Tiresia

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Filmes franceses são famosos por serem incompreensíveis, “densos”, difíceis… E muitos deles realmente são. Tiresia, que causou furor na França e até participou da seleção oficial do Festival de Cannes em 2003, não foge dessa tradição.

Antes de mais nada, todo espectador de Tiresia deveria conhecer o mito grego do adivinho Tirésias. Vamos então a um pouco de mitologia grega… Diz a lenda que um dia Tirésias estava passeando em uma floresta e em seu caminho encontra duas serpentes transando. Ele mata uma delas, a fêmea, e imediatamente se transforma em uma mulher. Durante sete anos Tirésias vive como mulher até que novamente se depara com duas outras serpentes copulando. Mais uma vez mata uma delas, dessa vez o macho, e volta então a ser homem. Um dia, no dolce far niente do monte Olimpo, os deuses gregos Zeus e Hera discutem sobre quem teria mais prazer no ato sexual, a mulher ou o homem. Chamado à presença deles para dar sua opinião, já que havia vivenciado os dois sexos, Tirésias confirma que é o homem quem tira maior prazer do sexo, o que desperta a ira da deusa Hera. Como punição, ela cega Tirésias. Zeus, com pena do rapaz, resolve então lhe dar o dom da profecia e Tirésias se transforma no mais famosos adivinho da Grécia. A partir daí, podemos entender um pouco mais do filme. Sem o conhecimento prévio dessa lenda, o filme fica totalmente sem pé e nem cabeça e os questionamentos fundamentais que provavelmente motivaram o diretor Bertrand Bonello a realizá-lo se tornam tão sutis que a compreensão do mesmo é praticamente impossível para o público em geral.

Tiresia conta a história de um transexual brasileiro (Clara Choveaux) que ganha a vida se prostituindo no Bois de Boulogne, famoso ponto das “bonecas” brasileiras em Paris. Uma noite, um psicopata fascinado pela ambigüidade dos transexuais (Laurent Lucas), a leva para casa e faz dela sua refém e seu objeto de adoração. Terranova, o “cliente”, não chega a fazer sexo com Tiresia, ele apenas se satisfaz em admirar aquele corpo que contém em si os dois sexos; em sua concepção, sinônimo de perfeição. O problema começa quando, privada dos hormônios que artificialmente a tornam mulher, Tiresia começa a apresentar características masculinas. Terranova tenta obter os hormônios, mas não consegue. Ao ver sua “rosa mais perfeita” (quem assistir ao filme vai entender essa metáfora) voltar aos poucos a ser apenas um homem, Terranova a cega com uma tesoura e abandona seu corpo à beira de um riacho para que lá morra.

A partir daí, o que parecia um bom – apesar de lento – thriller de terror psicológico, se transforma em um filme que tenta discutir sexualidade e religião de uma maneira um tanto quanto confusa. Tiresia, agora homem (Thiago Teles), é encontrado por uma moça muda, Anna (Célia Catalifo), que cuida dele e o leva para morar em sua casa. O ex-transexual (e isso existe?) começa então a fazer profecias e passa a ser visitado pela população local em busca de respostas sobre o futuro. O padre da localidade (mais uma vez Laurent Lucas) visita Tiresia algumas vezes e fica intrigado com aquela criatura bizarra, com rosto de homem, seios, cego, e que prevê o futuro. Tiresia parece então se arrepender do seu passado como transexual, mas não mostra revolta. Pelo contrário, fica resignado com o seu destino e com o seu dom de profecia. O filme termina de maneira surpreendente e, como em vários filmes franceses, com uma cena que nada explica.

Tiresia é um filme onde a palavra de ordem é dualidade. Claro e escuro, homem e mulher, confinamento e vida ao ar livre, amor e ódio, mundano e sagrado. O fato do mesmo personagem (Tiresia) ser interpretado por dois atores diferentes (Clara Choveaux e Thiago Teles) e de dois personagens (Terranova e o padre) serem representados pelo mesmo ator (Laurent Lucas), reforça essa obsessão do diretor pela dualidade, mas às vezes cai em clichês.

Particularmente não acredito que Tiresia vá agradar ao público brasileiro em geral. O filme é um exemplar do que costumamos chamar de “filme de arte” ou, popularmente, “filme cabeça”; tem belas imagens, mas no todo, deixa muito a desejar. Tiresia é lento, cheio de metáforas de difícil entendimento, e a ausência de qualquer explicação prévia sobre mito grego de Tirésias dificulta, e muito, sua compreensão.

O Destaque vai para algumas atuações individuais; a brasileira Clara Choveaux consegue em seu primeiro papel no cinema, dar uma dimensão humana e consistente a um personagem difícil e de nuances psicológicas muito profundas. A cena em que Tiresia aparece em nu frontal choca ao revelar uma mulher de beleza incomum, de rosto andrógino, alta e de corpo delicado (sem os exageros comuns aos transexuais) com um pênis (dos grandes!) entre as pernas. Clara não parece nem de longe um transexual, mas provavelmente era essa a intenção do diretor Bonello, o personagem Terranova busca por um transexual “perfeito”, que contrasta com o excesso de silicone dos outros transexuais de verdade que aparecem no filme. Apesar disso, a brasileira convence, principalmente nas cenas em que aparece barbada; não é à toa que foi pré-selecionada para concorrer ao César (Oscar francês) como melhor atriz revelação. A atuação de Thiago Teles fica prejudicada se comparada à de Clara, mas o rapaz também é talentoso. Já Laurent Lucas, que aparece em dois papéis, deixa muito a desejar; muita gente vai ficar em dúvida se Terranova e o padre são a mesma pessoa, ele interpreta os dois papéis sempre com a mesma cara de dúvida e a testa franzida… Célia Catalifo também dá um show e consegue transmitir com os olhos tudo que a mudez da Anna quer dizer.

Até mesmo em relação à opinião dos espectadores, Bertrand Bonello terá a dualidade que tanto buscou e mostrou em seu Tiresia. Com certeza não haverá opiniões “em cima do muro”, Tiresia é um daqueles filmes sem meio-termo, que as pessoas ou amam ou odeiam.

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