Amanhã, dia seis de setembro, será uma data muito especial para o Heavy Metal brasileiro. Dez anos atrás, neste mesmo dia, foi lançado aquele que seria o maior álbum de Heavy Metal brasileiro do novo milênio, o arrasa-quarteirão Temple of Shadows. O Angra, três anos após o surgimento da “formação da Nova Era”, lançava o seu quinto álbum de estúdio, e certamente não sabia o que estava por vir.
O fato é que, por trás de todos os prêmios e críticas absolutamente positivas do álbum, ele possui uma história que não é lá tão fácil de ser contada e que possui muitas nuances. A história conta não apenas com um contexto histórico bastante sólido, mas também com uma série de reflexões, trazendo questionamentos existenciais e até mesmo religiosos bastante profundos.
Foi pensando em toda a imersão que o álbum proporciona que este texto surgiu. O objetivo aqui, diferente do que aconteceu em textos anteriores da série, não é apenas contextualizar e mostrar curiosidades, mas trazer a história do álbum em detalhes, e por isso é importante destacar algo desde já: depois de muito pesquisar para fazer esta matéria, cheguei à conclusão de que as músicas do disco não estão em ordem cronológica. Por isso, eu refiz a ordem das músicas, de modo que a história não fique bagunçada e possa ser contada sem maiores problemas.
A HISTÓRIA DO TEMPLO DAS SOMBRAS
A história do álbum começa no ano de 1095. O mundo estava sofrendo mudanças de grandes proporções, e Jerusalém se encontrava nas mãos dos muçulmanos. Jerusalém é conhecida até hoje como a “Terra Santa” por pelo menos três religiões diferentes – os judeus, os cristãos e os muçulmanos – e por isso ela era e ainda é muito cobiçada.
A cidade havia sido tomada pelos muçulmanos no ano de 638, e o domínio islâmico era massacrante para os peregrinos cristãos que iam até a cidade. Os abusos cometidos pelos muçulmanos eram constantes, e o maior deles foi a destruição da Igreja do Santo Sepulcro em 1009, ordenada por Al-Hakim bi-Amr Allah. Obviamente, a resposta cristã seria à altura dos abusos sofridos.
Em 1095, o Papa Urbano II proclamou a Primeira Cruzada. Esta peregrinação armada para a Terra Santa tinha como objetivos não só a tomada de Jerusalém, mas também o apoio aos cristãos ortodoxos do leste europeu. Além disso, havia também interesses econômicos envolvidos, como a conquista de novas rotas comerciais com o Oriente.
A Primeira Cruzada pode ser dividida em duas invasões distintas: a Cruzada Popular, em que inicialmente o povo se mobilizou, e a Cruzada dos Nobres, que veio depois e foi a principal responsável pelo sucesso da empreitada. A Cruzada Popular contou com quase 30.000 plebeus, entre homens, velhos, mulheres e crianças, que por não terem treinamento militar acabaram sendo massacrados.
Existe um motivo para a primeira invasão ter sido popular. Foi no Concílio de Clermont que o Papa Urbano II decidiu conceder a indulgência aos que fossem ao Oriente defender a peregrinação. Trocando em miúdos, o Papa garantiu a salvação a todos aqueles que morressem em combate contra os infiéis. E ao expor publicamente sua decisão, Urbano II foi aclamado pela multidão, aos gritos de “Deus quer assim!” ou, em latim…
DEUS LE VOLT!
É em meio a este mundo em transformações que o cruzado conhecido como Caçador da Sombra encontra um rabino judeu. O rabino, um oráculo velho e cego, diz ao viajante que “ele foi escolhido por Deus para trazer luz aos olhos de quem não pode ver”. O oráculo entrega um livro em branco para o cruzado, gritando palavras que ressoariam em seus ouvidos por anos: “Queime os templos! Espalhe seu fogo! (Spread Your Fire). Este encontro, porém, se dá bem antes da invasão à Terra Santa, provavelmente com alguns anos ou meses de diferença.
