Quando a Maurício de Sousa Produções anunciou que lançaria uma série de graphic novels estreladas pelos personagens do Maurício de Sousa que habitam o imaginário de qualquer pessoa que viveu sua infância no Brasil nos últimos 50 anos, eu não sabia o que pensar.
Por um lado, a ideia de juntar alguns dos desenhistas que fizeram parte da sensacional série de homenagens MSP 50 para desenvolver histórias fechadas, com uma arte própria e uma abordagem mais madura me agradou muito. Por outro, eu ainda não me recuperei do trauma causado pela última grande inovação da companhia.
Portanto, quando vi Laços na banca, fiquei bastante cético se comprava ou não a edição. Após pensar por um tempo, resolvi comprá-la de qualquer forma. E como você pode ver pelo brilhante selo supremo aí em cima, foi uma compra que realmente valeu cada centavo.
ADVENTURE CALLS
A história é bem simples: Floquinho, o cachorro do Cebolinha, desapareceu. Para encontrá-lo, a turminha resolve partir em busca de seu amigo canino, embarcando em uma aventura cheia de mistérios, perigos e altas confusões do barulho, seguindo a mesma linha dos clássicos filmes infantis dos anos 80, como Os Batutinhas, Garotos Perdidos e Os Goonies.
Falando assim, pode parecer que a trama de Laços é batida e clichê, mas é justamente o contrário. Embora os autores e irmãos Vitor Cafaggi e Lu Cafaggi tenham, de fato, seguido passo-a-passo a “cartilha dos anos 80”, a história é contada de um jeito tão empolgante, vívido e, de certa forma, simplório, que você vai se pegar ansiando para saber o que vai acontecer em seguida, mesmo que já tenha perdido as contas de quantas vezes já tenha assistido os filmes da Sessão da Tarde.
E não é só a trama que é fortemente inspirada pelos anos 80. Todos os elementos que aparecem na história, do cenário às roupas dos personagens e até mesmo o jeito de falar, é fielmente reproduzido e organizado como se eles vivessem na penúltima década do século XX, o que transporta muitos de nós à época em que a vida era mais simples: a infância.
A dupla ainda aproveitou a liberdade criativa para encher sua história de referências a várias obras da cultura pop dos anos 80. Algumas são bem óbvias, como a do filme Selvagens da Noite, mas outras requerem um pouco mais de conhecimento. Há até mesmo referências a alguns eventos marcantes da própria turma, como a animação As Aventuras da Turma da Mônica, de 1982. Se você é um daqueles nerds que adoram caçar referências, com certeza vai se divertir muito procurando todas elas nesta história.
SWEET EMOTIONS
Embora a nostalgia seja algo constante, o que deixa esta aventura única é o sentimentalismo que ela carrega.
Por exemplo, quando o Cebolinha descobre que seu melhor amigo desapareceu, ele fica completamente arrasado. É impossível não se comover ao ver ele deitado na cama pensando no Floquinho, principalmente se você algum dia teve um cachorro que desapareceu. Eu mesmo já estive nesta situação e, de todos os perrengues pelos quais já passei, garanto que nenhum deles abalou tanto a mim e aos outros membros da minha casa quanto quando o nosso cachorro desapareceu.
Mas não é só de melancolia que Laços é feito. A amizade das crianças é algo tão grande que chega a ser palpável. Fica claro que, apesar de todas as suas diferenças, de todas as provocações, planos infalíveis e coelhadas, há algo muito maior que une estes quatro amigos, e provavelmente vai uni-los até o fim de suas vidas. Algo verdadeiro e genuíno, que é difícil explicar em palavras, mas que você com certeza sente por algumas pessoas na sua vida.
