Nesta véspera de mais um Dia Internacional da Mulher, permita-me um desabafo: é difícil ser menina e cinéfila. Mesmo tendo uma parcela considerável de filmes dedicados a nós, muito raramente nós podemos nos sentir justamente representadas. Os chick flicks são um dos gêneros mais preguiçosos de Hollywood, sempre reciclando os mesmos moldes unidimensionais e preconceituosos.
Somos sempre diminuídas a estereótipos, e se já não fosse chato ter uma só característica, ainda costuma ser algo negativo, como fútil, neurótica, competitiva, etc. Se for uma comédia, a graça virá dela ser burra, ou gordinha, ou desesperada por um marido. Quando resolvem fazer uma moça “relacionável”, ela ainda será perfeita e interpretada pela Jessica Alba, mas vai tropeçar em uma ou duas cenas, porque defeitos de verdade são dificeis de escrever. Se for para ser uma mulher “moderna”, ela vai sofrer do que eu chamo de Síndrome da Megera Domada: ela começa como uma mulher independente que tem sua vida sob controle e uma carreira promissora, mas o filme vai mostrar o quanto ela era egoísta e má em achar que era um ser humano completo sozinha, e no fim ela percebe que tudo o que ela precisa é de um grande amor. E estes são só uns poucos exemplos. Eu nem vou entrar no assunto dos filmes teen.
E se é difícil achar obras que nos tratem bem nos longas que são feitos para nós, imagine nos gêneros nerds, que são tradicionalmente masculinos? Somos sempre obrigadas a ignorar toneladas de sexismo se quisermos ver uns helicópteros explodindo, uma invasão alienígena ou adaptações de quadrinhos. Mas de vez em quando, os planetas se alinham propiciamente e nós somos presenteadas com filmes que nos agradam – ou pelo menos não nos incomodam. Eles ainda são minoria, mas existem, e aqui eu listo cinco recentes que acertaram. Depois das menções, é claro.
MENÇÃO HORROROSA: SUCKER PUNCH
Só lembrar dessa atrocidade me dá coceira. Na resenha, o Corrales o comparou a Scott Pilgrim Contra o Mundo, o que para mim, indicaria um bom filme. Tanto que na época foi isso que eu comentei: se for como Scott Pilgrim, eu provavelmente vou gostar. Mas passou bem longe. Embora Scott Pilgrim também tenha seus problemas, ele tem Ramona, Knives, Stacey, Julie, Envy, Roxy, um monte de meninas nos mais diversos papéis e sendo personagens como quaisquer outros. Apesar de ser um filme de nicho, meninos e meninas nerds têm as mesmas chances de curtir Scott Pilgrim, dependendo de seus padrões. Sucker Punch, por outro lado, simplesmente nos excluiu.
Talvez eles pensaram que encher o filme de mulheres armadas até os dentes poderia enganar meninas desavisadas que assistiram por fazê-las parecerem “poderosas”. O que não é o caso, porque elas são tão objetificadas e tão obviamente embaladas para consumo masculino que foi incômodo de assistir. Nem as cenas de ação bonitonas com cara de videogame conseguiram compensar.
E a protagonista não é só sexualizada, mas também infantilizada, de maria-chiquinhas, uniforme de colegial. Um tipo de fetiche muito visto em games e etc, mas que para mim sempre será um tanto perturbador. As mulheres desse filme são basicamente enfeites, decorados com metralhadoras e katanas, e com cores de cabelo variados para que os rapazes escolham qual gostam mais. Hollywood, não faça isso com a gente, por favor. Nós merecemos ser mais do que objetos sexuais.
MENÇÃO HONROSA: LEGALMENTE LOIRA
Foi difícil escolher esse aqui. Pensei em prestar homenagem à pioneira suprema Ellen Ripley; ou ainda às clássicas paródias como Patricinhas de Beverly Hills e Garotas Malvadas; ou ainda os mais recentes como A Mentira e O Diabo Veste Prada. Mas nenhum desses é supreendente como este clássico. Você começa achando que sabe exatamente onde vai dar, e no fim acaba sendo o exato oposto.
Escrito por Karen McCullah Lutz e Kirsten Smith, a mesma dupla que fez o Shakespeare teen 10 Coisas Que Eu Odeio Em Você, ele acompanha Elle Woods: uma típica patricinha interpretada por Reese Witherspoon. Ela é chutada pelo namorado Warner, que está indo estudar Direito em Harvard e diz que quer se cercar de gente mais intelectual. Ela então decide entrar em Harvard também, só para provar que consegue ser a moça que ele quer.
