Beautiful Desolation tinha tudo para ser um joguinho legal. A começar por sua ambientação: uma África do Sul futurista, onde humanos e máquinas se misturam à beleza dos elementos naturais que resistiram ao fim do mundo. Depois, temos a trilha sonora de ninguém menos que Mick Gordon, responsável por transformar Doom e Doom Eternal em álbuns de música industrial jogáveis. E, para completar, uma narrativa sobre perda pessoal envolvendo viagem no tempo e artefatos alienígenas, tudo embalado em um game de visão isométrica estilo adventure. Tudo muito lindo, tudo muito dez. O que podia dar errado?

Bem, quase tudo.

ANÁLISE BEAUTIFUL DESOLATION

O e-mail­ encaminhado pela Untold Tales junto ao código de review informa: apesar das aparências, Beautiful Desolation não se trata de um RPG isométrico como Fallout, Divinity ou Wasteland (as comparações são deles mesmos). Au contraire: BD é um jogo focado em narrativa, praticamente sem combates e essencialmente movido por sua história, exploração, diálogos e decisões que afetarão o mundo à sua volta.

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Botei fogo em tudo na primeira oportunidade.

E eles de fato não mentiram. O problema é que todos esses aspectos – história, exploração, diálogos e decisões – são simplesmente tão chochos e mambembes que me surpreende terem sido ressaltados como a força-motriz do jogo. Para falar a real, são justamente os seus pontos fracos.

A HISTÓRIA

Um objeto supostamente extraterrestre surge sobre a Cidade do Cabo em 1976. Na mesma noite, Mark Leslie perde sua esposa em um acidente de carro. Isso é o que a introdução nos conta. Dez anos mais tarde, o tal objeto continua lá: o Penrose, uma construção de origem incerta e propósitos não identificados. Por algum motivo igualmente obscuro (ou apenas por ser jornalista), Mark deseja subir ao Penrose e dar uma fuçada por lá. Para tanto, ele pede ajuda a seu irmão Don, que convenientemente é piloto de helicóptero.

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O jogo é cheio de cinemáticas, mas nenhuma delas empolga.

Pois bem: eles voam até a estrutura, algo dá errado e são ambos enviados para o futuro. A aeronave em que estão é derrubada, os dois se separam e você assume o controle de Mark. Agora vá, encontre seu irmão, descubra um jeito de voltar para casa e salve a humanidade – fazendo dezenas de atividades enfadonhas, uma por vez.

A EXPLORAÇÃO

Acontece que esse é um futuro pós-apocalíptico. E como dita a cartilha, ele é povoado por gangues, coalizões e comunidades com diferentes crenças, valores e características, cada uma com sua própria hierarquia e organização sociocultuuuuaaahhhh que soninho! Nas três primeiras horas eu já estava exausto de ser bombardeado com tantos termos e nomes próprios.

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Decore tudo ou durma tentando.

Nada de errado em criar universos complexos. Uma pá de jogos está aí para provar que pode ser feito e, mais importante, bem-feito. Divinity e Wasteland, para ficarmos nas comparações sugeridas pela publisher, fazem isso muito bem. Mas tem que ter timing. Sem ritmo, fica impossível inserir 300 conceitos em três horas sem arrebentar a cabeça do sujeito – ou deixá-lo entediado.

Beautiful Desolation é basicamente um adventure de mundo aberto. Uma vez solto da coleira, você pode ir pra onde quiser e explorar adoidado. Parece promissor, né? Mas a promessa não se cumpre. Você até pode ir pra lá ou pra cá na ordem em que preferir, mas geralmente vai dar de cara com um portão bloqueado, um beco sem saída ou um maluquinho exigindo algo para te dar passagem – obrigando você a refazer seu trajeto, no fim das contas.

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Você é livre para fazer o que quiser, só não pode querer fazer muita coisa.

Antes que me joguem pedras: sim, eu sei que essa é exatamente a proposta de um adventure. Te fazer rodar daqui pra lá e de lá pra cá juntando as peças de um enorme quebra-cabeças. Mas aqui é tudo enorme demais, e desinteressante e xarope demais para que seja possível se divertir. E nunca há uma sensação de recompensa, pois o jogo sempre coloca outro empecilho no seu caminho, como que para testar sua paciência.

BEAUTIFUL DESOLATION: UM SIMULADOR DE BOCEJOS

Por exemplo: eu precisava conseguir o Mercúrio Vermelho. Para isso, tive que ganhar acesso a determinada cidade e conversar com um carinha, que mandou a clássica “Me ajuda a te ajudar”, pedindo que eu lhe trouxesse uma máscara assim-assado.

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Um mundo repleto de favores para você prestar.

Para descolar a máscara, eu tinha que voar até outro ponto e desafiar o personagem X. Mas, para desafiá-lo, antes eu precisava de uma oferenda de sangue. Para arrumar a oferenda, foi necessário vasculhar um cemitério em outro ponto do mapa, onde achei um fêmur. Depois, em outro canto, invadi um laboratório e roubei uma amostra de sangue. Combinando o sangue ao fêmur, criei a tal “oferenda de sangue”.