A história também possui um tom de magia incrível. E isto não é causado por algum portal místico para a terra dos dragões e unicórnios, mas é porque ela vista através da coisa mais mágica que existe: a inocência e a imaginação de uma criança. Não importa quão mundana seja uma ação ou quão bizarro seja o que eles encontram em sua jornada, tudo parece ter um significado completamente diferente, puro e novo. É como se toda a malícia e stress do mundo simplesmente não existissem. E quando você é um cara que praticamente vive em um mundo cheio de morte e ambição, ler algo simples e leve, lembrando a forma de como eu via o mundo quando era criança, é muito, muito emocionante.
DE ENCHER OS OLHOS
Outra coisa que merece ser destacada em Laços é a sua arte completamente espetacular.
Já pela capa do livro, podemos ver o cuidado que os irmãos Cafaggi tiveram ao fazer a releitura dos personagens, que dá um tom bastante real a eles, mas mantendo muitas de suas características mais cômicas.
Acho que o personagem de que eu mais gostei foi a Mônica: nos gibis, todo mundo chama ela de baixinha e gorducha, mas, sejamos sinceros, ela tem exatamente a mesma altura e peso dos demais. Em sua repaginação para a graphic novel, ela ganhou uns bons quilinhos a mais, incluindo uma barriguinha redonda e pernas fortinhas. Já o Cebolinha continua possuindo apenas cinco fios de cabelos em sua cabeça, mas ao invés de serem espetos duros, eles caem em seu rosto e esvoaçam sedosamente conforme o vento bate. Pois é, quem diria que o Cebolinha é “leadbanger”?
Outra coisa bastante legal é que, embora a trama se foque apenas nos quatro principais, os autores deram um jeito sensacional de mostrar vários outros personagens secundários, embora apenas brevemente. Entre eles, podemos ver o Xaveco, o Titi, a Aninha, os pais do Cebolinha e mais alguns outros. Só é uma pena que não tenhamos visto o Franjinha e o Bidu.
Os cenários são extremamente detalhados e as cores são muito vivas, mesmo nas cenas que se passam à noite. A textura também é magnífica e os cenários possuem esta interessante mistura de real, que deixou os personagens tão marcantes
Vale dizer que, ao contrário do que acontece com a maioria dos quadrinhos, que são produzidos por uma equipe, os irmãos Cafaggi fizeram tudo por eles mesmos, do roteiro à arte final. E pelo nível de detalhamento da obra, é perceptível que eles puseram o melhor de si em cada detalhe, por menor que seja.
No fim, Laços não é somente uma história sobre uma turma em busca de um cãozinho perdido. É sobre os vários laços das nossas vidas: os laços que ligam um humano ao seu animal de estimação. Os laços que unem amigos, que permitem que eles se ajudem sem nem questionar. Os laços que ligam um espectador a uma obra de entretenimento da qual ele vai se lembrar para o resto da vida. Os laços que ligam os irmãos, que trabalharam duro nesta obra. Aqueles que ligam os personagens de Maurício de Sousa ao imaginário de milhares de brasileiros. Como você pode ver, delfonauta, esta é uma história que, sem dúvida, merece estar enlaçada ao selo delfiano supremo.
CURIOSIDADES:
– Muita gente não sabe, mas os primeiros personagens criados por Maurício de Sousa foram o Bidu e o Franjinha, ainda nas tirinhas de jornal. O Cebolinha começou como um mero coadjuvante das histórias deles, mas se tornou tão popular que ganhou suas próprias tirinhas. Algum tempo depois, uma menina dentuça surgiu como coadjuvante em suas histórias e a partir daí, acho que você já sabe o que aconteceu.
– Quando eu era criança, achava que o Cebolinha invejava a Mônica por ela ser a “dona da lua”. Só depois de bem mais velho eu fui perceber que ela na verdade é a “dona da rua”.
– O Floquinho é semelhante à raça Lhasa apso. Mas de acordo com os extras do livro, o Maurício de Sousa só foi saber da existência desta raça muitos anos depois da criação do personagem, através da carta de uma fã. Coincidência ou destino, eu lembro perfeitamente de ter lido a edição em que esta carta foi publicada, há mais de 10 anos.