Clássicos – Judas Priest – Stained Class

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Quando falo sobre o Judas Priest com alguém, freqüentemente me deparo com pessoas que pensam no British Steel, de 1980, como o primeiro álbum da banda, ou pelo menos como o primeiro grande sucesso. Essas pessoas, infelizmente, esquecem que os ingleses lançaram seis álbuns nos anos 70, sendo que o British foi apenas o pontapé inicial para sua fase mais conhecida (e comercial) na década seguinte.

Para quem ainda não conhece o Judas Priest dos anos 70, antes de encarar um trabalho como Stained Class, esvazie sua mente das influências mais conhecidas, esqueça o Rob Halford rebolando nos videoclipes enquanto cantava as letras bobinhas, as músicas enaltecendo o estilo de vida depois da meia noite ou as rodovias norte-americanas. O Judas Priest, especialmente na fase entre o Sad Wings Of Destiny e o Stained Class, era uma banda muito sombria e tratava, em suas letras, de diversos assuntos pertinentes a eventos históricos e a desilusão com suas injustiças.

Exatamente por isso, considero Stained Class o melhor trabalho de Rob Halford, K.K Downing, Glenn Tipton e Ian Hill: as letras das músicas variadas e criativas, o som extremamente pesado (lembre-se que estamos em 1978) e o início de uma nova era para o Heavy Metal, fundamental ao surgimento da NWOBHM.

O Judas Priest até então ainda não era a banda consagrada que conhecemos hoje e vivia em meio a uma invasão Punk na mídia que praticamente eliminou o Heavy Metal (da época, que seriam bandas como Deep Purple e Black Sabbath) das rádios e TVs limitando-o ao underground. Para piorar, a banda também passava uma fase crônica de troca de bateristas, fato que foi até “homenageado” no famoso filme / documentário This Is Spinal Tap), mas com Les Binks nas baquetas a banda encontrou finalmente o dono da vaga. Pelo menos até o próximo ano.

Binks ainda atuaria em mais dois álbuns, o aclamado Hell Bent For Leather e o primeiro ao vivo, Unleashed in The East, ambos de 1979. Sobre este último, reza uma lenda (que na verdade tem um bom fundo de verdade) que a banda tocou os shows no Japão que serviram para a gravação com um baterista de estúdio contratado já que Les fora demitido dias antes da viagem, mas seu nome consta no encarte do mesmo jeito. Se você está curioso sobre este fato, repare que todas as fotos da capa, contracapa e encarte do álbum trazem todos os membros da banda e uma bateria sem ninguém. Na década de 80, o baterista foi Dave Holland (atualmente encarcerado por pedofilia – leia resenha de O Lenhador) e, desde 1989, a banda conta com Scott Travis no posto.

Boatos à parte, vamos nos concentrar na análise do Stained Class. A capa mostra uma cabeça metálica atingida por um feixe de laser e é uma metáfora para a “classe manchada” do título. Muitas pessoas, no entanto, julgam o desenho como alguém levando um tiro na cabeça, fato desmentido veementemente pelos integrantes da banda que pretendiam trazer a cabeça de um tirano (o Tyrant de Sad Wings of Destiny) manchada.

As gravações ocorreram entre outubro e dezembro de 1977 e o álbum chegou às lojas em Fevereiro de 1978. Apesar de confinado aos pubs e com os integrantes ainda vivendo de trabalhos paralelos, o Judas já era uma banda conhecida dos headbangers ingleses, carentes de Black Sabbath (que passava por uma de suas piores fases nessa época) e Deep Purple (com sua aparentemente infinita troca de formações). No exterior, entretanto, foi exatamente o Stained Class que abriu as portas.

A produção ficou a cargo de Dennis MacKay, famoso pelos seus trabalhos com grandes nomes como David Bowie, Jeff Beck, Supertramp, Gary Moore entre outros famosos. O grande mérito do produtor foi conseguir captar a atmosfera de um show do Judas Priest para um trabalho de estúdio, tanto na velocidade das músicas quanto no potencial de improvisação dos integrantes.

