Descobri a existência de Raw quando um amigo me enviou, no fim do ano passado, uma matéria que dizia “marromenos” o seguinte: “o filme que fez os espectadores desmaiarem/vomitarem durante sua exibição no Festival de Toronto”. Aliás, se você procurar pelo filme no deus Google, é possível que encontre mais matérias chamando a atenção para esse acontecimento em Toronto do que efetivamente falando sobre o filme. Vai lá, pode procurar. Eu espero.
Lendo aquela matéria, é claro que meu sentido-aranha disparou na hora, por dois motivos óbvios: a mórbida curiosidade de saber se o filme era isso tudo mesmo, e a absoluta descrença de que o filme fosse isso tudo mesmo. Porque o delfonauta escolado já sabe, afinal, como funcionam essas jogadas gratuitas de marketing.
Aconteceu com O Massacre da Serra Elétrica, em 1974, quando burburinhos circularam afirmando que sacos de papel estavam sendo distribuídos antes de cada sessão para que as pessoas vomitassem dentro deles, e não umas nas outras (o que talvez rendesse um marketing muito mais true).
Voltou a acontecer com o lançamento de A Bruxa de Blair, de 1999, que chegou aos cinemas acompanhado de um dos maiores casos de propaganda boca a boca do século passado: os atores estavam mortos, o filme era um documentário que mostrava suas últimas imagens, corra para o cinema para vê-los morrendo e coisa e tal. Gosto muito desses dois filmes, mas se tem algo que aprendi com eles foi a não criar expectativa.
E foi munido desse aprendizado que me sentei confortavelmente no escurinho da minha sala classe média, procurei pelo Raw na Netflix e tasquei o play. My body is ready.
MEIO SEM SAL, MEIO SEM GOSTO
Certamente eu poderia começar a falar sobre o filme agora e deixar para responder àquela pergunta intrínseca do segundo parágrafo no fim do texto, mas não quero que você, assim como eu, fique atrelado demais às expectativas. Então lá vai o veredito: o filme não é tão gore quanto a galera de Toronto estava pintando com seus jatos de bile e comida semidigerida, mas é bem mais interessante do que as notícias rasas e sensacionalistas do ano passado fizeram parecer.
Raw, como qualquer sinopse meia-bomba por aí vai te dizer em poucas linhas, é sobre uma estudante vegetariana que, depois de passar por um ritual de iniciação como caloura da faculdade de veterinária, adquire um gosto peculiar por carne. Humana. Pois é. Esse é mais um filme sobre:
CANIBALISMO (Nham)
Mas a verdade é que, em seu primeiro ato, ele absolutamente não fala sobre canibalismo. Tanto que, se eu não soubesse o que estava assistindo, poderia muito bem ter acreditado se tratar de um dramalhão indie sobre as desventuras de uma adolescente ingressando na faculdade.
Justine (Garance Marillier) é uma garota tranquilona que acaba de se mudar para o campus da universidade onde já estuda sua irmã mais velha, Alexia (Ella Rumpf). Logo nos primeiros dias de aula, Justine passa por uma sessão de tortura trotes que envolvem as mais diversas babaquices. Entre elas, comer carne crua.
Justine, sendo vegetariana, evidentemente reluta, mas sua irmã insiste que aquilo é necessário para que ela seja aceita no círculo social de universitários babaquinhas (afinal, todos sabem que ser humilhado e tratado como lixo é pré-requisito para que seus colegas possam gostar de você). Assim, por livre e espontânea pressão, Justine acaba cedendo e come o negócio. Daí em diante, desenvolve o tal apetite por carne, e o resto deixarei por conta da sua imaginação – mesmo porque não sobra muita coisa aí para ser imaginada.
Ainda que a narrativa seja de certa forma previsível, existem escolhas imprevisíveis que foram tomadas pela diretora Julia Ducournau neste seu trabalho de estreia, o que acaba sendo um ponto positivo. Há uma certa preocupação inicial em desconstruir as regras do jogo que costumam ditar o enredo dos filmes mais tradicionais.
Por exemplo: a relação das duas irmãs se equilibra em uma corda bamba, vacilando entre a raiva mútua e o apego familiar, de forma que você nunca sabe se elas gostam uma da outra ou apenas se suportam. Isso causa um certo desconforto no espectador que está acostumado às relações preto no branco tão benquistas por Hollywood, o que muito me apetece.
Também o terceiro pilar que sustenta a trama, o rapazote Adrien (Rabah Nait Oufella), parece estar ali para garantir que este não será o tipo de filme em que a protagonista tem obrigatoriamente um interesse amoroso. Adrien é o colega de quarto homossexual de Justine, um cara boa-pinta e provavelmente o personagem mais carismático dos três.
Até aí, tudo bem. Poderia ser um filmaço.
PORÉM
Infelizmente, aquilo que parecia jogar a favor do filme em seu início acaba por se tornar seu maior defeito: os personagens (incluindo o trio principal e mesmo os coadjuvantes que só estão ali por estar) transitam por uma área tão cinzenta que fica difícil torcer por qualquer um deles.
