Games são cultura?

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A Ministra da Cultura, Marta Suplicy, criou uma baita polêmica ao anunciar o novo Vale-Cultura. Não porque a medida é ruim; aliás, ela é bem interessante e positiva: a proposta dela é de que pessoas com renda de até cinco salários mínimos possam receber R$ 50,00 mensais para gastar, exclusivamente, com cultura, seja em produtos como livros ou eventos culturais, ou em exibições de arte e peças de teatro. Tudo que o Vale vai englobar, porém, ainda não está definido, e o Ministério está ouvindo diversos setores para considerar as possibilidades.

Daí vem a polêmica: quando perguntada se o Vale-Cultura iria abranger videogames também, Marta disse que o assunto ainda não foi estudado profundamente, mas que inicialmente era contra e que ela não acha que jogos digitais sejam cultura. E agora?

ANTES DE TUDO, O QUE É CULTURA? E O QUE É ARTE?

Cultura e arte são dois daqueles conceitos super complicados que todos nós sabemos o que são, mas não sabemos como explicar (ou, se sabemos como, temos dificuldade ao fazê-lo). A verdade é que, além de complexos, esses conceitos são bastante pessoais: cada um tem uma percepção diferente do que é arte e cultura, e isso é perfeitamente normal. Alguns podem dizer que cultura, por exemplo, representa as características e tradições de um povo, enquanto outra pessoa pode afirmar que cultura é toda criação humana. E, apesar de essas respostas parecerem iguais, elas são diferentes.

Assim, seria redundante ficar discutindo esses conceitos, delfonauta. Pense nos seus conceitos sobre arte e cultura e lembre-se deles conforme você lê este texto. Fazendo isso, eu facilito a sua vida e você a minha. Vamos partir de outra pergunta mais importante e que será mais produtiva para a discussão.

QUAL É A PROPOSTA DOS GAMES, AFINAL?

Quando os videogames surgiram, os desenvolvedores não tinham ideia de como fazer com que as pessoas se interessassem por eles. Dadas as limitações técnicas iniciais, os games eram bastante simples, e basicamente baseados nos jogos não digitais que existiam ao redor do mundo. É por esse motivo que o objetivo de muitos dos arcades e dos primeiros jogos eletrônicos resumia-se a alcançar a maior pontuação possível, ou ainda por que os jogos vinham com grandes manuais de instrução para explicar como jogá-los. Esses eram parâmetros de como jogos tradicionais (xadrez e jogos de baralho, por exemplo) funcionavam e, naturalmente, as referências para criar games eram eles.

Nessa primeira fase dos games, acredito que o propósito deles era quase exclusivamente entretenimento. Aliás, talvez seja esse o motivo para que muitas pessoas que não acompanharam a evolução dos games acreditem que eles sejam puro entretenimento, já que os enxergam como eram no início. Mas os games começaram a ser muito mais do que puro entretenimento quando os desenvolvedores entenderam uma coisa importante: games permitiam que o jogador vivencie coisas que nunca sentiria na vida real.

Pense assim: com o cinema, podemos ouvir, ver, sentir o que os personagens passam. Os jogos dão um passo adiante ao permitir que o jogador deixe de ser o espectador e sinta na pele o que o personagem passa, ou melhor, ele passa a ser o personagem. É por isso que dizemos que se joga como um personagem, ao invés de com um personagem. Você não está acompanhando a aventura dele, mas sim a vivendo. E essa característica por si só traz inúmeras possibilidades.

MAS VIDEOGAMES SÃO APENAS ENTRETENIMENTO?

Alguns anos atrás, eu falaria que sim. Hoje, digo que não. Videogames não são apenas entretenimento. O motivo é simples: games possuem conteúdo, é possível aprender muita coisa com eles e, assim, um jogo pode trazer tanta bagagem ou mais quanto um livro, filme, CD de música ou peça de teatro.

Para quem não acompanha games, pode parecer que não, mas neles temos uma tonelada de referências culturais e conteúdos interessantíssimos. Tetris, um jogo de 1984 que nem todo mundo sabe que foi feito na União Soviética (R.I.P.), já foi apontado diversas vezes como uma alusão à história do socialismo. Pense nisso: você encaixa diversos blocos diferentes, um atrás do outro, tentando combiná-los da melhor maneira, mas para qual objetivo? No fim, é impossível vencer, por mais tempo que você tenha aguentado.

Quer mais? Vamos a outros exemplos:

Pokémon (é, meu!): Em Pokémon Black e Pokémon White, dois dos mais recentes jogos da série dos monstrinhos de bolso, a trama principal envolve uma equipe chamada Team Alpha que deseja roubar os Pokémon de todas as pessoas e soltá-los, porque eles acreditam que os pocket monsters são escravos dos humanos. Durante todo o jogo, N, o líder do Team Alpha, entra em choque porque ele percebe que os Pokémon estão felizes com sua relação com as pessoas.

Black e White não estão querendo discutir abusos de animais, na verdade. Os jogos focam em outro tema, que é o da aceitação de opiniões e de pessoas diferentes. Assim, o líder do Team Alpha deixa de querer impor sua visão de mundo sobre as outras pessoas ao reconhecer que as experiências delas são diferentes das dele e que o que pode ser certo para ele não é para outras pessoas. Essa ideia é amplamente desenvolvida no jogo, e pessoalmente considero a mensagem de aceitar pessoas e opiniões diferentes bastante positiva e se você discorda de mim, queira por gentileza morrer dolorosamente. Também vale lembrar que os Pokémon são todos baseados em animais reais ou mitos tradicionais da cultura oriental, e há muito o que aprender para quem estiver interessado.

