“Só é um problema porque seu jogo é chato. você só precisa deixar a viagem divertida.”

Hideaki Itsuno, justificando a limitação de fast travel em Dragon’s Dogma 2

O mesmo Hideaki Itsuno, dois meses depois, quando Dragon’s Dogma 2 saiu.

“Pontos de fast travel à venda por 15 reais.”

Este conflito, este atrito, é central em Dragon’s Dogma 2. E o fato de que qualidade de vida é vendida por dinheiro real, a preços consideráveis comparados ao preço total do jogo apenas torna tudo ainda mais irritante. Não, a Capcom não escondeu estas microtransações da imprensa no período de review. Junto com o código de review, foi mandado um documento detalhando tudo que podia ser comprado à parte. A falha em informar o público disso foi da imprensa que não leu o documento, não de uma má fé por parte da editora.

Ainda assim, fica a pergunta, e o incômodo. O jogo realmente queria ser assim, criativamente? Ou ele foi planejado para ser insuportável, a ponto que a maioria das pessoas iria querer gastar mais dinheiro para ficar livre dele mais rápido? Eu não tenho essa resposta, mas não dá para fugir da pergunta. Dragon’s Dogma 2 vai te irritar. Vai te deixar bravo. Vai parecer injusto. Especialmente quando você se lembra que poderia ter uma experiência melhor comprando itens pay-to-win por uma graninha extra. Eu não gastei essa graninha extra, e não joguei no PC, onde cheats tornam todos estes atritos banais. Então a pergunta que posso responder é:

DRAGON’S DOGMA 2 AINDA É CAPAZ DE DIVERTIR?

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Pernas pra que te quero!

A resposta curta é “sim”. A resposta longa é o resto deste texto. Bem-vindo à análise delfiana de Dragon’s Dogma 2. O código para nós chegou mais tarde do que para o restante da imprensa brasileira. Por isso este review está saindo tão depois do lançamento, ao invés de no embargo como fazíamos com jogos anteriores da Capcom. Porém, ter lido sobre ele antes de jogar fez com que eu me arrependesse de ter solicitado o código, se não totalmente, ao menos por ter pedido versão de console, e não a de PC.

A inconveniência parecia tanta, tamanha, que eu simplesmente não via a possibilidade de gostar de Dragon’s Dogma 2. É um jogo construído em cima do atrito, e eu já tenho mais atritos do que gostaria na vida real. Eu certamente não teria comprado o game sabendo das coisas que fiquei sabendo quando o embargo venceu. Caramba, eu não paguei pelo jogo e mesmo assim admito que não queria jogá-lo. “Time is money, oh yeah“, já dizia aquele super-herói interpretado pelo Seu Madruga.

Dito isso, ao solicitar o código assumi uma obrigação profissional. A Capcom não me mandou Dragon’s Dogma 2 como presente, mas para eu fazer minha cobertura sincera e detalhada, como já fiz para tantos de seus jogos antes. E para uma cobertura sincera, eu precisava dar uma chance honesta ao jogo. Racionalmente, estava decidido a fazer isso, mas ele já estava tão contaminado pelas informações sobre falta de qualidade de vida, que realmente não via muitas possibilidades de conseguir jogá-lo por mais de uma tarde. Bom, muitas tardes depois, eu ainda estava jogando. E me divertindo.

DRAGÃO DOGMÁTICO

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Dragon’s Dogma 2 faz muitas coisas muito bem, e o que faz mal faz aparentemente por pura recusa de “criar algo conveniente”. O visual, especialmente dos cenários, é muito impressionante. A iluminação é de babar. Áreas abertas de dia brilham bastante, a ponto de você se sentir compelido a fechar os olhos. À noite, as mesmas áreas são puro breu, o que não é algo que eu normalmente gosto, mas aqui achei que funciona bem graças aos efeitos de iluminação dinâmica. Lugares internos também são impressionantemente iluminados.

A iluminação é de longe o que torna o game tão bonito, embora os cenários também sejam muito detalhados e elaborados. O mais impressionante para mim, no entanto, foram os grandes inimigos. Os dragões, os ciclopes, os grifos. Meu amigo, o design dessas criaturas é de rivalizar com os filmes de O Senhor dos Anéis. Os personagens humanos são bem feios e datados, e as cutscenes são de dar vergonha de tão feias, mas a beleza dos cenários e inimigos compensa isso.

O mesmo dragão, comigo escalando o maledeto.

O combate contra esses bichos grandes também é bem especial. Classes com ataques corpo a corpo podem escalar os inimigos e atacá-los em pontos fracos com maior dano, enquanto os monstros fazem de tudo para te fazer largar. Tem um quê de Shadow of the Colossus, mas você pode escalar e machucar o bicho em qualquer lugar.

