Olá, meu nome é Thiago Cardim – mas, ao contrário do Troy McClure, você não deve me conhecer de filme algum. Na verdade, talvez você me reconheça é sob a alcunha de El Cid, com a qual fui criador do agora finado portal de entretenimento nerd A Arca e por meio da qual escrevo as minhas sobre música, cinema e afins em sites variados como o Judão, o Whiplash, o webBANGER e até na revista Sci Fi News. Como você deve ter percebido, agora ando soltando as letras aqui no DELFOS. E meus recentes devaneios sobre a minha grande paixão no mundo da cultura Pop, os quadrinhos, acabaram me premiando com este novo espaço entre as Colunas Delfianas. Meus agradecimentos ao camarada Corrales pela confiança. E quanto a você, amigo delfonauta, acostume-se com isso. Mensalmente (pelo menos a princípio), estarei por aqui para refletir e levantar discussões acerca de tudo que tem a ver com o fantástico mundo dos gibis. Seja bem-vindo aos Balões Delfianos.
Para inaugurar esta nova coluna, cabe ser respeitoso com a minha própria história e voltar um pouco no tempo. O ano era 1995 – talvez 1994, caso minha memória quase balzaquiana não esteja me traindo – e eu inaugurava, veja só, uma coluna sobre quadrinhos no lendário site de humor PutaQuePariu.Com, aquele mesmo que, se não tivesse surgido antes do estouro da bolha internética no Brasil, teria nos deixado milionários. Enfim, choramingos à parte, me lembro nitidamente que meus primeiros textos causaram uma verdadeira saraivada de e-mails revoltados. Tudo porque eles eram duas verdadeiras odes ao tamanho do meu ódio pelos personagens Super-Homem (que continuo me recusando a chamar de Superman) e Capitão América.
Os motivos eram similares: Clark Kent e Steve Rogers representavam, em suas respectivas editoras, aquele irritante modelo de politicamente correto, os heróis bonzinhos e adorados pelas criancinhas, os paladinos sem defeitos que funcionavam como faróis da moral e dos bons costumes. Afinal, este que vos escreve sempre gostou muito mais de personagens reais, tridimensionais, próximos de nosso cotidiano, por mais que eles tivessem poderes incríveis para escalar as paredes. Por isso tamanha predileção pelo modelo “perdedor-nato” de Peter Parker ou pela genial passagem de Grant Morrison pelo Homem-Animal, destilando inteligência ao invadir o cotidiano simplório, tedioso e sem graça da vida do aspirante a super-herói Buddy Baker.
Os anos se passaram. E pelo menos em um dos casos, eu mordi a língua. Ainda bem. Depois dos atentados de 11 de setembro de 2001, a Marvel Comics abriu os olhos para o quão velho e ultrapassado estava o seu Sentinela da Liberdade. Egresso da Segunda Guerra Mundial, ele já cheirava a mofo na época da Guerra do Vietnã, representando pouco ou quase nada da realidade daquele país cuja bandeira trajava com tanto orgulho. Quando Osama Bin Laden derrubou as duas torres do World Trade Center, o mundo inteiro mudou.
Uma cicatriz permaneceu aberta em plena Nova Iorque. A cultura pop deu uma guinada. E o ex-soldado que permaneceu tanto tempo congelado em um enorme cubo de gelo precisava, enfim, amadurecer. Nas mãos habilidosas do roteirista John Ney Rieber, Rogers tornou-se, enfim, um soldado – na acepção mais áspera da palavra. Em seu título próprio ou mesmo à frente dos Vingadores, Rogers tornou-se um homem endurecido, um tanto amargurado, de postura militarizada. Continuava sendo aquele sujeito amigável e bondoso, mas pequenos detalhes em sua postura deixaram clara a dificuldade em manter-se resistente como uma estátua por baixo da máscara e por trás do escudo. Quando Ed Brubaker assumiu o comando da publicação, o Bandeiroso passou a ser perseguido por seu próprio passado, lutando contra um lado sombrio de si mesmo. E o retorno de seu antigo sidekick, que poderia soar como mais um daqueles terríveis momentos “ah, não, mais um herói que volta do mundo dos mortos?”, fez de Bucky Barnes o Soldado Invernal, um coadjuvante com ares de protagonista.
