O Rush é a minha banda favorita desde que eu tinha uns 12 anos. Mas confesso que não fiquei muito satisfeito com os dois últimos lançamentos de estúdio do trio canadense. Não que sejam discos ruins. Comparando com o que tem acontecido na indústria musical ultimamente, o Rush até que foi bem sucedido na missão que eles mesmos se impuseram de modernizar o seu som, sem perder de vista as quatro décadas de carreira.
Mas faltava alguma coisa nos dois últimos álbuns e que parece ter reaparecido neste novo trabalho. Parece que Geddy Lee, Alex Lifeson e Neil Peart reencontraram o prazer de compor e tocar músicas complexas agradáveis. Resumidadente, é isto o que Clockwork Angels traz: uma coleção de temas complexos executados com maestria e prazer pelo último grande power trio do rock.
A capa traz um relógio em que os números são substituídos por símbolos alquímicos, cada um relacionado a uma das canções. Os ponteiros marcam 9:12 (ou 21:12, para fazer referência ao clássico de 1976 e cuja temática era igualmente futurista). A arte gráfica faz inúmeras referências ao universo steampunk, ou ao “futuro, como deveria ter sido”, para citar Neil Peart.
Acredito que boa parte dos delfonautas está familiarizado com este universo, que está presente em games, quadrinhos e no cinema.
O conceito do álbum explora a ideia de um universo com tecnologia do século XIX e a imaginação do futuro. Ele serve para unir as músicas, mas sem engessá-las como ocorre em um trabalho conceitual habitual. Há uma história, ambientada nesse universo steampunk, no qual predomina uma espécie de filosofia otimista que encobre a realidade. Para quem gosta de acompanhar as referências literárias de Peart, há muito do Cândido, escrito pelo filósofo francês Voltaire (1694-1778) nas histórias de Clockwork Angels.
Mas o que realmente importa é a música. E o trio canadense está em excelente forma para fazer o que sempre soube fazer. O disco abre com as já conhecidas Caravan e BU2B (Brought Up to Believe), que já vinham fazendo parte da tour iniciada em 2010 e que passou pelo Brasil no segundo semestre daquele mesmo ano.
Embora todos os elementos que caracterizaram a banda por 40 anos estejam lá, alguns detalhes são bem marcantes. De início, chama atenção o baixo funkeado de Geddy Lee e a opção por linhas vocais mais limpas, sem muitas vozes dobradas e coros, como vinha ocorrendo desde Vapor Trails (2002).
Alex Lifeson traz riffs inspirados e solos como há muito não eram ouvidos. Algumas faixas, como Headlong Flight – cheia de reviravoltas instrumentais e com um show do sempre impressionante Neil Peart – remetem aos anos 70, quando o trio canadense era conhecido pelos malabarismos instrumentais e pela total falta de limites na complexidade da música.
Outros destaques ficam para a viagem sonora de Seven Cities of Gold e para a performance inusitada em The Wreckers, em que Geddy e Alex invertem seus papéis tradicionais, com o primeiro tocando guitarra e o outro assumindo o baixo. O disco fecha com The Garden, uma balada estranha para os padrões da banda, mas um dos arranjos instrumentais mais bonitos que o trio já produziu.
Não vou me arriscar muito a falar sobre o conceito do disco porque ainda não tive como ler o livro que será lançado e que contará, detalhadamente, a história de Clockwork Angels. Posso dizer, contudo, que Neil Peart, não contente em ser um dos melhores do mundo no seu instrumento, ainda é capaz de escrever pequenas obras primas, como a incrivelmente sarcástica BU2B. Há espaço para canções aparentemente ingênuas, como The Anarchist e Wish Them Well. Mas o disco tem tonalidades líricas sombrias, como, todas as histórias cujo núcleo é uma distopia.
Clockwork Angels não vai fazer feio junto com os outros 19 álbuns de estúdio lançados pela banda desde 1974. Porém, dificilmente vai conquistar novos fãs. É mais ou menos como acontece naquela cena já conhecida deste filme: o cara tenta explicar para a namorada o que é o Rush e ela acha tudo muito normal. Este novo disco nada mais é que pregação para convertidos, mas não deixa de ser excelente só por este motivo.