Poucas vezes um jogo que eu não joguei e no qual, admitidamente não tinha nenhum interesse, tomou o imaginário popular como Hades. Hades foi extremamente premiado, está na lista de melhores do ano de praticamente todo mundo (até na minha, que até agora não tinha jogado). E, mais importante, muita gente diz que Hades é um roguelike capaz de agradar até mesmo quem não gosta de roguelikes. Será mesmo?
HADES NO PS5
Hades chegou ao PS4, PS5, Xbox One e Xbox Series na última sexta-feira 13. Era minha chance de experimentá-lo e analisar por conta própria se ele é mesmo tudo isso. Pois vamos lá.
Hades é um raro caso de um roguelike que coloca muita importância na história. Porém, não há cutscenes. A história é contada através de vozes/texto enquanto vemos uma imagem estática do personagem que está falando. Não é uma narrativa interessante, mas o texto é muito bom. Em especial, chama a atenção a quantidade de frases diferentes e altamente específicas que foram gravadas.
Um exemplo, eu me matei várias vezes seguidas para aumentar minha resistência (mais sobre isso em breve), e um dos personagens então falou que eu “parecia nem estar tentando”. Os desenhos, apesar de estáticos, são bem bonitos, com personagens bem sensuais, o que é corroborado por suas vozes.
A única crítica que tenho a fazer nisso é que a história nem sempre acontece na ordem planejada. Por exemplo, o jogo começa dizendo que a Nyx é mãe do protagonista Zagreus. Daí um pouco depois, o Zagreus diz que queria chegar na superfície para encontrar sua mãe Persephone. Eu achei que tinha esquecido algo e segui em frente, apenas para um tempo depois, o Zagreus descobrir que sua mãe era Persephone e que estava na superfície. E eu fiquei: “mano, você acabou de falar disso, como assim não sabia ainda?”.
O GOD MODE DE HADES
Não tenho dúvidas de que Hades é mais gentil do que a imensa maioria dos roguelikes. Ainda assim, simplesmente não é possível deixá-lo fácil, ou mesmo justo.
Há um God Mode, que a desenvolvedora sugere ligar para quem quiser curtir a história. É meu caso. Só que, ao contrário do que o nome promete, este modo não te deixa invencível. Ele diminui a quantidade de dano que você leva em 20%. Daí, cada vez que você morre, aumenta essa resistência em 2%.
Eu tentei de cara, e morri. Daí me matei algumas vezes de propósito, até a resistência chegar a 60%. Fui até o primeiro chefe, passei, e morri no início da segunda fase. Me matei mais algumas vezes, já de saco cheio, com a ideia de subir a resistência até os 90%, ou se pá até a invencibilidade total. Descobri que era impossível. O máximo é 80%. Então, se isso não for o suficiente para você, será necessário grindear muito para ganhar upgrades de outras formas.
HADES: ROGUELIKE PARA QUEM NÃO GOSTA DE ROGUELIKES
“Mas, Corrales, não é assim que se deve jogar Hades!”, questiona o delfonauta do fundão, com uma camiseta escrito “I love rogues“. Eu sei, amigão. Só que eu tenho sérias diferenças ideológicas e morais com o gênero roguelike como um todo. Em geral, quando a descrição de um lançamento inclui essa informação, eu imediatamente opto por ignorá-lo. Hades foi um caso à parte. Eu ignorei, mas as pessoas insistiram tanto na tecla de ele ser um roguelike para quem não gosta de roguelikes que eu queria experimentar e ver se mudava de ideia. Não mudei.
Se o seu problema com roguelikes é a falta de história, absolutamente, experimente Hades. Ele pode não ter investido muito na narrativa em si, mas o roteiro é muito bem escrito.
Agora se seu problema com o gênero forem os mesmos que os meus, bom, é melhor ignorar. Quais são meus problemas?
OS PROBLEMAS DOS ROGUELIKES
O principal é a perda de tempo. Voltar do início cada vez que você morre. Isso existe aqui. E eu diria que é até mais grave. Em jogos como Dead Cells, ou até o extremamente hostil Returnal, avançar permite desbloquear atalhos e até pular alguns (ou todos) os chefes. Em Hades, você volta da primeira fase quando morre, e tem que fazer tudo de novo, na mesma ordem, e vencer todos os chefes. Você consegue algumas moedas que permitem fazer pequenos upgrades permanentes, mas é só essa colher de chá que você terá, além do God Mode. O caminho continua sempre o mesmo.
Meu outro problema é o level design. Embora eu não entenda porque tem gente que gosta de roguelikes, eu entendo porque tantos desenvolvedores cismam em seguir o gênero. Afinal, o jogo é construído quase automaticamente. No caso de Hades, eles construíram a história e o combate, mas o level design, que acredito ser a parte mais trabalhosa de um jogo, é automática.