O disco abre com uma faixa rápida e pesada, Exciter, exatamente como as bandas de Metal ainda fazem hoje em dia. Segundo os próprios integrantes do Judas, essa música é considerada a mãe do Speed Metal e trata da chegada de um messias a Terra, exatamente o papel que o “Painkiller” teria em 1990. Destaque para o solo duplo em seu final, exatamente o que o Helloween aprimoraria uma década depois.

A segunda música, White Heat, Red Hot é uma tradicional composição sobre a eterna luta entre o bem e o mal. Nos últimos anos, li algumas resenhas que a colocavam como uma representação da luta entre Luke Skywalker e Darth Vader em Star Wars, mas isso não faz o menor sentido, afinal Luke só descobre que é filho de Vader no Império Contra Ataca de 1980.

Better By You, Better Than Me é um cover da banda Spooky Tooth, assim como fizeram com Diamonds And Rust da Joan Baez no Sin After Sin. A idéia era mostrar que o Judas Priest conseguia transformar qualquer música em um Heavy Metal atual.

Essa é a composição que causou tanta dor de cabeça à banda na década de 80 quando dois jovens se suicidaram (na verdade um morreu na hora, o outro viveu deformado por mais alguns anos) enquanto a ouviam. As mães dos jovens entraram com uma ação milionária contra a banda acusando o disco de trazer mensagens subliminares incentivando o suicídio. No final das contas, os integrantes provaram inocência quando mostraram que os jovens se suicidaram pela falta de estrutura em suas próprias casas e o Heavy Metal era apenas a válvula de escape para a vida que levavam. Deixando os problemas de lado, a letra fala sobre uma pessoa que vai à guerra e, ao não conseguir expressar seus sentimentos em uma carta de amor no meio de tanta selvageria, pede que um amigo o faça por ele. Não tem absolutamente nada a ver com suicídio.

A faixa título Stained Class, em minha opinião, não só é a melhor música do álbum como também uma das melhores em 30 anos de estrada da banda. Sua letra fala justamente da perda de identidade da humanidade, antes uma raça com o coração puro e hoje fruto de tantas desigualdades. Os ingleses não tocam esse clássico ao vivo desde 1978, mas Rob Halford, em sua volta ao Metal no ano 2000 com sua banda Halford, voltou a apresentá-la nos shows, inclusive no nosso Rock in Rio III (aproveite e leia a resenha de seu disco ao vivo, Live Insurrection). Como curiosidade, repare que na versão original do disco (agora CD), alguns versos surgem ao fundo durante a primeira estrofe. Esses versos, na ordem: Crashing on Hyksos / Mount Passing God Fear / Tip of His Finger / They´re Spying His Throne, sem sua transposição no encarte, tratam de um período no Egito entre os séculos XVIII e XVI A. C., onde os Hicsos (uma tribo, muitas vezes confundida com os próprios judeus) dominaram os outros povos da região e criaram uma sociedade de anarquia e destruição.

Invader começa com um som eletrônico que lembra bastante uma velha máquina de Pinball e abre espaço para um riff de guitarra muito parecido com a engraçada Hocus Pocus da banda Focus. A letra fala da invasão de seres extraterrestres e como os humanos lutam para se defender.

Muitos acham Saints in Hell uma faixa bobinha, mas eu considero um dos pontos altos do álbum, uma pena que nunca tocaram essa música ao vivo, pois o instrumental e o trabalho de voz de Rob Halford aqui são fantásticos, um dos pontos mais altos em sua carreira, sem dúvida nenhuma. A letra traz um verso em francês e é uma viagem psicodélica com algo de Dante Alighieri. Fala da invasão do inferno por santos católicos onde eles comandam uma verdadeira carnificina, logicamente uma grande ironia com as guerras santas travadas nos últimos milênios.

Savage é provavelmente a faixa mais politizada do álbum e trata da chegada dos europeus às Américas. Ok, eu sei que o tema é batido e já foi explorado diversas vezes (para lembrar apenas dois exemplos temos Run To The Hills do Iron Maiden e Conquistadores do Running Wild), mas Savage, além de seu pioneirismo (Run To The Hills apareceria apenas quatro anos depois) mostra uma visão aprofundada, onde os nativos expressam sua indignação com os exploradores e discutem quem é o “selvagem” na história. O instrumental nos remete a um Hard Rock anos 70 e vale a pena destacar uma estrofe, que vai abaixo traduzida para facilitar a vida do amigo delfonauta:

“Vocês envenenaram minha tribo com progresso civilizado
Batizando nosso sangue com doença
Vocês cristianizaram nossos corpos com tristeza e sofrimento
Dizendo que o seu deus é bem quisto
O que nós fizemos para merecer tal injustiça?
Explique-nos por favor se você puder
Mas você não pode, não, não pode, nós podemos ver isso em seus olhos
De nós dois quem é o homem primitivo?”