E por incrível que pareça, ela consegue. Chegando lá, ela descobre que nem isso vai fazê-lo mudar de ideia porque ele é um grande babaca, e então resolve provar que tem tanta capacidade quanto qualquer um ali. E apesar de ser menosprezada e discriminada por colegas e professores, ela persiste sem nunca perder o otimismo, a fofura e os modos impecáveis. E ela vai tão bem que consegue um estágio, onde vai ajudar a defender uma outra moça que sofre com o mesmo preconceito. Quando tudo parece estar dando certo, Elle descobre que seu professor só concedeu o estágio porque também é um babaca com segundas intenções. E é aí que ela assume o caso sozinha e ganha, apesar de não ser nem formada ainda.
Ao vê-la tão prestigiada e bem sucedida, Warner obviamente volta atrás, mas Elle já percebeu que merece coisa melhor e o dispensa, ficando até amiga da sua antiga rival. Ainda existe um romance, mas dessa vez é com um cara que sempre acreditou nela e a tratou com respeito. Alguém para quem ela não precisou provar nada.
Além de surpreendente, Elle é uma personagem absolutamente positiva. Um ótimo exemplo de que ninguém se define por sua aparência, seus gostos ou sua origem. Um dos filmes mais explicitamente feministas que eu já vi, e sem nunca perder o jeitão de comédia sessão da tarde. Com tantos filmes em que a personagem precisa se despir de qualquer feminilidade para ser considerada ‘forte’, nós queremos em nossas telas mais moças como Elle Woods, que chutam bundas sem abrir mão do saltinho cor-de-rosa.
5 – A TODA PROVA
Este foi o filme em que Steven Soderbergh provou que a igualdade é possível, e que dá para fazer até um Testosterona Total sem a testosterona.
Tem um agente do governo, e todos os bandidos querem matá-lo porque ele é o mais tremendão no que faz. Começa-se uma caçada, e o nosso protagonista badass vai sair na mão com um monte de gente. Temos um monte de coadjuvantes atraentes, e o protagonista eventualmente vai se envolver com um deles. Mas isso vai ser deixado de lado rapidamente, em favor de mais pancadaria. É um típico filme de ação daqueles que se levam a sério demais, até no fato de que é estrelado por um ex-atleta de artes marciais. Deve ter sido por isso que meu pai o escolheu para assistirmos um sábado desses. Só que ao invés de um Jason Statham ou The Rock da vida, me deparei com Gina Carano. E ao invés de um monte de meninas com pouca roupa, temos moços bonitos como Ewan McGregor e Michael Fassbender.
Você já deve ter ouvido falar da Regra 63 da internet, que diz que “para cada personagem masculino, haverá uma versão feminina e vice-versa”. Aqui é basicamente isso. Nada é suavizado porque ela é uma mulher, ninguém duvida da capacidade dela de chutar bundas. É o mesmo tipo de filme, só que por acaso é estrelado por uma moça. O tratamento é exatamente o mesmo, e deu tão certo quanto.
4 – THOR
Eu já comentei por aqui o quão agradecida eu sou por Joss Whedon estar por trás de Os Vingadores, e o bem que isso fez para personagens como a Viúva Negra (que vai ganhar seu próprio filme, YAY! :D). Mas mesmo antes da grande reunião de heróis, o Marvel Cinematic Universe já tinha provado ser um território amigável para nerds do sexo feminino. Na Fase 1 o melhor nesse aspecto foi Thor.
A Jane foi um excelente exemplo de que a mocinha pode ser um personagem inteiro, e não somente um troféu para recompensar o herói. Ela tem o mesmo tempo de tela (se não mais) que o próprio Thor, já está em sua própria jornada científica antes mesmo de ele aparecer, e sua história ganha o mesmo desenvolvimento. Apesar de ser tímida e fofa, Jane também é super inteligente e não hesita em defender seu trabalho. E apesar de não tomar parte na briga, continua sendo útil na trama.
Além dela temos Frigga, esposa e mãe exemplar que não se importa em pegar na espada de vez em quando. Ela é o oposto do Odin no relacionamento com os filhos, tanto que é a única pessoa para quem o Loki ainda se importa de prestar contas depois de passar para o lado negro da força. A guerreira Lady Sif também foi muito acertada. A colocaram de igual para igual com seus companheiros, sempre sendo respeitada e nunca usada como donzela em perigo. E não podemos esquecer da Darcy, que serve de alívio cômico – um papel predominantemente masculino – sem ficar caricata e ainda com personalidade.