Na seqüência, vem todo o estrago da maxi-saga Guerra Civil, e o Capitão assume um inesperado lado rebelde, extrapolando ainda mais a sua já visível insatisfação em trabalhar como operativo oficial do governo. Ou seja: o maior símbolo vivo do patriotismo estadunidense estava claramente contra a Casa Branca. E ao final da luta contra os heróis pró-registro oficial, nosso herói desaba e percebe que foi longe demais, lutando mais por si mesmo do que pelas pessoas que jurou defender. O mesmo Mark Millar que escreveu “Guerra Civil”, por sinal, deu uma mexida radical no mito do Capitão ao escrever a sua versão na cronologia alternativa Ultimate (no Brasil, “Marvel Millenium”). Como líder da equipe Os Supremos, a versão ultimate para os Vingadores, Rogers foi trazido das águas do passado como um verdadeiro soldado da década de 50 deslocado no século XXI: violento, mal-educado, um tanto machista e preconceituoso, sem frescuras e com um entendimento maniqueísta e dicotômico do mundo. O resultado é algo próximo do “perfeito”.
Todas as benéficas transformações às quais Steve Rogers foi submetido nos últimos anos me levam, é claro, ao Azulão da DC Comics – que, ao contrário do colega da Casa das Idéias, permanece desconfortavelmente igual àquele sujeitinho de topete criado por Jerry Siegel e Joe Shuster em 1938. Relendo o meu texto para a finada PQP a respeito do Capitão América, percebi que, ponto a ponto, minha opinião sobre ele tornou-se radicalmente diferente. Mas… que diabos… minha ancestral coluna sobre o Super-Escoteiro – republicada anos depois n’A Arca – ainda reflete o que penso atualmente sobre o mais famoso morador de Metrópolis. Depois de mais de dez anos! Não é de se estranhar que nenhum escritor de quadrinhos que passou pelos supertítulos na última década tem conseguido mudar em nada a minha opinião?
Vejamos: o Super-Homem é, essencialmente, um alienígena. Um ET. Pode ser fortão, bonitão, de olhos azuis, um verdadeiro Adonis. Mas ainda é um ser extraterreno. Que, por um acaso do destino, se parece fisicamente com a população do planeta para o qual foi enviado. E cujo único efeito colateral para a sua fisiologia é uma coleção de super-poderes que o transforma simplesmente na criatura mais poderosa desta pequenina bolota azul.
Os xiitas podem defender: “pô, mas foi justamente por isso que o Jor-El escolheu o nosso planeta para enviar o seu pequeno Kal”. Mas não é acertar DEMAIS a mão? Seria pedir muito que sua estrutura alienígena manifestasse, depois de alguns anos, algum efeito, sei lá, mais alienígena do que capacidade de vôo, super-força, super-resistência, visão de calor, super-sopro e demais super-trecos e super-cacarecos. Por que não fazer o simpático Clark entrar em uma espécie de período de acasalamento no qual ele fica roxo e nasce um novo bráulio no meio da sua testa? Sim, eu sei que o exemplo é ridículo. Mas a idéia é essa. No fim das contas, o Super-Homem é um ser humano. Mas com habilidades que o colocam muito acima de todos nós. Ele tem todas as coisas boas de ser um alien. Mas nenhuma das coisas ruins. Qual o nome disso? Preguiça de escritor!
Em Kill Bill Vol.2, o vilão que dá nome ao filme, interpretado por David Carradine e refletindo um monólogo nerd do diretor Quentin Tarantino, solta a seguinte pérola: “Existe o super-herói e existe o alter ego. Batman é na verdade Bruce Wayne, Homem-Aranha é na verdade Peter Parker. Quando este personagem acorda de manhã, ele é Peter Parker. Ele tem que vestir o uniforme para se tornar o Homem-Aranha. Mas neste sentido, o Super-Homem é único. Super-Homem não se torna o Super-Homem, ele nasceu Super-Homem. Quando ele acorda de manhã, ele é o Super-Homem. Seu alter ego é Clark Kent. Seu uniforme com o grande S era o cobertor no qual estava enrolado quando era um bebê encontrado pelos Kents. Eram suas roupas. Quando Kent veste os óculos, o terno e a gravata, este é o uniforme. É o uniforme que ele veste para se misturar com o resto de nós. Clark Kent é como o Super-Homem nos vê. E quais são as características de Clark Kent? Ele é fraco, inseguro de si mesmo. Ele é um covarde. Clark Kent é uma crítica do Super-Homem a respeito de toda a raça humana”. Hum… E não é que faz um baita sentido? Alguém convide o Tarantino para escrever as histórias do Super-Homem, por favor.