As palavras do oráculo são fortes: olhe ao redor, eu não sou louco/ Satã é um filho de nosso Deus. Estes dois versos seriam o bastante para resumir o grande questionamento que o cruzado enfrentará ao longo de toda a história – como pode surgir tanta destruição a partir de palavras de amor, “matando e torturando homens para impor ideais de fraternidade”?
O próximo momento da história também se dá bem antes da invasão a Jerusalém. O Caçador da Sombra (The Shadow Hunter) vai a uma taverna-bordel e encontra uma prostituta cigana. Ela vê nos olhos dele que ele é o escolhido e, ao invés de lhe dar prazer, lê cartas para o cruzado. Ela lhe diz: “As palavras do velho não terão sentido algum até que você encontre a Estrela da Manhã. Sua missão é importante, mas não é no Exército”. A prostituta confunde ainda mais a cabeça do cruzado, dizendo que o amor o desviaria de seu caminho.
No próximo ato, há um salto temporal que nos leva diretamente para o fim do primeiro confronto da Cruzada Popular, contando o que aconteceu com o Caçador da Sombra após o ataque. Em 18 de setembro de 1096, os soldados cristãos tomaram a Fortaleza de Xerigordon, porém foram surpreendidos por um exército de 15 mil homens mandados pelo soberano islâmico Kilij Arslan, que conseguiu render o exército do Papa. O Caçador da Sombra, que havia se ferido em combate ainda na tomada da Fortaleza, foge e consegue escapar do exército enviado por Kilij. Contudo, devido à perda de sangue, ele desmaia antes de conseguir voltar.
A música The Shadow Hunter termina com o cruzado sonhando com pergaminhos perdidos no Templo de Salomão e em cavernas perdidas no Mar Morto, e aqui a história abre uma licença poética. Não havia como o cruzado sonhar com estes pergaminhos, pois eles só poderiam ter sido descobertos em 1123, com o surgimento da Ordem Templária, que aconteceria apenas 27 anos depois. Assim, eu diria que neste momento o Caçador teve uma visão do futuro, uma vez que, quase no fim da história, ele se torna de fato um templário.
UMA NOVA VIDA
O cruzado acorda e se dá conta de que está sendo carregado por dois muçulmanos, em uma espécie de rede. Ele está fraco e amedrontado, e não consegue esboçar reação. O Caçador então percebe que está amanhecendo, e que a Estrela da Manhã (Morning Star) está brilhando no céu do novo dia. E aqui a primeira parte da profecia da cigana é cumprida.
Mais tarde ele descobre que os dois muçulmanos são irmãos e decidiram levá-lo para casa quando o viram ensanguentado no chão. Quem cuida, porém, dos ferimentos do cruzado é a irmã dos dois muçulmanos, uma adorável donzela chamada Laura.
Porém, o velho oráculo judeu habita os sonhos do Caçador da Sombra. Suas palavras ainda ecoam na cabeça dele: “Não faz diferença se você jogar suas moedas na Fonte dos Desejos (Wishing Well), ou fizer suas preces dentro de uma maravilhosa igreja cheia de ouro. Tudo o que importa é a fé dentro de você. Se há um Deus, Ele não tem lar; Ele está em todo lugar!”
O tempo passa e o Caçador se apaixona pela jovem muçulmana. Quatro anos se passam, e Laura se torna sua mulher, tendo com ele dois filhos. Ele agora está dividido entre a busca pela sabedoria e uma vida modesta e confortável. O cruzado ainda tem o livro em branco que o rabino lhe deu, e nele o homem escreve seus sonhos e suas revelações. E apesar de não possuir sentimento maior do que o amor e afeto pelos seus próximos, o cruzado ainda se pergunta se deveria compartilhar suas revelações.
Este grande dilema o consome, lhe causando uma angústia comparável à que ele sentia no campo de batalha. Ele relembra dos momentos anteriores à luta, em que o inquietante Silêncio de Espera (Waiting Silence) plainava segundos antes dos gritos desesperados. Mas estes dias estão prestes a ter um fim.
A TOMADA DE JERUSALÉM
Em julho de 1099, Jerusalém é tomada pelo exército cristão. Em três dias de assalto, os cruzados, agora contando com os nobres, invadem a Terra Santa e causam um massacre. Em três dias, aproximadamente 70 mil pessoas são assassinadas – incluindo a mulher e os filhos do Caçador da Sombra. O Reino de Jerusalém é fundado, assim, sob os fanáticos, intolerantes e ignorantes ideais do Templo do Ódio (Temple of Hate).
