A favor das cotas raciais

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O texto abaixo é de autoria de Robson Santos Costa.

Cotas raciais. Juntamente à questão do aborto e à da pena de morte, é um dos assuntos mais polêmicos do nosso país. Talvez O mais polêmico. Em qualquer conversa entre amigos, a mera menção ao termo já provoca grandes discussões sendo o discurso anti-cotas normalmente o da maioria. Pretendo com esse texto discutir o assunto.

O discurso favorável às cotas raciais não surgiu do nada ou de uma hora para a outra. Entendo que, à primeira vista, elas parecem algo extremamente errado. Acredito ainda que tal fato se deva em grande parte ao tratamento dado pela grande mídia acerca do assunto, visto que é sempre discutido de forma extremamente superficial e reducionista, enfocando as cotas como as “cotas pelas cotas”, como algo isolado, fora de um “todo” maior tanto em âmbito social e histórico quanto político.

Como a grande maioria dos leitores deve saber, o Brasil foi um dos países que mais traficou negros com o intuito de trabalho escravo. Esses não foram tão passivos como a história manipulada tentou mostrar por anos e sempre houve resistência. Os quilombos são uma prova disso. Quando houve a abolição da escravatura por motivos sócio-econômicos da época (e não por bondade, como costumam dizer por aí) os negros foram “libertados”, ou seja, jogados ao relento e que se virassem. Isso depois de terem sua dignidade, cultura e direitos destruídos. O trabalho passaria a ser então assalariado, mas como ninguém queria pagar salário aos negros, eles foram preteridos pelos imigrantes italianos ou alemães que chegaram ao Brasil na época da abolição. Esses trabalharam duro, é inegável, mas tiveram direito a salário, seus filhos tiveram direito a educação, eles puderam crescer juntamente com os brancos brasileiros. Enquanto isso, os negros eram proibidos por lei de sequer freqüentarem escolas, dentre diversos outros direitos básicos que lhes eram negados. Graças à luta de determinados negros e brancos que os apoiavam, alguns direitos foram sendo conseguidos lentamente.

Ok. Para o texto não ficar muito longo e chato, vou tentar fazer uma transição mais rápida para o assunto central: as cotas raciais. Nosso país vive até hoje no chamado “mito da democracia racial”, ou seja, um país lindo onde negros, brancos, índios e outras raças vivem em harmonia, todos são iguais e possuem os mesmos direitos.

Então me diga: você acha que a raça negra, aquele grupos de pessoas (que antes não eram considerados pessoas), que formaram grupos para sobreviverem como podiam (e que hoje constituem muitas de nossas favelas), estão em igualdade com os brancos que, em grande maioria, sempre tiveram direitos básicos? Será que esse passado realmente não tem relação nenhuma com a situação em que vivemos hoje e deve ser deixado para trás? Será que a noção social de raça não está diretamente ligada à pobreza?

Um teste simples: quando pego meu ônibus do subúrbio do Rio (onde moro) e vou até o centro da cidade (onde trabalho), quantos pobres e mendigos negros e brancos eu vejo? Quando vou a bairros ricos, quantos negros e brancos vejo? Podem usar o argumento “mas têm negros ricos, em boa posição social”. Lógico. Como eu disse, os negros nunca foram passivos, sempre houve muita luta e suor para conquistar esses espaços. Alguns com muito esforço atingiram esse patamar. Mas qual a proporção de negros no país para a dos poucos negros em “boa posição”? Será que um Estado que lhes proibia por lei uma simples escola não tem nenhuma culpa? Será que esse Estado não destruiu gerações de negros que hoje poderiam viver em IGUALDADE (como diz a constituição) com a grande maioria de brancos bem sucedidos e não em favelas sem saneamento, escola, saúde e segurança?

Até a história e cultura africana e negra só começaram a ser ensinadas em nossas escolas recentemente por causa da lei 10.639 de 2003. Antes, só aprendíamos a história dos europeus. As crianças negras nem viam sua história na escola, não tinham com o que se identificar, eram um nada, não viam sua importância para o país além de terem sido escravos. Assim ficava mais fácil colocar em suas cabeças que após a abolição sempre foram tratados com igualdade de direitos.

As cotas são parte do que é conhecido como Ações Afirmativas, que são medidas que existem em todo o mundo e têm como propósito dispensar um tratamento positivamente diferenciado a determinados grupos em função da discriminação em diversos níveis em que são vítimas. As Ações afirmativas já existem no Brasil por lei (mas não especificamente para negros) desde o início do século XX quando os trabalhadores brasileiros tinham cotas para trabalhar em fábricas de gringos instalados aqui. A Conferência Mundial contra o Racismo, Xenofobia e Intolerância ocorrida em Durban em 2001 foi um dos eventos mais importantes do mundo para a aplicação das Ações Afirmativas em diversos países, levando-se em conta suas características específicas.

Vou explicar as cotas e sua importância usando os principais argumentos normalmente proferidos contra elas:

As cotas seriam desiguais e anticonstitucionais, pois a constituição prega a igualdade de direitos para todos.