DRAGÕES, MINOTAUROS E CICLOPES

Estas lutas sempre eram emocionantes, mas em geral são lutas que acontecem no mundo aberto, aleatoriamente. Todas são muito demoradas e, quando o bicho voa, é bem provável que ele simplesmente saia voando depois de uns 10/15 minutos de porrada, levando com ele toda a XP e o loot que você ganharia ao vencê-lo. Não é legal. Assim, por mais legais que sejam estas batalhas, é mais inteligente simplesmente passar correndo e torcer para ele não te perseguir por muito tempo (o que às vezes acontece).

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Olha o visual deste minotauro que sensacional!

Você nunca viaja sozinho por aqui, graças ao sistema de peões. Tem um peão principal, que é criado por você e sobe de nível, e dá para contratar dois outros, que têm estatísticas estáticas e ficam com você até resolver trocá-los por um “modelo mais novo e de nível mais alto”. Ou até morrerem, claro, o que acontece com frequência e sem aviso prévio. Muitas vezes você simplesmente se dá conta que um dos peões não está mais com você, sem saber o que aconteceu ou onde ele morreu.

Este sistema é essencial para o game usufruir bem. Você precisa de uma boa sinergia entre as classes escolhidas. Eu joguei a maior parte do tempo com um thief protagonista e um peão mage e a sinergia foi ótima. O mage tem em seus especiais a possibilidade de colocar danos elementais nas armas. O bacana é que ele fazia isso automaticamente, de acordo com o elemento que causava mais dano no inimigo. Isso possibilitava que eu tivesse os benefícios do sistema sem precisar interagir com ele (acho danos elementais uma coisa muito chata). Também é muito importante dividir a carga com os peões, já que a limitação de peso é bem… limitante. Isso traz também um grande inconveniente.

O GRANDE INCONVENIENTE

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Esta quimera me deu um cansaço.

Uma dessas minhas lutas foi contra uma quimera. Foi uma luta extremamente longa, que passou dos 30 minutos. Meus peões morreram várias vezes (dá para ressuscitá-los segurando um botão perto deles). Minha vida máxima diminuiu consideravelmente. Quando a quimera finalmente caiu, percebi que um dos meus peões tinha sumido. E ele tinha levado junto tudo que estava carregando, incluindo meu acampamento, um item pesado e caro que pode ser consumido para avançar o tempo, recuperar vida e salvar o jogo.

Eu sabia que poderia pagar para procurá-lo em um necrotério e revivê-lo usando um item. Mas não sabia se ele voltava com seu inventário, que era o mais importante para mim. Porém, eu simplesmente fiquei preso na arena da Quimera, e não consegui mais sair. Precisei recuperar o save que fiz na cidade, mais de uma hora antes. Eu nunca mais voltei para lutar contra aquela quimera. Este é um dos exemplos dos enormes atritos que você tem que encarar e suportar para curtir Dragon’s Dogma 2.

ATRITOS

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O que mais incomoda são coisas que não fazem sentido. Na imagem acima, eu estava dentro de um palácio, a princípio sem inimigos. O controle foi arrancado de mim para uma cutscene. Enquanto ouvia o que os personagens falavam, comecei a ser atacado por um guarda. Ele não tirou vida durante a cutscene, mas obviamente precisei lidar com isso depois que ela acabou. Eu não sei porque eles me atacaram e se um guarda te ataca na cidade, você não consegue escapar, porque a cidade é cheia de guardas e não dá para lutar até vencer. Na melhor das hipóteses, você luta até ser preso, o que é outro enorme inconveniente. Às vezes dá para fugir da cadeia, mas às vezes não tem outro jeito a não ser dar todo seu dinheiro para um guarda. O que houve? Ninguém sabe.

Em outra situação, ainda no início do jogo, uma NPC me interrompeu e falou “você é o Arisen, né? O capitão disse para você me seguir”. Comecei a segui-la e, do nada, do mais absoluto nada, ela começou a me atacar. Eu não entendia o que estava acontecendo. Recuperei meu save anterior e ela funcionou direito, me levando até onde deveria levar (a área da missão). O que houve? Ninguém sabe.

Em outra situação, um vendedor me atacava sempre que me aproximava dele. Ele me atacar fazia com que todos os NPCs ao redor ficassem agressivos, inclusive os guardas. Fui preso. Saí da prisão e voltei ao mercado, apenas para tudo acontecer de novo. Preso neste loop, tive que restaurar meu save de acampamento e perder muito progresso. O que houve? Ninguém sabe.

UM ÚNICO SAVE

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Lindo!

Isso tudo se torna realmente inconveniente porque seus saves são constantemente atualizados. O jogo autosalva com frequência, e a única forma de salvar manualmente é dormindo em um acampamento, hotel ou em uma casa comprada. Então você tem sempre dois saves. Um é automático e bem recente, e o outro pode ser de horas antes. Mas o bem recente tem uma tendência bem forte a quebrar o jogo. E o outro? O outro pode te fazer perder horas de progresso quando restaurado.