O Caçador, porém, se salva do massacre. Ele então enterra seus familiares e, ao fazê-lo, diversas reflexões tomam a sua mente. O cruzado sabe que terá que conviver com aquela dor pelo resto de sua vida, que todos os momentos que tiveram juntos desapareceram de uma vez e se converteram apenas em memórias tristes. Ao mesmo tempo, enquanto ele encara a face pálida do filho no caixão, ele entende quão sublime é estar livre dos vãos sentimentos mortais. Ele então entende que, ainda que a dor seja imensa, desta forma Não haverá dor para os mortos (No Pain For the Dead).
Os anos passam, e o Caçador da Sombra se torna um cavaleiro templário. A Ordem do Templo era composta por cavaleiros que eram nomeados para proteger as ruínas do Templo de Salomão e os fiéis que vinham à Terra Santa peregrinar. Porém, em túneis encontrados nas ruínas do Templo, eles encontraram manuscritos que continham a essência das tradições judaicas e do Antigo Egito.
O objetivo deles era a liberdade de pensamento intelectual e a restauração de uma religião única e universal. Por trás desse pensamento a princípio maniqueísta está um propósito nobre: o de mostrar que aos olhos de Deus, toda manifestação de vida é a mesma. Não há caminho especial preparado para nós. Um ser humano não vale mais do que um redemoinho carregando folhas caídas. Estamos todos sendo guiados pelos mesmos Ventos do Destino (Winds of Destination).
A PROFECIA SE CONCRETIZA
O tempo passa e o Caçador da Sombra funda uma nova religião, reunindo pessoas para espalhar a verdade por ele revelada. Ele traz palavras de paz, porém não consegue tocar a todos. Neste momento, ele reflete sobre o tempo, como o futuro é uma consequência do agora. A colheita de amanhã nós plantamos hoje – expondo assim os Frutos do Tempo (Sprouts of Time).
Mas é claro que as palavras de um novo messias chegariam aos ouvidos da Igreja. O Papa e seus cardeais ouvem a respeito do cavaleiro templário que, com suas ideias de amor e compaixão, possui muitos seguidores. Ele então é perseguido pela Igreja, sendo capturado, torturado e condenado à morte. Na frente dos cardeais, contudo, ele explica como nós somos apenas Anjos e Demônios (Angels and Demons) rastejantes disfarçados, e expõe a sua Teoria da Luz, baseada no perdão de Satã, a ausência de Deus, o amor ateu e a Gnose. Porém, isso não o salva da morte.
E, em seus últimos momentos, ele ainda se questiona: “Eu estava certo? Eu estava errado?” E estes questionamentos tomam a sua mente, sem entretanto achar uma resposta final. O Anjo da Morte então aparece para ele, lhe estendendo a mão e oferecendo o conforto eterno. O Caçador da Sombra entrega, por fim, seu corpo e sua alma, certo de sua Redenção Tardia (Late Redemption).
Vida consumindo vidas para continuar vivendo.
Acaba para um, continua para todos.
A cobra come sua cauda.
O ciclo reinicia…
GATE XIII
E assim termina a saga do Caçador da Sombra. Apesar de estar muito feliz com o resultado deste texto, vale a pena lembrar que ele traz apenas um dos muitos pontos de vista que podem existir a respeito da história. E, se você gostou, saiba que este é apenas um dos muitos Ruídos Delfianos já lançados aqui no site. Da mesma forma, sugestões são sempre bem vindas, e se você tiver alguma ideia, deixe-a nos comentários!
Temple of Shadows
1 – Deus Le Volt!
2 – Spread Your Fire
3 – The Shadow Hunter
4 – Morning Star
5 – Wishing Well
6 – Waiting Silence
7 – The Temple of Hate
8 – No Pain For The Dead
9 – Winds of Destionation
10 – Sprouts of Time
11 – Angels and Demons
12 – Late Redemption
13 – Gate XIII