Toquei de novo pro sujeito da máscara e larguei a oferenda em cima do altar. Uma porta se abriu. É isso, pensei. Vai rolar o desafio. Mas não: nessa nova área, fiquei sabendo que ainda precisava de um token para, aí sim, veja bem, começar a pensar em desafiar o sujeito. E onde encontro esse token? Sei lá, mermão… te vira.

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Aposto que você está bocejando só de olhar pra essa imagem.

Entende o que eu digo? Não existe sensação de recompensa ou avanço na primeira metade do jogo, porque você fica zanzando de um lado a outro igual barata tonta para concluir objetivos que estão sempre fazendo metástase, se esticando além do necessário e testando sua boa vontade.

Nada do que se passa aqui é realmente interessante. Os personagens principais são mais rasos que mar de cuspe, sempre dizendo “This is amaaaaazing” a cada novo cenário – o que mais me parece um autoelogio dos produtores do que um real deslumbramento dos personagens. E nada do que eles falam soa como uma pessoa de verdade.

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De baixo pra cima, o texto descreve precisamente minhas impressões com o jogo.

Não há qualquer tentativa de conectar o jogador à história, de fazer com que ele se sinta parte daquele universo ou, pelo menos, que dê a mínima para os protagonistas. Tudo é abstrato e confuso, com diálogos embolados em que se fala muito sem dizer nada. E falando no diabo…

OS DIÁLOGOS

Eu gosto muito de ler. Esse é tanto meu ganha-pão (sou editor e revisor de texto) quanto minha diversão nas horas vagas (agora estou lendo Graça Infinita, que por seu tamanho deve confirmar o quanto eu realmente gosto de ler). Ainda assim, Beautiful Desolation me convenceu a fazer algo que nenhum outro jogo até então tinha conseguido: pular os diálogos.

Sim, irmão delfonauta, eu sei. É um pecado fazer isso. Mas, em minha defesa, digo que não ignorei uma linha sequer de texto em Divinity: Original Sin 2, por exemplo, em suas mais de 120 horas de duração. Sabe por quê? Porque elas eram bem escritas. Mas em BD é tudo insosso, cheirando a preguiça e bunda-molice. São diálogos vazios de sentido e significado, com dublagens monótonas e desinspiradas. Diálogos que beiram o ridículo, é o que quero dizer.

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E esse é um dos melhores.

Ainda por cima, os personagens falam de forma lenta, arrastada, com pausas e efeitos dramáticos que tornam o processo de acompanhar cada conversa um sacrifício maior que o meu pé. O visual também não ajuda: apesar de terem um design maneiro (com alguns lembrando os monstros de Clive Barker), os NPCs são animados apenas em duas posições que se alternam durante a conversa.

Assim, eles ficam lá tremendinho a cabeça de um lado para outro enquanto batem papo com você, como se estivessem em curto-circuito ou morrendo de frio. No começo, eu até perdoei. Mas depois de horas de diálogos arrastados com cabeças tremelicantes, quem estava tremendo era eu –de ansiedade para que a conversa acabasse logo, como acontece nos elevadores e Übers da vida real.

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Se eu me fingir de morto, talvez ele pare de falar.

Em certo ponto, já putaço com a falta de naturalidade dos diálogos, parei de ser gente fina em minhas interações. Pra apimentar as coisas, passei a escolher as opções de resposta mais babaconas possíveis. Tipo assim: em vez de pedir “Por obséquio, você poderia me entregar o dispositivo tal, do qual necessito com máxima urgência”, eu dizia “OLHA, PARÇA: EU VOU TE DESCER A MAIS FORMIDÁVEL PORRADA SE NÃO ME DER ESSA TRAQUITANA PRA ONTEM”.

Mas os personagens simplesmente diziam algo do tipo “Caramba, tu é grosso, hein? Sem problema” – e nada de significativo mudava por conta disso. Ou seja: lamber o saco do NPC ou simplesmente ameaçá-lo de morte não tem qualquer impacto na narrativa. Então, por que eu deveria me preocupar em responder X ou Y se toda conversa terminará em Z? O que nos leva ao último ponto desta análise.

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De vez em quando rolam uns minigames, mas são tão divertidos quanto o resto do pacote.

AS DECISÕES

Pra resumir: são quase inexistentes. Como eu disse, escolher entre uma resposta ou outra durante os diálogos dá na mesma. E ainda que você possa cumprir alguns objetivos na ordem em que desejar, isso não muda bulhufas a narrativa. Tipo nada mesmo. Nadinha. Zero.

Vamos pegar um jogo como Wasteland 3 (veja como eu sou generoso a ponto de jamais fugir à comparação da própria Untold Tales). Ignorando o componente RPG e o combate tático, que de fato não têm a ver com a proposta de BD, em W3 nós também temos escolhas que influenciam o universo do jogo. A primeira delas, aliás, acontece logo na primeira meia hora de gameplay. E a segunda, logo depois disso – coisa de uma ou duas horas, se tanto. A terceira vem uma hora depois da segunda, e a quarta – você sabe aonde quero chegar.