A coisa aqui é muito repetitiva. Você entra em um quadrado, alguns inimigos aparecem. Ao vencê-los você ganha uma recompensa, passa por uma porta, chega em outro quadrado e repete tudo. Depois de passar por um monte de quadrados com inimigos aleatórios, rola um quadrado com um chefe. Ao vencer o chefe, você muda de fase. Na fase seguinte é tudo igual, mas os inimigos aguentam mais golpes e o cenário dos quadrados é diferente. Hades realmente leva a sério a expressão “cada um no seu quadrado”. Indo de um quadrado para outro eu não sentia nenhuma progressão. Não tinha a menor ideia de quanto faltava para chegar ao chefe, podendo apenas continuar lutando até o jogo dizer que chegou a hora.
HADES E EU
Agora eu vou contar um pouquinho da minha experiência com Hades antes de escrever este texto. Depois de subir minha resistência a dano para 80% (o que deve ter levado mais de uma hora me matando na primeira tela repetidamente), resolvi jogar “pra valer”. Achei que poderia ser o primeiro roguelike que chegaria ao fim, até por ser o mais gentil de todos. Não foi.
A princípio me surpreendi com a facilidade com que venci a primeira chefe, que tinha me dado uma canseira anteriormente. Mas na segunda fase as coisas ficaram bem mais chatinhas. Do primeiro para o segundo nível, a vida dos inimigos aumenta muito. Para o terceiro, mais ainda. Isso deixa o combate extremamente cansativo. Lutando contra a dupla que serve de terceiro chefe, eu fiquei sinceramente cansado de martelar tantas vezes o quadrado.
A quarta e última fase é a única diferente. Ela apresenta vários caminhos que podem ser feitos na ordem que desejar (não é necessário fazer todos) e, cada vez que cumpre um, você encontra uma loja cheia de itens de upgrades temporários.
Minha experiência nessa fase foi particularmente frustrante. Logo de cara, eu fui envenenado, e esse debuff tirou metade da minha vida. Depois de acabar a luta, eu vi que tinha uma fonte, da qual eu tinha que ter bebido para me curar. Porém, o jogo não ensina isso (poderia aparecer um pop-up quando você fosse envenenado pela primeira vez). O feedback é tão sutil que eu só percebi que estava envenenado depois de ter perdido uma boa quantidade de vida. E daí não consegui mais recuperar minha vida a tempo para o último chefe.
VERSUS HADES
E daí vem o chefe. Surpreendendo absolutamente ninguém, o chefe é o paizão Hades. E eu já perdi as contas de quantas vezes Hades foi o chefe em um videogame. Só que aqui ele não vem sozinho.
O Hades em si é até bem sossegado. Porém, ele spawna dezenas de inimigos ao mesmo tempo, todos com armadura. Isso deixa muito difícil. E eu já cheguei nele com menos da metade da minha vida, graças unicamente à falta de tutorial para envenenamento.
Mesmo assim, com muito esforço, venci o paizão. Ele caiu e começou a reclamar. Achei que tinha vencido o jogo. Daí ele simplesmente se levantou, recuperou toda a vida e me matou!
Quanto mais velho fico, menos paciência tenho para chefes pentelhos. Sou da época do Nintendinho, de quando um chefe era vencido sendo atacado apenas três vezes. Aqui a primeira fase do boss já durou muito mais do que deveria. Ter uma segunda foi uma tremenda piada de mau gosto. Moralmente, eu me sinto no direito de dizer que eu terminei Hades.
TRAPAÇA
Depois de perder, e voltar para a primeira fase, pensei que poderia ter usado aquela trapacinha que descrevi aqui. Poderia ter feito um backup do save antes do chefe e daí podia tentar de novo sem ter que jogar a campanha inteira do zero. Eu fiz isso em Dead Cells, por exemplo, para vencer alguns chefes mais cascudos. Aqui isso só me ocorreu depois do save ter ido para o bananal. E convenhamos, eu não deveria ter que fazer todo esse planejamento só para tentar de novo vencer um chefe! Da mesma forma, não me parece um uso respeitoso do meu tempo ter que ficar me matando repetidamente para aumentar minha resistência. Eu podia escolher quanto quero de resistência – indo até invencibilidade total – direto pelo menu.
E este é meu problema com roguelikes em geral. Meu tempo é valioso demais para jogar absolutamente qualquer coisa duas vezes. Alguns raros casos, como Streets of Rage 4, eu já terminei mais de dez vezes. Porém, duvido que teria jogado uma segunda vez se tivesse ido até o último chefe e daí meu save fosse apagado. Eu repeti a campanha nesse caso porque o jogo é um prazer, não para provar que eu era bom o suficiente para ver o final.
E daí meu amiguinho com a camiseta “I love rogues” levanta a mão de novo e fala: “Pô, Corrales! Mas então você não deveria jogar rogues. O gênero não é para você”. E eu respondo: você tem toda razão, meu camaradinha. É inexplicável para mim que tenha gente que goste do gênero e que submeta seu tempo a tamanha repetição. Por Hades ser vendido como um roguelike para quem não gosta de roguelikes, pensei que ele poderia ser diferente. Não foi. E provavelmente será o último roguelike que eu vou jogar na vida, por mais premiado que algum outro representante do gênero seja no futuro.