Edgar Wright é um dos diretores mais nerds de todos os tempos. Fato. Assim como é fato que sua filmografia cinematográfica ainda é bem pequena, consistindo em apenas seis títulos, incluindo o novo Em Ritmo de Fuga, que chega esta semana aos nossos cinemas.

E destes, metade forma uma trilogia, a chamada Trilogia Cornetto, ou ainda Trilogia do Sangue e Sorvete ou mesmo Trilogia dos Três Sabores de Cornetto, como também costuma ser chamada. Você sabe, o conjunto de filmes formado por Todo Mundo Quase Morto (Shaun of the Dead, 2004), Chumbo Grosso (Hot Fuzz, 2007) e Heróis de Ressaca (The World’s End, 2013). Todos escritos pro Wright e Simon Pegg e estrelados por Pegg e Nick Frost.

Nesta matéria, relembrarei tais filmes, bem como falarei sobre as características de cada um e sua unidade temática, o que os torna, de fato, parte de um grupo coeso. Logo, há spoilers à frente para quem não viu os filmes. Neste caso, o que você está fazendo aqui? Vá já assisti-los, eles são maior legais! Depois você volta aqui. E agora, passemos à pergunta que não quer calar: o que diabos um cornetto tem a ver com tudo isso?

HUM, CORNETTO…

Tudo começou em Todo Mundo Quase Morto, onde o personagem do Simon Pegg vai comprar  um cornetto para o do Nick Frost como uma cura para a ressaca. Wright criou essa piada baseada em sua própria experiência pessoal, ainda que eu não tenha encontrado provas para a eficácia desse sorvete em questão para cortar os efeitos da ressaca.

Fato é que ele novamente incluiu uma cena com a guloseima em Chumbo Grosso, apenas como uma brincadeirinha e uma referência para com o filme anterior. Mas quando um jornalista apontou a presença do delicioso sorvete de casquinha nos dois longas, Wright brincou que eles representavam uma trilogia do naipe da também famosa trilogia das cores de Krzysztof Kiéslowski (A Liberdade é Azul, A Igualdade é Branca e A Fraternidade é Vermelha). E sim, este é o nome do caboclo e não um amontoado de letras aleatórias que eu digitei enquanto sofria um derrame em cima do teclado.

Edgar Wright, Simon Pegg, Nick Frost
Da esq. para a dir.: Edgar Wright, Nick Frost e Simon Pegg, o trio por trás da trilogia.

Contudo, Edgar acabou levando a brincadeira a sério e incluiu uma embalagem de cornetto no filme que fecharia a série, Heróis de Ressaca. E assim, em cada filme aparece um sorvete de um sabor diferente, o que acaba tendo também sua própria explicação.

Em Todo Mundo Quase Morto o sorvete é o de sabor morango, que representa o sangue e o gore do longa. Chumbo Grosso mostra o sorvete original, o azul, representando o elemento policial. E por fim, a embalagem mostrada em Heróis de Ressaca é a do verde, de chocolate com menta, representando homenzinhos verdes (o filme retrata uma invasão alienígena) e a ficção científica. Legal, né?

OS ZUMBIS SÃO OS MORTOS OU OS VIVOS?

Todo Mundo Quase Morto nasceu como uma grande homenagem/sátira aos filmes de zumbi de George A. Romero, levando para o lado da comédia o apocalipse dos mortos-vivos, retratado sob a ótica de Shaun (Simon Pegg), sujeito da classe trabalhadora inglesa tão desligado e entorpecido por sua vida modorrenta, que nem sequer repara na infecção se alastrando à sua volta nos primeiros dias.

Quando finalmente se dá conta da situação, a melhor ideia em que consegue pensar é pegar seu melhor amigo mais sem noção que ele (Nick Frost), sua namorada e sua mãe e se abrigar no pub onde passa quase todas as noites de sua rotina sem graça.

Shaun of the Dead
A turma de Todo Mundo Quase Morto a caminho do pub.

O filme consegue ser em partes iguais hilariante e crítico da sociedade completamente amortecida com tudo que acontece ao seu redor, sendo assim muito bem sucedido não só em tirar um sarro da saga dos mortos de George Romero, mas sendo ele próprio uma crítica tão boa e contundente que não faria feio na filmografia do próprio George, o que faz dele um absoluto sucesso tanto como comédia satírica quanto como um filme de zumbis standalone, que se sustenta com as próprias pernas.

E ele também não se furta a ser bem sangrento e em diversas partes a deixar seu foco até mais pesado, o que faz com que algumas pessoas reclamem dessa súbita mudança de tom, passando da comédia mais aberta para algo mais sério. Isso não me incomoda e para mim ele é sempre forte candidato a figurar em qualquer lista de melhores do gênero Z.

Aliás, você pode aproveitar e clicar no link aqui para ler uma resenha sobre ele quando de seu lançamento em DVD por aqui e que também faz parte dos primórdios do DELFOS. Direto do Túnel do Tempo!

VOCÊ NUNCA DESCARREGOU SUA ARMA ATIRANDO PRA CIMA?