Em Beautiful Desolation, tive que jogar mais de seis horas antes de tomar uma decisão que realmente modificasse algo naquele mundo. E foi uma decisão banal: escolher entre o destino de duas comunidades, uma mais insignificante que a outra. Se me fosse dada a opção, teria exterminado ambas.

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Meus únicos 20 melhores amigos.

Tudo isso já parece ruim o bastante, não é mesmo? Mas você conhece o ditado…

NADA É TÃO RUIM QUE NÃO POSSA PIORAR

Lembra quando comentei que o jogo tem trilha sonora do Mick Gordon? Pois regozije-se ao contrário (desrregozije-se?) ao saber que o jogo é praticamente todo composto por um sonzinho ambiente do tipo “folhas ao vento”, sem nenhuma música de verdade. Exceto quando você está circulando pelo mapa em sua nave, voando de um local a outro. Nesses momentos, que costumam durar 20 segundos ou menos, há sim uma musiquinha rolando. Mas ela é tão besta que, se não estivesse procurando onde estava a tal trilha do Mick Gordon, nem teria prestado atenção a ela.

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Mas que o jogo é bonito, ele é. Um Alfredo por seu aspecto visual.

Além disso, mesmo em sua proposta de adventure o jogo é descalibrado. O tamanho dos mapas (são vários, cada um com pelo menos meia dúzia de lugares, que por sua vez podem conter diversas áreas) e a falta de explicações para o que deve ser feito – e, principalmente, como deve ser feito – fazem desse jogo o equivalente a um Dark Souls dos adventures.

E isso é tão evidente que a própria Untold Tales encaminhou, junto ao código de review, um detonado (walktrough, para quem não cresceu nos anos 90) do game. Trata-se de um documento em Word de 14 páginas explicando o que fazer em cada parte para progredir no jogo.

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Entre no portal, siga reto toda vida, passe o Beco do Saci e vire à direita, depois à esquerda, à esquerda de novo e volte pra cá.

Claro que eu não sou mané de ficar usando um guia para jogar – ainda mais se for um jogo que estou analisando. Por isso, fiz metade da campanha sem abrir o dito arquivo. Porém, lá pelas tantas, percebi que estava há duas horas rodando sem sair do lugar. E assim: claro que eu não sou mané de ficar jogando meu tempo fora.

Abri mão do orgulho e dei um conferes no guia. Passei aquela parte e segui em frente, até travar em outra. Conferi o guia de novo – foi mais ou menos por aí que comecei a pular os diálogos. Não deu outra: quando me dei conta, estava apenas lendo o guia para passar tudo o mais rápido possível, de tão enfastiante que se tornou a experiência.

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Eu gosto quando explode.

Aí eu pergunto, querido leitor e amigo: isso te lembra algo remotamente parecido com diversão? Pois saiba que, segundo o site How Long to Beat, a média de gameplay de Beautiful Desolation é de 13 horas, considerando história principal & side quests. Mas eu duvide-o-dó que seja possível terminar esse jogo em menos de 30 horas se o sujeito jogar às cegas, sem qualquer guia ou dicas de terceiros – tipo off-line mesmo, sem pedir arrego.

Simplesmente porque, na moral, o que você vai fazer quando estiver emperrado é ir de um lado a outro do mapa falando e refalando com todo mundo pela oitava vez, tentando adivinhar que catzo precisa fazer para prosseguir em sua missão, sem que lhe seja dada qualquer motivação palpável para aguentar esse sofrimento.

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Beautiful Desolation aterrissando nos consoles.

Até que, por sorte ou milagre (e certamente não por dedução ou raciocínio lógico), você vai topar com a resposta. Assim mesmo, na base da tentativa e erro, mais do erro que da tentativa, se é que isso faz sentido. A boa notícia é: se esse tipo de masoquismo lhe soa aprazível, você tem aqui um forte candidato a jogo do ano.

BEAUTIFUL DESOLATION: UMA BELA DESOLAÇÃO

BD é impecável no quesito técnico. Ele roda lisinho, não deu crash nenhuma vez e parece livre de bugs (não encontrei um que fosse em minha abre aspas aventura). Ele também conta com cenários verdadeiramente bonitos e gráficos de tirar o chapéu. Mas se limita a isso. Por baixo da beleza, tudo o que sobra é realmente desolação – de roteiro, ideias e criatividade.

Eu até poderia dizer que Beautiful Desolation tem o coração no lugar errado, apesar de mandar bem em alguns quesitos – basicamente, no seu visual. Mas a verdade é que ele simplesmente não tem coração. Se você quer um bom jogo em visão isométrica, com profundidade narrativa e diálogos de verdade, há um monte de opções no mercado que valem mais o seu dinheiro – alô, Disco Elysium! Ou você pode sempre nos apoiar com modestas quantias no Padrim, como sinal de gratidão por não permitirmos que você gaste seu rico dinheirinho em bombas como essa.