O que me tira do sério quando viajo pelas páginas do Super é justamente a incapacidade de seus roteiristas em dar mais camadas de profundidade à personalidade do herói, seja como Clark Kent, seja como Super-Homem. Ele é apenas aquele garotão do interior criado por Jonathan e Martha Kent, de uma honestidade incorruptível, confiável, honesto, bondoso, caridoso, calmo, pacífico. Ou seja: perfeito. E cá entre nós, gente perfeita me irrita. Deveras. Talvez criar justamente esta clara divisão entre Kal-El e Kent à qual Bill se refere já fosse uma saída mais criativa – tornando-o cada vez mais frágil enquanto está de óculos e terno, e cada vez mais arrogante (ainda que ligeiramente) quando vestisse a roupitcha azul e vermelha. Toda vez que se encontrasse com o Batman, ele passaria a enxergá-lo como alguém menor do que ele – respeitável por estar acima dos seres humanos em todos os aspectos físicos e intelectuais, mas ainda assim um humano. Apenas e tão somente um humano.
Mark Waid deu uma boa pincelada no que poderia ser uma abordagem mais interessante para o homem da cueca por cima das calças em O Reino do Amanhã (Kingdom Come). Mostrando uma versão futura do Super, ele construiu um herói ainda mais poderoso do que sua versão atual, sem a fraqueza da kryptonita, mas muito mais cheio de nuances. Com a morte de sua amada Lois Lane, Kent percebe que, por mais forte que seja, não pode estar em todos os lugares ao mesmo tempo e por isso acaba se afastando da humanidade, justamente por perceber que não é um de nós, por ter enfim a consciência de que está sozinho em um planeta povoado por bilhões. Continua bom, honesto e incorruptível até os ossos, mas carrega uma pitada de amargura que o tira do sério em plena conferência das Nações Unidas, mostrando uma faceta assustadora e perigosa de alguém que nunca pode ser derrotado. “E se algum dia ele sair do controle?”, pensaram aqueles homens, que nada tinham de “supers”, ao se deparar com aquela personificação do poder absoluto. Continua sendo o Super-Homem. Mas agora ele conheceu o ódio. Depois de um evento como Crise Infinita, na cronologia atual, acho que era hora de mostrar a lenta transformação do kryptoniano atual neste supersujeito de cabelos grisalhos e coração machucado.
É preciso uma ressalva: a última coisa minimamente relevante a respeito do Super que li nos últimos anos foi O Legado das Estrelas, mini na qual o inteligente Waid (olha ele de novo!) recria a origem do último kryptoniano para uma geração mais jovem, talvez até para aquele moleque que passou a se interessar pelo herói depois de ver suas desventuras adolescentes em Smallville. Em alguns trechos da trama – como na lição devidamente aplicada a um sujeito de arma em punho – é possível enxergar um Clark Kent mais vivo, mais humano, menos bom moço, menos Mickey Mouse e mais Pernalonga. Mas longe, muito longe de ser um vigilante urbano sanguinário como o Wolverine ou o Justiceiro – e também milhas distante de seu velho e sombrio desafeto de Gotham City. Ou seja: sim, bando de escritores preguiçosos, é possível injetar um pouco mais de colorido no sujeito sem desviá-lo totalmente de sua forma original. Ninguém está falando para transformá-lo em um combatente do crime que caminha na linha fina que o separa dos próprios vilões que combate. Mas um pouquinho, só um pouquinho de ousadia, o tiraria do posto de invencível e intocável semideus da perfeição e o traria mais para perto dos pobres mortais que lêem suas histórias todos os meses.
É engraçado ainda perceber que, em outras mídias, o Super cai nas mãos de roteiristas sem os vícios de décadas e décadas de cronologia nos quadrinhos e acaba funcionando bem. Por mais que a abordagem seja um tantinho mais infantil, o Super-Homem da recente série animada de Paul Dini e Bruce Timm tem um tempero mais apimentado do que aquela folha de papel rasteira da versão dos quadrinhos. O que dizer, então, daquele Super-Homem que comanda a equipe de meta-humanos em Liga da Justiça Sem Limites? Mesmo nos dois primeiros filmes, que têm aquela típica inocência “bem x mal” dos anos 80, o camarada de capa vivido por Christopher Reeve vive um momento de dúvida no qual renuncia às suas habilidades kryptonianas em troca do amor de uma mulher – aquela mesma mulher que o fez desobedecer as regras do tempo e do espaço para girar o planeta ao contrário e salvá-la. Tudo isso sem pensar, colocando um planeta inteiro em risco.
“Ah, tá. Faz melhor, então”, poderiam dizer aqueles críticos afoitos aos argumentos fáceis. E eu respondo: “Me paga o salário que os funcionários da DC recebem que eu faço sim, numa boa. Desde que o Dan Didio me dê a devida liberdade editorial, claro”.