Depois dessa, meu amigo, eu voltava para Europa rapidinho com o rabo entre as pernas.

A próxima música é o clássico Beyond The Realms of Death, que o Judas toca até hoje em suas turnês e virou um hino obrigatório. Como mais uma curiosidade, essa foi a única colaboração do baterista Les Binks nas composições da banda e ele, aliás, foi também o criador do riff inicial de guitarra. A banda ensaiava no estúdio quando, durante um intervalo, o baterista pegou a guitarra de K.K. e dedilhou o que se tornou uma das introduções mais famosas do Heavy Metal. O guitarrista Glenn Tipton também tem um carinho muito especial por Beyond, pois considera o seu solo na música o melhor que já fez em seus 35 anos de carreira.

Apesar de todas as polêmicas, a letra da composição não trata do suicídio e sim de alguém que se isola das demais pessoas por não agüentar mais as covardias e atrocidades da humanidade e passa a morar em um lugar perfeito, criado dentro de sua própria mente, onde pode definir os rumos de sua vida.

Heroes End foi composta em homenagem aos célebres Rockstars dos anos 60 (Janis Joplin, Jimi Hendrix e Jim Morrison) que faleceram todos aos 28 anos no início da década de 70 e só então ganharam o reconhecimento merecido. Apesar de sua letra inteligente, a música é um Rock genérico e pode ser considerada a faixa mais fraca do disco, mesmo muito distante da ruindade presente em outro álbum, o Turbo de 1986, na fase mais Pop do Judas Priest.

Como bônus nos relançamentos em CD, os fãs ainda ganharam mais um presente: a belíssima Fire Burns Below. Essa música é, na verdade, uma sobra de estúdio do álbum Ram it Down (1988) e nunca apareceu ao vivo, mas traz uma letra que combina perfeitamente com o clima de desilusão que impera no Stained Class: fala do triste fim de um relacionamento e garanto que você vai se identificar e se emocionar com os versos.

Após o lançamento de Stained Class, o Judas Priest atingiu um primeiro estrelato que possibilitou à banda a realização de shows em dois países importantes em sua história: Japão e EUA, ainda em 1978. Eles voltariam ao primeiro no ano seguinte para a gravação do famoso ao vivo Unleashed in The East na turnê do Hell Bent for Leather e os EUA serviram como a grande base do Judas Priest nos anos 80 onde a banda reformulou totalmente o seu som e enfrentou o sucesso e o fracasso na década seguinte.

O próprio Kerry King do Slayer já admitiu que começou ouvindo o Judas Priest pelo British Steel (como a maioria das pessoas), mas só fez a sua lição de casa metálica quando comprou o Stained Class.

Se o guitarrista do Slayer fez a sua lição com esse disco, por que você não pode fazer o mesmo? Compre o álbum, curta o som, cante as letras e entenda porque o Heavy Metal não é apenas mais um gênero musical e sim um estilo de vida. Stained Class é, acima de tudo, um trabalho honesto e obrigatório.

Quer mais Judas Priest? Então leia uma das melhores resenhas do Corrales sobre o DVD Electric Eye.

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Nota
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Carlos Eduardo Corrales
Editor-chefe. Fundou o DELFOS em 2004 e habita mais frequentemente as seções de cinema, games e música. Trabalha com a palavra escrita e com fotografia. É o autor dos livros infantis "Pimpa e o Homem do Sono" e "O Shorts Que Queria Ser Chapéu", ambos disponíveis nas livrarias. Já teve seus artigos publicados em veículos como o Kotaku Brasil e a Mundo Estranho Games. Formado em jornalismo (PUC-SP) e publicidade (ESPM).
classicos-judas-priest-stained-classAno: 1978<br> Artista: Judas Priest<br> Gravadora: CBS<br>