia visto nenhuma obra em que o simples fato de viajar pelo tempo resultasse em consequências físicas ao viajante, e achei este jet lag uma boa maneira de se livrar de alguns personagens secundários, e de quebra dar um ar de urgência e imprevisibilidade aos movimentos da Ilha.

DE VOLTA PARA O PASSADO

Bom, mas as coisas ficaram boas mesmo depois que nosso querido John Locke girou novamente a roda e botou a coisa nos eixos. Quer dizer, mais ou menos. A engenhoca se estabiliza e para de pular pelo tempo. Porém, para na época errada! Todos os coitados que estavam na Ilha (Juliet, Sawyer, Daniel e Miles) ficam presos no ano de 1974. Enquanto isso, os Oceanic Six, Jack, Kate, Aaron (o filho da Claire), Hurley, Sun e Sayid, que conseguiram sair anteriormente, mentem ao mundo para proteger a Ilha e os que lá ficaram.

Em 1974, Sawyer e seus amiguinhos presenciam a consolidação da iniciativa Dharma na Ilha. Até a terceira temporada, sabíamos que tal grupo existia, mas não sabíamos desde quando ou qual era realmente o seu propósito. Agora, não só acompanhamos o apogeu da Dharma e todo o avançado conhecimento que tinham das propriedades da Ilha, como também vemos personagens do primeiro escalão do elenco tendo de se virar nesta nova realidade, uma vez que, inexoravelmente, estavam presos no passado.

E esta é uma das partes mais legais de toda a série, na minha opinião. Vemos Sawyer, sagaz (e mentiroso) que só, tornar-se um cara pintudo na Dharma, auxiliado por seus fiéis escudeiros Jin e Miles. O cara assume um pseudônimo deveras duvidoso (LaFleur), dá uns pegas na gatíssima Juliet e dita as regras de segurança da Dharma de trinta e poucos anos atrás. Diz aí se o cara não é um tremendão?

Aqui é válido relembrar uma bizarrice: as viagens afetam apenas a Ilha e quem está em um raio X ao redor dela. Para o resto do mundo, a época atual ainda era o ano de 2004. Porém, a passagem do tempo dentro e fora da Ilha acontece normalmente. Ou seja, como os Oceanic Six ficaram três anos fora, de 2004 a 2007, três anos se passaram também dentro da Ilha, mas na época vigente lá dentro. Com isso, Sawyer, Jin e cia. ficam de 1974 a 1977 junto à iniciativa Dharma.

Na trama paralela à Ilha, Jack é convencido por Ben a voltar, em um voo que deve ser o mais parecido ao Oceanic 815 quanto for possível. Após convencer todo mundo e visitar a velhota Heloise Hawking em uma pseudo-estação Dharma, eles descobrem uma nova “janela” que dará acesso à Ilha. Assim, todos embarcam no voo 316 da Ajira Airways. Coincidentemente, o piloto do avião é o nosso velho conhecido Frank Lapidus (o cara que deveria ter pilotado o famigerado Oceanic 815)!

Na teoria, todos voltavam à Ilha numa boa, porém na prática temos uma nova bizarrice: quando o voo chega na “janela” que dá acesso à Ilha, Jack, Hurley, Kate e Sayid desaparecem do avião, e vão parar na Ilha em 1977. Lapidus, Sun, Ben e o corpo de Locke, que não sumiram do avião, pousam na mesmíssima ilha, porém no ano de 2007.

Sério, nesta parte eu boiei total, e a temporada como um todo perdeu pontos no meu placar por esta baboseira mal explicada do desaparecimento de apenas alguns dos Six.

Após uma série de encontros e desencontros, Daniel Faraday aparece em 1977, revê seus conceitos sobre viagens no tempo e bola o mirabolante plano de explodir uma bomba de hidrogênio (a Jughead, que já estava na Ilha) para destruir o bolsão eletromagnético (que foi o responsável pela queda do Oceanic 815 em 2004, como vimos na segunda temporada). Isso faria com que, no futuro (no caso, 2004), o avião não caísse e, consequentemente, todos pousariam sãos e salvos em Los Angeles e tocariam suas vidas.

Porém, o plano não dá muito certo, e cria uma outra vertente absolutamente pirada do gênero sci fi: a realidade paralela.