Quatro mulheres totalmente distintas, tratadas com a mesma atenção e sem serem limitadas por clichês. Um raro filme de superherói que passa no Teste Bechdel, e mostra que mulheres podem ter qualquer tipo de arco ou função numa trama e ainda serem representadas realisticamente. E isso tudo só foi aumentado na sequência, assim como o tempo de tela do Tom Hiddleston. Estão no caminho certo para agradar o público feminino. =P
3 – DREDD
Mas nós sabemos que também há outro tipo de adaptação de quadrinhos. Um tipo mais sério, mais brutal e, frequentemente, ainda mais machista. Eu nunca tinha lido Dredd antes de ir ver o filme, então já esperava algo do tipo. E estava muito errada!
Na verdade, três dos personagens principais são mulheres, e todas elas ótimas. Primeiro, os dois grandes postos de poder – a chefia dos Juízes e a liderança da máfia – são ocupados por mulheres, cuja autoridade nunca é questionada. A vilã Ma Ma, interpretada pela sempre excelente Lena “Cersei Lannister” Headey, foi o grande destaque do filme. Ela é brutalmente eficiente, e tão ameaçadora quanto qualquer homem seria, graças aos mesmos meios: violência e intimidação. De novo não houve nenhum parâmetro diferente pelo fato dela ser mulher.
E do lado da lei nós temos a Anderson, a juíza que tem poderes psíquicos. Ela é mais empática e compassiva do que o Dredd, mas não é mostrada como exageradamente sentimental. Ela é ameaçada diversas vezes e todos os vilões que ela enfrenta a subestimam, só para serem miseravelmente derrotados logo depois. Ela chega a ser capturada, e quando eu achava que eles dariam a escorregada de fazê-la de donzela em perigo, ela mesma se salva e vai ajudar o Dredd.
Percebe que continua sendo um filmaço de ação, igualmente sanguinolento e tremendão? A única diferença é que ele tem mulheres e as trata como pessoas.
2 – CÍRCULO DE FOGO
Ah, como eu amei este filme. Em Círculo de Fogo, Kaijus invadem a Terra e são combatidos por Jaegers, robôs gigantes construídos graças à cooperação global. Com um elenco diversificado e evitando vários tipos de clichês, ele se passa em um futuro à margem do apocalipse, mas tem um final feliz e uma mensagem positiva onde o nosso amor pela tecnologia nos salva ao invés de nos destruir, e onde os brilhantes cientistas da resistência são jovens com tatuagens e mechas coloridas no cabelo.
Ele virou um dos meus filmes preferidos, ao ponto de eu ter nomeado minha gata de Mako, e os motivos são muitos. Grande parte vem do elemento surpresa. Quando você vai ver o “filme do Godzilla vs. Megazords”, como eu costumava chamá-lo, você quer algo épico, empolgante e visualmente impressionante, mas não espera algo tão bem escrito. E com uma visão tão legal quanto aos gêneros.
O próprio Raleigh já é um aspecto a considerar. Um rapaz belo, loiro e forte, com uma tragédia em seu passado. Tem tudo para ser aquele herói sombrio e retraído de sempre. Mas não: ele vem cheio de sensibilidade, consideração e inteligência emocional. Apesar de ser o protagonista, tudo o que ele faz no filme é pelos outros. Não só pilotando o Jaeger, mas apoiando o irmão, voltando à luta sem ele depois, encorajando a Mako e intercedendo por ela com o Pentecost. No final, Spoiler ele termina a missão sozinho Fim do spoiler, mas para variar, não é por achar que é o único capaz. Ele diz com todas as letras que qualquer um poderia. O filme é todo sobre companheirismo e esforço coletivo, e ele personifica isso. Um herói (e um filme) que tem ao mesmo tempo músculos, cabeça e coração.
Depois, obviamente, tem a Mako. Apesar de ser a única personagem feminina relevante no filme – porque a moça russa do Cherno Alpha foi tragicamente desperdiçada –, ela já conta como uma boa representação. Primeiro porque ela nunca é objetificada. A aparência dela está longe do padrão heroína de ação, e ela só é mostrada em trajes idênticos aos de suas contrapartes masculinas.
Além disso, logo na primeira cena dela, o Pentecost a apresenta como a brilhante mente por trás da restauração dos Jaegers. Daí em diante ela é desenvolvida de várias formas: ela derrota o Raleigh na luta (outra coisa legal: ele não se mostra humilhado ou diminuído por causa disso), ela falha ao levar muitas memórias para o fluxo, ela se submete por respeito ao Pentecost, e depois aceita ir em frente na missão apesar de saber que Spoiler não vai poder salvá-lo Fim do spoiler. Inteligência, força, intensidade, fragilidade, tudo isso cabe nela porque ela é uma personagem completa, multidimensional. E apesar de se aproximar muito do Raleigh, o romance é posto de lado, porque simplesmente não combina com a lógica de uma personagem cuja prioridade é vingar sua família. E cancelar o Apocalipse.