Os antagonistas são circunstanciais, a dinâmica entre as irmãs oscila desnecessariamente e mesmo Adrien acaba sendo subutilizado quando, lá pelo meio do filme, é posto para exercer um papel ridiculamente convencional na trama, de forma que muitas das boas intenções do roteiro são autossabotadas durante o percurso.
O filme parece nunca decolar, sabe como? Enquanto assistia, eu me perguntava o que exatamente a diretora estava querendo dizer com aquilo. Você sabe: Clube da Luta não é um filme sobre homens brigando, mas sobre tomar o controle da própria vida. Titanic gasta uma hora inteira para mostrar um navio afundando, mas trata mesmo é de um amor proibido.
Vendo Raw, fiquei o tempo inteiro tentando sacar sobre o quê, realmente, tratava aquele filme. Mas no fim das contas acho que era mesmo sobre canibalismo. Assim. Nada mais, nada menos.
É claro que qualquer um pode fazer um malabarismo intelectual para extrair algo mais dessa história. Um conto sobre desejos reprimidos? Talvez. Uma história que aborda subconscientemente o poder feminino? Acho difícil, mas quem sabe. Entretanto, para mim e meu cérebro limitado de homo sapiens cinefilus, faltou algo que justificasse o filme como um todo. Não necessariamente uma mensagem, mas um motivo, entende? Algo mais além de sua premissa.
Mas nem tudo está errado com Raw. Na verdade, você deve estar achando que eu detestei o filme, mas não é bem assim. Ele tem algumas qualidades também. Por exemplo:
AQUELA CENA
Serião, existe uma cena que faz valer o filme inteiro. Ela dá início ao segundo ato e faz com que a trama comece a avançar de uma vez. Claramente foi essa a sequência que chocou o pessoal de Toronto. Até dá para entender o motivo, mas não é uma cena tão lazarenta assim (caramba, eu vi quatro pessoas abandonando a sala no remake de Evil Dead, que é bem mais violento, e ninguém chegou a desmaiar).
Para alimentar sua curiosidade sem estragar a experiência, sobre essa cena vou me ater a jogar aqui as palavras “depilação” e “tesoura”, e você que se vire com o resto. Obrigado, de nada.
De qualquer maneira, mesmo essa cena “mais forte” tem um quê de humor-negro que a torna em certa medida palatável. Aliás, o filme inteiro parece reconhecer o absurdo das situações em que coloca seus personagens. Este reconhecimento, contudo, é bastante orgânico e quase sempre funciona. Por outro lado, também serve para manter o filme em cima do muro: ele nunca descamba para o terrorzão, mas também não se assume como qualquer outra coisa.
Entre um início enrolado, algumas cenas desconfortáveis e o desenrolar morno da narrativa, Raw sofre pela falta de rumo. Durante a projeção (mentira, eu estava vendo na TV de casa, mas fica elegante usar a palavra projeção numa resenha), por mais de uma vez me peguei pensando em como diabos terminaria aquela história.
Pois bem, não posso dizer que o final tenha me feito mudar de opinião sobre o restante do filme, mas ele foi bacana o suficiente para me fazer citá-lo aqui. Não apresenta nenhum tipo de grande revelação, nem é de todo inesperado, mas foi uma boa solução para encerrar uma trama que tinha saído do nada para chegar a lugar nenhum.
CONCLUSÃO (OU AQUELA PARTE EM QUE RETOMO O INÍCIO DA RESENHA PARA TENTAR FINALIZÁ-LA)
Minha experiência com filmes anteriores (leia-se “sucessivas decepções”) foi importante para, como já conversamos, não criar grandes expectativas. Eu esperava algo incômodo e banal (a violência pela violência), mas recebi um filme razoável, fácil de digerir, com relativamente pouca trasheira e bastante potencial (que todavia foi desperdiçado).
Minha esperança era de assistir algo na linha dos excelentes Corrente do Mal ou O Babadook, mas Raw está mais próximo de um filme esquecível como Boa Noite, Mamãe, apesar de ter um ritmo e desenvolvimento bem superiores a este.
Acontece que, honestamente, eu não saberia a quem recomendar este filme. Quem gosta de Terror com T maiúsculo vai achar meio sem graça, e quem curte um drama juvenil certamente achará pesado. Raw não tem uma história marcante, nem protagonistas memoráveis.
Não é ruim, mas está longe de ser excelente. Apesar de tudo, é coeso dentro de sua proposta e mais ou menos consistente em sua condução narrativa. Tem uma fotografia maneira, trilha sonora funcional, atuações que se sustentam e um roteiro redondinho, mas fica o tempo todo sugerindo que pode ser algo mais do que é, sem nunca sê-lo de fato. No fim das contas, parece ser um tipo de filme autofágico, tão confortável em se alimentar de si próprio que se esquece de tentar abocanhar o coração do espectador.