Megaman: Nos jogos originais de Megaman, há dois cientistas principais: o bom Dr. Thomas Light, criador do robozinho azul, e Dr. Albert Willy, o vilão da série. Os nomes deles são referências a Thomas Edison e Albert Einstein, e o design dos personagens inclusive lembra os cientistas reais. O curioso é que Einstein é geralmente lembrado por ser um cara do bem, pacifista, enquanto Edison foi acusado de ter abusado de animais e criou a cadeira elétrica, tendo utilizado para eletrocutar um elefante de circo (ele inclusive filmou o “experimento”).

Oras, e por que os desenvolvedores japoneses associaram Einstein ao vilão Willy? A teoria é de que, como Einstein incentivou a criação da bomba nuclear nos EUA durante a Segunda Guerra, os desenvolvedores fizeram comparações entre ele e o cientista louco Dr. Willy, que quer implantar o caos no mundo.

The Legend of Zelda: Majora’s Mask: A série The Legend of Zelda é conhecida pela grande qualidade e importância de seus títulos, mas um jogo em especial se sobressaiu em termos de tema e complexidade dentro de todos eles: The Legend of Zelda: Majora’s Mask. Lançado em 2000 para Nintendo 64, o jogo começa com Link, o protagonista, vagando pela floresta em busca de uma amiga que ele perdeu, Navi, fada importante do clássico Ocarina of Time. Sua missão é burlada quando um personagem usando a tal máscara do nome do jogo rouba seus itens e o transforma em uma outra raça.

Link é transportado para um lugar chamado Termina, onde a lua vai cair devido aos poderes da máscara e destruir tudo em três dias. O tempo corre durante todo o jogo, o chão treme com a lua se aproximando de hora em hora e o único jeito de impedir a destruição é voltando no tempo, em um ciclo que dura até o final do jogo. Tenso, não? Mas agora é que fica legal: cada região do jogo representa um estágio dos cinco estágios do luto, teoria desenvolvida pela psiquiatra suíça Kübler-Ross.

Segundo a teoria, uma pessoa que está prestes a morrer ou de presenciar algo muito trágico, passa pelos estágios de: negação, raiva, barganha, depressão e aceitação. Os habitantes de cada região de Termina reagem de acordo com um estágio, sendo que na primeira cidade, Clock Town, eles não acreditam que a lua vai cair (até a música é animada, em contraste com a assustadora lua pairando no céu). Hoje este conceito é desenvolvido e aplicado tanto em pessoas que sofrem de luto por um ente querido (no caso do jogo, Link), como por pessoas próximas da morte (os moradores). Claro, é muito mais denso, mas você pode ver um vídeo resumido para ter uma ideia melhor. Sem dúvida, este é um jogo que considero arte.

Outros conteúdos interessantes estão em todo lugar. A série Assassin’s Creed é ambientada em períodos importantes da história da humanidade, e poder visitar cidades como Constantinopla, Roma e Jerusalem da forma que eram centenas de anos atrás é uma experiência que só os games podem oferecer. Aliás, a autenticidade delas é tão importante que, em Assassin’s Creed III, um dos aspectos clássicos da jogabilidade foi deixado de lado por tirar a fidelidade da cidade: como os prédios estavam concentrados na mesma região da cidade, boa parte do mapa não tem os tradicionais viewpoints.

Também vale mencionar Guitar Hero e Rock Band, que permitiram que várias pessoas conhecessem rock’n’roll e heavy metal de uma nova forma, funcionando como passaporte cultural para esses estilos de música. E é só continuar pensando que outros exemplos surgem. Com tudo isso, é fácil perceber que há um universo de conteúdo muito interessante nos videogames – e que eles podem ser considerados cultura, dependendo do seu ponto de vista.

CULTURA, ARTE E INDÚSTRIA

Games podem parecer apenas entretenimento para quem não conhece o assunto muito a fundo, mas penso que eles, assim como o cinema, por exemplo, são tanto entretenimento quanto cultura. Há filmes que nem de longe nós consideraríamos arte, ou cultura, mas há outros tão valiosos que colocamos ao lado de obras de Machado de Assis. Por que com games deveria ser diferente?

Sim, os games nasceram dentro da indústria cultural e a maioria deles não pode ser considerada arte. Mesmo assim, há espaço cada vez mais para jogos mais “artísticos”, com mais sentimento. Os jogos estão cada vez mais acessíveis, então há espaço para termos joguinhos bobos e viciantes como Angry Birds, mas também para coisas como Journey e outros jogos indie. E todos eles fazem parte da cultura dos games que, embora possa ir um pouco contra os conceitos mais tradicionais de cultura, não deixa de fazer parte de um universo no qual muitas pessoas compartilham informações e conteúdo.

CONCLUSÃO?

Games, em minha opinião, são cultura, mesmo que um tipo diferente dela, e alguns deles podem até ser considerados arte. Claro que essa é uma mídia/plataforma muito nova para tirar muitas conclusões a respeito, mas é exatamente por isso que tantas pessoas torcem o nariz para eles. É preciso dar tempo ao tempo, mas um dia é possível que os games sejam tão aceitos quanto o cinema.

Até lá, é importante não negar a importância que eles têm. São a forma de entretenimento mais popular atualmente, antecipam muitas tecnologias que chegarão mais tarde a outras mídias e podem enriquecer muito o repertório cultural das pessoas que se interessam por eles. Ignorá-los é ignorar a importância do desenvolvimento tecnológico e atrapalhar ainda mais o desenvolvimento cultural dos brasileiros.