Guillermo Del Toro tem meu respeito porque já entendeu e leva em consideração o fato de que hoje em dia obras de Ficção Científica não têm mais os rapazes como único público alvo. Coisa que gente como J.J. Abrams (lembra daquela cena absolutamente descartável da Tenente se trocando em Star Trek Into Darkness?) parece ainda não ter percebido. Só espero que até o novo Star Wars sair, ele já tenha se tocado.
1 – FROZEN
Eu adoro os filmes da Disney. Até hoje. E eu costumo defender as princesas com unhas e dentes. Mas não dá para negar que, salvo algumas exceções, dificilmente deixam que as moças dos Contos de Fadas sejam as protagonistas de suas próprias histórias. Eles sempre colocam um rapaz para resgatá-las e/ou transformar suas vidas, mesmo que elas possam muito bem fazê-lo sozinhas. Mas este ano tivemos Frozen. O filme tem muitos problemas, e não é um dos mais inspirados da casa do Mickey, mas ele tem diferenciais que o tornam realmente especial e progressivo, principalmente neste aspecto feminista.
Para começar, já tem o fato de que a trama romântica mandatória é totalmente secundária. A trama principal é sobre o relacionamento de duas irmãs. Temas familiares são de praxe na Disney, mas é muito difícil ver um filme com duas protagonistas mulheres e adultas, em que o romance não é o arco principal de nenhuma das duas. Acho que só o excelente Lilo & Stitch fez algo parecido, com a diferença de que a Lilo tem sete anos. E em Frozen isso é explícito. Elas literalmente escolhem uma à outra no final.
E as duas irmãs são personagens muito interessantes. A Anna parecia estar na linha da Rapunzel de Enrolados: fofinha, com senso de humor e sem noção de como é o mundo. Só que ela também é bem imatura e egoísta no início. Fica tão obcecada por encontrar um par que acaba expondo a irmã e seus poderes de gelo, desencadeando a crise que causa um inverno eterno no reino. Mas logo depois ela sai determinada a se reconciliar com ela e consertar tudo, e não poupa esforços para isso.
Quem me agradou mesmo foi a Elsa. Uma personagem surpreendentemente complexa: perigosa e ao mesmo tempo assustada, que vive fugindo de suas responsabilidades e resiste em aceitar ajuda, mas ainda assim sensível e doce. Ela tem até aquele charme e carisma clássicos de Scar, Maléfica, Hades e companhia, mas sem ser uma vilã de fato, o que é novidade e muito legal.
Até os pais delas, que mal aparecem, também reiteram essa ideia de que bem e mal vêm em tons de cinza, e que pessoas bem intencionadas às vezes fazem coisas ruins. E as duas provam que ter problemas sérios e cometer erros feios não faz de você uma má pessoa, desde que você amadureça e melhore daí para frente. É uma boa mensagem.
O roteiro também acertou ao colocar em evidência detalhes absurdos que eram engolidos sem questionamento antes, como a história do amor à primeira vista e dos noivados no mesmo dia. Num plot twist genial, eles exploraram o fato de que – com o perdão do SPOILER – sempre há o risco de que o seu amor à primeira vista seja um sociopata que parece ter saído diretamente de Game of Thrones e não vai hesitar em cortar a cabeça da sua irmã para ficar com seu reino. FIM DO SPOILER.
Frozen trouxe princesas com um novo nível de complexidade emocional, e um bom senso de prioridades. Essas mudanças podem parecer pequenos detalhes, mas quando a esmagadora maioria de filmes destinados a meninas tem personagens rasas e genéricas, com sempre as mesmas motivações e cumprindo os mesmos arcos, Frozen foi um grande passo em direção ao tipo de narrativa que as nossas garotinhas merecem ver. E confesso que graças às milhões de paródias, versões e covers internet afora, eu acabei me afeiçoando por Let It Go:
Sabe, nós não pedimos demais. Feminismo não se trata de superioridade feminina (isso se chama Femismo) e sim de igualdade entre os sexos. Nós só queremos que as moças dos filmes pareçam pessoas de verdade. Protagonistas, coadjuvantes, mocinhas, vilãs, heroínas, mentoras, alívios cômicos, tanto faz. Desde que também sejam interessantes, complexas, acreditáveis. Não é tão difícil, vai!