Sim, meu caro, enquanto temos Jack, Kate e sua turminha ainda presos na Ilha (agora em 2007, graças à explosão), se virando com as consequências de um plano que deu errado, fora da Ilha, em uma realidade paralela (eu disse paralela, não alternativa) o plano deu certo, a ilha está no fundo do mar, o Oceanic 815 pousou tranquilamente em Los Angeles, e um outro Jack, uma outra Kate e uma outra turminha tocaram suas vidas normalmente. Ou não. Mas isso já é uma outra história…

Confuso? Muito, eu sei.

VEREDICTO ATEMPORAL

Quem nunca viu Lost provavelmente se perdeu na metade. E é compreensível. A quinta temporada, que entrou de cabeça nas viagens no tempo, foi complexa, intrincada e doida.

E como fica aquela questão que eu lancei lá em cima: as viagens no tempo de Lost foram úteis ou satisfatórias?

Como viagens no tempo em si, sim, foram úteis e satisfatórias. Para os fãs do gênero, como este que vos escreve, as pirações temporais de Lost foram um prato cheio, e eu dou um hail aos roteiristas e produtores por conseguirem encontrar uma maneira não racional, mas lógica, de explorar o passado da Iniciativa Dharma e da Ilha.

As viagens no tempo de Lost foram inteligentes, e conseguiram algo difícil no gênero: incutiram um propósito a elas. Não foi apenas a passeio que Sawyer, Jin e cia. foram parar na década de 70. Sua estada por lá, inicialmente acidental, acabou tendo relação direta com os fatos no presente/futuro de 2004/2007.

Um dos tipos de viagem no tempo que eu mais abomino é aquela do tipo “vamos voltar no tempo e salvar o mundo”, cuja principal variante é “vamos voltar no tempo e impedir que tal coisa aconteça”. Isto é o que me faz não gostar do terceiro livro da série Harry Potter (que originou este filme aqui)! Basicamente, os heróis voltam no tempo, impedem tudo de mal que iria acontecer e salvam o dia.

Para mim, isto é desculpa de escritor/roteirista preguiçoso. É muito fácil explicar algo utilizando um artifício surreal como a viagem no tempo! E o pior: como é algo que não existe de fato, a gente não tem muitas maneiras de contra-argumentar, e acaba tendo de assumir uma cara de paisagem para engolir uma tosqueira dessas em prol da continuidade da trama.

Fica a dica, J.K. Rowling: na próxima, deixe o Bicuço morrer. O bom senso agradece! Na real, acho que até ela viu a caquinha que fez, pois deu um jeito de destruir todos os Vira-Tempos do mundo dos bruxos de uma só vez (no quinto livro), para evitar cair em tentações futuras.

Eu tinha medo que Lost enveredasse por este caminho, mas felizmente eles passaram longe desta ladainha justiceira. Isto se deve principalmente ao fato das viagens ocorrerem sem algum tipo de controle por parte dos viajantes, o que eu achei uma boa sacada.

Convenhamos, uma coisa é você ter um DeLorean e programar em um painel high tech o momento para o qual você quer viajar. Outra coisa, totalmente diferente, é você ser jogado continuamente em diferentes pontos da história, e ter que se virar como pode para sobreviver por lá.

Particularmente eu não gostei muito dos rumos que a série tomou na última temporada, jogando no Limbo boa parte da bem estruturada sci fi temporal criada anteriormente e se tornando uma briguinha do bem contra o mal, mas isto não vem ao caso. O derradeiro final já está aí, e agora só nos resta rezar esperar.

Independente se você gosta ou não da série ou de ficção como um todo, é preciso muita atenção aos detalhes e sagacidade dos roteiristas para encaixar de forma coerente fatos de ontem, hoje e amanhã numa história tão longeva. Algumas besteirinhas foram feitas, mas o conjunto da obra, como um todo (em se tratando da quinta temporada e de suas viagens no tempo) foi extremamente bem elaborado.

O veredicto delfiano é: como obra que trata de viagens no tempo, Lost merece respeito, por tratar com propriedade e coragem de um tema tão complexo e abstrato quanto este. Doc. Brown ficaria orgulhoso!

Em memória de Daniel Faraday.

Galeria