Não são desiguais. A constituição diz que todos devem ter direitos iguais, mas ao mesmo tempo diz que, para se alcançar essa igualdade, é preciso se promover ações que façam com que todos a tenham. Por que há cotas para mulheres e deficientes em diversos ramos se eles têm que ser considerados iguais aos homens e a quem não é deficiente? Nenhuma cota tem a função de ser eterna, sua função é chegar o mais próximo possível da igualdade pregada na constituição para que ela seja realmente exercida por todos. É função do Estado atingir essa igualdade que sua principal lei prega e que deixou de promover em épocas anteriores.

Vai contra o princípio do mérito e pode diminuir a qualidade do ensino superior.

O próprio mérito do vestibular já é questionado há tempos. Os negros, que são a parcela mais pobre da população (sei que há brancos pobres, inclusive como eu, que sempre fui de escola pública e fiz pré-vestibular para carentes para ingressar em uma federal. Vou falar sobre essa questão abaixo), não têm como pagar os cursinhos caríssimos que outros estudantes pagam, os pré-vestibulares para negros e carentes foram uma das melhores idéias dos últimos tempos. Além disso os negros sofrem preconceito racial e racismo (que são coisas diferentes, não confundam) e tiveram toda a tradição histórica relatada acima. As cotas são desiguais para alcançarmos a igualdade constitucional. Sobre diminuir a qualidade do ensino: preste atenção nisso, as cotas são para o cara entrar na faculdade e não para sair. Entendam isso, por favor. Se lá dentro, ele não conseguir as mesmas notas de outros estudantes não cotistas simplesmente não vai se formar e não teremos profissionais incapacitados. Alguém teria medo de ser atendido por um médico cotista? Eu não. O cara se forma igual a todos, só seu ingresso na faculdade foi diferenciado. Toda cota deve conter um programa de bolsa de ajuda e, se preciso for, aperfeiçoamento. E já há pesquisas que comprovam na UERJ e na UNB que os alunos cotistas em sua grande maioria se esforçam muito e conseguem notas iguais ou melhores que não cotistas. Além disso, esses alunos costumam se voltar, após formados, para as comunidades de onde vieram, melhorando a vida de sua família e seu “meio-ambiente” também.

Há pobres brancos, as cotas seriam ridículas, pois seriam desiguais e racistas.

Como eu disse antes, as cotas são parte de um todo chamado Ações Afirmativas, elas não devem ser feitas “sozinhas”, sem estarem ligadas a outras medidas, ou não funcionam do modo esperado. Existem há anos programas para jovens pobres independente de raça (as chamadas medidas universalistas), mas já foi comprovado por diversas pesquisas que esses programas atingem em sua maioria jovens pobres brancos, não atingindo diretamente o jovem pobre negro. Um dos fatores para que isso ocorra são vários, mas principalmente toda a tradição de negação de direitos feita pelo Estado no decorrer do século, seus reflexos ainda estão presentes. Por isso, as cotas não excluem de forma alguma programas para jovens pobres em geral (como cotas para jovens de escolas públicas). Elas não devem ser feitas separadamente desses programas, mas deve e é necessário que existam medidas voltadas especificamente para o jovem negro por sua dinâmica social e histórica diferenciada.

Deviam era investir na educação básica para que todos tenham oportunidades iguais.

É mais do que óbvio que o Brasil precisa realizar uma melhora no nosso ensino básico e fundamental. E isso excluiria as cotas? Essa reforma deve ser feita e cobrada pela população. Mas mesmo que se comece hoje, é medida estrutural que demanda alguns anos e é preciso que algo seja feito agora. Quem sabe, os alunos cotistas depois de formados não serão autoridades responsáveis por essas melhoras? A melhora do ensino deve ser realizada juntamente com medidas universalistas (para todos) e de Ações Afirmativas, tudo junto. Temos que ver os problemas sociais como um todo, uma teia que se liga e não cada um isoladamente, não podemos ver cada problema separadamente, como a mídia costuma apresentá-los, manipulando a população. As cotas não são e nem devem ser para sempre. Elas são necessárias até que a igualdade seja atingida ou pelo menos que atinja um patamar mínimo.

É isso, pessoal. O tempo urge e esse país pode afundar de vez para todos nós se não fizermos nada. Devemos nos informar mais, ler mais, ficar mais atentos. Todos nós queremos as igualdades de direito que a constituição apresenta. Mas para que a igualdade seja plenamente desenvolvida, temos que fazer com que todos os grupos sociais a atinjam, a própria constituição diz isso. O presente é construído pelo que foi feito no passado, isso não pode ser negado. As cotas são necessárias, mas nunca devem ser feitas isoladamente, não caiam nesse falso argumento. Para que possamos usufruir de nossos filmes, séries e shows em uma sociedade mais justa, é necessário que participemos. Quero um futuro melhor para o branco e negro pobre, para o branco e negro de classe média e alta. Mas isso não vai surgir por geração espontânea O debate já é o início de melhoras.

Quero agradecer muitíssimo ao DELFOS pelo espaço. É um site maravilhoso, voltado mais para diversão e entretenimento, mas que nunca deixou de abrir espaço para questões mais polêmicas, pois diversão (pelo menos vejo assim) fica mais divertida quando todos podem participar dela. E não deixe de ler o outro texto, apresentando o lado de quem é contra as cotas raciais. Forme sua opinião. Pense por conta própria.

 

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