Hot Fuzz
Os policiais de Chumbo Grosso prontos para meter bala!

Se o filme anterior se propunha a brincar de maneira carinhosa com as convenções do gênero dos zumbis, Chumbo Grosso, a segunda parte da trilogia, mirava os filmes de ação policiais muito populares nos anos 1980 e 90, chegando até a citar diretamente alguns deles, como Caçadores de Emoção.

Na trama, um policial superdedicado e tremendão de Londres (Pegg), tipo o perfeito herói de ação, é transferido para um minúsculo vilarejo no campo onde absolutamente nada acontece. Seu novo parceiro (Frost), óbvio, é um figura fascinado por filmes de ação estadunidenses e constantemente pergunta se as coisas que vê em cena o policial da cidade grande já fez na vida real.

Nick Frost, Simon Pegg e Cornetto
O famigerado cornetto em cena.

Quando uma série de assassinatos misteriosos começam a acontecer na pacata cidade, com o envolvimento de uma espécie de sociedade secreta, as coisas vão ficando cada vez mais parecidas com a ação dos filmes do gênero. E é óbvio que todos os clichês dos quais eles abertamente tiram sarro vão se repetir exatamente da mesma forma em sua própria história, antes que ela chegue ao fim.

Essa é a graça do filme, zoar sem dó dessas convenções, para pouco depois acabar repetindo-as, assumindo assim que se elas são tão usadas, é porque são divertidas e marcantes.

Admito que eu não gosto tanto deste quanto de Todo Mundo Quase Morto, visto que não sou tão chegado no gênero policial quanto no cinema Z. Mas depois de assistir por mais algumas vezes, ele cresceu no meu conceito. Talvez ele tivesse a carga de suceder justamente um filme excelente seguindo uma fórmula parecida, o que é caminho aberto para um peso a mais e para comparações diretas. Mas visto sem se focar nessa ótica, pode funcionar melhor já de primeira.

UMA NOITE ÉPICA DE CERVEJA E INVASORES DE OUTRO PLANETA

Heróis de Ressaca fecha a trilogia com um nome bem idiota em português para The World’s End, que no original significa não só o literal fim do mundo que a invasão alienígena do filme pode acarretar, como é também o nome do último pub na jornada dos protagonistas, e essa sim é a parte mais importante.

O longa talvez tenha a história mais humana das três, ainda que ele seja também o mais exagerado quando o elemento fantástico entra em ação. Simon Pegg é o sujeito que reúne seu grupo de amigos da adolescência (do qual Nick Frost faz parte) e os leva de volta à cidade natal deles para completar uma tarefa que eles não conseguiram fazer na juventude: concluir uma via sacra pelos 12 bares da cidade, tomando pelo menos uma breja em cada um deles.

O problema é que eles acabam descobrindo que o lugar é palco de uma bizarra invasão alienígena, e muitos moradores locais foram substituídos por cópias perfeitas, porém de comportamento estranho, e eles querem que a patota faça parte dessa nova organização, por bem ou por mal.

Simon Pegg e Nick Frost
A dupla de Heróis de Ressaca curtindo a vida adoidado.

Esta produção brinca com o gênero dos filmes de ficção científica sobre invasões alienígenas. Mais especificamente aquele tipo que acontece na maciota, e quando você vê, já está cercado por inimigos que tomaram o lugar das pessoas de verdade, gerando um grande clima de paranoia. Tipo Invasores de Corpos.

Contudo, este é o que acho o mais problemático, pois seu primeiro ato é tão bom que considero totalmente desnecessário esse elemento sobrenatural que entra depois. Se fosse centrado só na trama humana sobre um grupo de amigos que cresceu e se ajustou bem à vida adulta comum, enquanto aquele que era “o cara” na adolescência teve seu pico justamente ali, se recusando a crescer e abandonar as boas memórias (o que faz com que ele queira reviver os dias de glória depois de velho), seria excelente.

Eu acho que a história perde muito do interesse quando entra a trama da invasão, embora ele continue sim bastante engraçado e até num tom muito mais épico que os anteriores, provavelmente para tirar um sarro com o fato de que o final de uma trilogia tem sempre de tentar ser apoteótico. Seja como for, o filme é legal, mas eu o acho desequilibrado por conta da disparidade da qualidade da história entre os amigos e a trama da invasão.

DÁ-ME UM CORNETTO!

Infelizmente, nenhum dos três foi lançado em nossos cinemas. Todos eles foram direto para o mercado de home video, e vira e mexe todos passam com uma boa frequência nos mais variados canais a cabo. Além, claro, de serem encontrados facilmente numa rápida ida à Argentina.

Para quem já viu, vale a reassistida, ganhando pontos bônus se for numa maratona com os três um depois do outro. Para quem não viu, fica a recomendação. Não são trabalhos perfeitos, longe disso, mas possuem o fino do humor inglês e muitas brincadeiras com os gêneros abordados, tudo com o maior carinho, numa grande brincadeira estilística para agradar qualquer fã dos referidos estilos de filmes. E não é disso que gostamos? Eu acredito que sim!