Quando você morre, o jogo também é sacana. Você pode restaurar do último save, mas ele te revive com menos vida máxima, e a única forma de recuperar é fazendo um save manual, quando der. Assim, você pode estar lutando contra um bichão e se ver preso ali, quase sem vida, sem acampamento, longe de uma cidade e sem chance de sobreviver a qualquer batalha. O que fazer? Espero que não tenha programado outras coisas para seu final de semana. Meio por isso, e pela enorme possibilidade de os bichos mais poderosos simplesmente saírem voando, a melhor forma de viajar em Dragon’s Dogma 2 é evitando combates.

DEAD RISING

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Um ciclope e um dragão brigando. Eu vou é correr pro outro lado.

Talvez o atrito em Dragon’s Dogma 2 não seja novidade para quem jogou o anterior. Admito que não joguei. Assim, o jogo que ele mais me lembra é o primeiro Dead Rising. Mais do que um game de ação, era um de locomoção. Cada vez que você saía da base segura deveria ter um plano de até onde queria chegar e como voltar. Assim me senti em Dragon’s Dogma 2. Embora ele seja um RPG bastante elaborado e seu combate seja bem legal com as classes certas, o foco é pensar bem quando você vai sair de uma cidade. Para onde vai? O que vai fazer e o que vai levar? Dá para cumprir várias missões e terminar chegando em outra cidade?

Diria que a posição do Hideaki Itsuno em relação a fast travel foi um tanto babaca, mas este é o motivo de design que faz a mecânica ser tão limitada. Este é um game de andar. Um walking simulator extremamente perigoso. E, assim como o primeiro Dead Rising, é possível que seu jogo seja salvo de forma “quebrada”, sem forma de continuar a história. Não acho isso legal, mas entendo o objetivo. O que não entendo são coisas como a Dragonsplague, que existe simplesmente para quebrar totalmente seu save manual se você não a identificar a tempo. Uma coisa, e também ruim, é quebrar por erro de jogador. Outra é ter uma bomba relógio que você precisa desarmar antes do seu save ser destruído por inação sem você nem saber que tinha algo errado.

DEATH STRANDING

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Olha este cenário e essa iluminação!

Este foco em caminhar também aproxima bastante Dragon’s Dogma 2 do walking simulator deluxe Death Stranding. Claro, aqui é uma versão muito mais dura e mais perigosa. Mas o foco é ir de um lugar a outro onde você pode se recuperar e salvar, e para conseguir fazer isso, você precisa se preparar, escolher o que levar e garantir que está levando o suficiente – mas não mais do que o suficiente. É inconveniência como design. E, claro, você pode não gostar disso. No papel, eu certamente não gosto. De alguma forma, no entanto, acabei tendo boas experiências tanto com o primeiro Dead Rising quanto com este. E são dois jogos que, ideologicamente para mim, fazem tudo “errado”.

Sinceramente, eu não devo jogar Dragon’s Dogma 2 de novo. Para ser honesto, quando escrevi esta parte do texto, não sabia nem se ia jogar até o fim, pois pretendia desistir no momento que meu save quebrasse ou encontrasse algum atrito que não estivesse disposto a aceitar.

UPDATE: TERMINEI

Dragon's Dogma 2, Capcom, RPG, Mundo aberto, Delfos
O design da esfinge talvez seja o mais impressionante de todo o jogo.

Pouco depois de escrever a parte acima, percebi que estava entrando na sequência final de missões. O nível recomendado para esta parte em guias online era acima de 45. Estava no nível 27. Pensei em desistir, mas ainda queria jogar. Então saí andando a esmo. Explorando o mundo, fazendo sidequests. Arrisco dizer que tendo a experiência que a Capcom pretendia. Encontrei a Esfinge, lutei contra a Medusa, fiz um monte de coisa, mais até do que fiz quando seguia a história. Quando estava pronto para abandonar, cheguei ao nível 45 e resolvi ir até o fim. Fiz o final ruim e voltei para fazer o final real.

Esta corrida para o final real foi mais chatinha, com chefes muito difíceis e uma sidequest obrigatória que exigia que eu pegasse um peixe sendo que não existia mais água no mundo. Sim, o jogo quebrou. Eu fiz o final real, mas não consegui salvar os elfos porque não tinha feito esta sidequest do peixe antes do fim do mundo. Mas consegui terminar, e isso me surpreendeu bastante, especialmente considerando minhas diferenças ideológicas com ele.

O que posso dizer é que, APESAR DE TUDO, gostei de Dragon’s Dogma 2. É um relacionamento abusivo que você sabe de antemão que vai ser abusivo, e que só deve ser encarado por aqueles que achem o abuso gostoso. Eu normalmente não acho. Porém, no conjunto da obra, diria que tive, sim, uma boa experiência. Uma que não quero ter de novo, mas uma vez pelo menos foi interessante.