A nação nerd em peso se regozijou quando, no começo de fevereiro, a Marvel Studios anunciou que o Homem-Aranha está voltando para casa. Depois de acertar um acordo com a Sony Pictures, eles ganharam o direito de incorporar o nosso querido Amigão da Vizinhança ao seu Universo Cinematográfico.
E as informações basicamente pararam por aí. Eles não contaram se isso significava um novo reboot, se eles chamariam um novo ator para viver Peter Parker, ou se continuariam com a versão desgrenhada de Andrew Garfield mesmo. Pouco tempo depois, um repórter do The Wrap afirmou que seria um novo Aranha sim, e que haveria 95% de chance de ele não ser branco, mas negro ou latino. Isso levantou ainda mais perguntas: será que eles vão mudar a raça do Peter? Ou será que escolheriam outra encarnação, como Miguel O’Hara, o Homem-Aranha 2099, ou Miles Morales, do universo Ultimate?
E com estes novos questionamentos, voltou à tona aquela velha discussão que a gente já conhecia desde que escalaram Idris Elba como o deus nórdico Heimdall ou de quando Donald Glover fez campanha para interpretar o Cabeça-de-Teia. Será que é válido mudar a etnia de um personagem ao adaptá-lo para o cinema?
Pensando sobre o assunto nos últimos dias, eu cheguei à conclusão de que eu sou a favor de um Homem-Aranha negro. E neste texto, eu explico a razão.
MAS POR QUE ISSO IMPORTA TANTO?
Frequentemente, quando esse assunto (ou qualquer outro relacionado ao racismo) vem à tona, alguém tenta encerrá-lo simplesmente dizendo que isso não devia importar, afinal “nós somos todos iguais” e “não se deve ver raça”.
Então, para começo de conversa, eu não acho que este seja um bom jeito de lidar com isso. Por mais que o conceito de raças seja, de fato, totalmente inválido cientificamente, é uma construção cultural real, que ao longo da história e até hoje permite que um grupo se beneficie. É preciso reconhecer a existência dessa ideia, para então poder rejeitá-la. E por outro lado, a etnia também está ligada à identidade cultural das pessoas, e essa parte deve ser valorizada. Fingir que isso não existe faz mais mal do que bem.
É claro que eu, como branca, não tenho a menor ideia de como é a experiência de ser negra, ou o que uma pessoa negra pensa de tudo isso, e portanto não tenho nenhuma intenção de falar por este grupo. Mas eu acredito que, quando existe uma situação polêmica, a melhor coisa a fazer, a mais saudável, é discutir.
Eu já falei em outros textos que me incomoda muito ver o quão mal representadas nós mulheres somos na ficção. Sendo assim, não é difícil ver que a situação é ainda pior para negros (e latinos, asiáticos, indígenas, árabes, etc), gays (e bissexuais, transgêneros e etc), pessoas com deficiência, e tantos outros grupos que quase nunca se vê nas telas, ou só se vê em estereótipos pobres e rasos.
O SIGNIFICADO DA REPRESENTAÇÃO
Eu, como nerd, acredito naquela máxima de que “a arte imita a vida e a vida imita a arte”. Eu tenho consciência da importância imensa que a ficção tem na minha vida e na minha visão de mundo. Não que eu vá reproduzir tudo o que vejo na ficção (como sugerem aqueles que culpam os games pela violência), mas eu sei o quanto eu aprendi interpretando as histórias a que fui exposta. Com a ficção a gente aprende a se colocar no lugar dos outros, a empatizar. Ficção bem feita é o melhor jeito de quebrar preconceitos de qualquer tipo, de tornar visíveis e compreensíveis as realidades mais alheias imagináveis. Por outro lado, como reflexo do mundo real, a ficção também tem o poder de propagar ideias erradas como normais, e é por isso que a má representação (ou a falta dela) é tão prejudicial.
A grande razão pelo qual nós somos tão passionais quanto a Peter Parker e quanto a mantê-lo intacto é o que ele significa para nós. Ver um adolescente nerdão, totalmente inapto socialmente como qualquer um de nós, virar um herói capaz de ensinar lições valiosíssimas sobre poder e responsabilidade, é muito especial. Conseguir se enxergar num herói é muito especial. É inspirador, faz você sentir que os problemas pelos quais você passa são válidos, e que você pode superá-los. Mas existe uma parcela gigantesca de outros nerds que não têm muita gente com quem se identificar.
No meu trabalho diurno, eu lido com crianças e pré-adolescentes o tempo todo, e eu vejo de perto o quanto isso pesa. Eu vejo o quanto as menininhas idolatram a Elsa, e a Katniss, e a Hermione. Mas como eu disse lá em cima, as meninas são só uma parte. Como se explica para uma criança negra que eles nunca são os heróis, só os sidekicks, os melhores amigos, o alívio cômico (ou pior, os vilões, os bandidos)? E por outro lado, imagina o quão legal foi para uma criança com deficiência ver o Soluço todo tremendão em Como Treinar O Seu Dragão 2, mesmo sem uma das pernas? Essas coisas importam.
A QUESTÃO DA MUDANÇA
Ok, mas até agora eu só falei sobre o quão importante é ter super-heróis diferentes do padrão clássico. Isso não justifica mudar o Cabeça-de-Teia. “Peter Parker é branco, sempre foi branco, e mudá-lo para um negro seria tão ruim quanto um Blade branco ou um Superman oriental”. Esse é o argumento mais comum, e costumava ser o meu até pouco tempo atrás. Agora ele já não me convence.
Primeiramente porque, como eu disse lá em cima, a proporção é ridiculamente desequilibrada. Adaptar um personagem branco como negro é tirar um do grupo que tem dezenas estreando todo ano e passá-lo para um grupo muito mais escasso. Adaptar um personagem negro como branco é tirar um dos pouquíssimos que contam como representação daquele grupo, e transformá-lo em só mais um no padrão de sempre.
Sim, eu concordo que, ao invés de mexer em personagens já estabelecidos e estragar a fidelidade dos filmes, o ideal seria criar novos personagens, mais diversificados, e então adaptá-los ao cinema. Porém, nós sabemos que Hollywood não está tão disposta a tal.
Por que Guardiões da Galáxia foi uma vitória tão impressionante para a nerdice? Porque, como o Cyrino disse na resenha, “enquanto a casa do Batman e do Superman não consegue botar nos cinemas medalhões do calibre da Mulher-Maravilha e do Flash, a Marvel estreia um longa protagonizado por uma árvore e um guaxinim”. Quando não é sucesso garantido, dificilmente os executivos malvados vão permitir que sua bufunfa seja gasta fazendo blockbusters caros.
Os quadrinhos atualmente estão até bem positivos neste aspecto: a Tempestade tem seu próprio título. O manto de Capitão América está com Sam Wilson. Thor agora é uma mulher (e vendendo mais do que nunca). O atual Motoqueiro Fantasma, Robbie Reyes, é latino. A nova Miss Marvel, Kamala Khan, é muçulmana. As mudanças já estão ocorrendo, mas se for para esperar que eles levem isso ao cinema, é melhor esperar sentado.
Eles sempre vão preferir Peter Parker, que todo mundo já conhece, ama, e vai pagar pra assistir, do que Miles Morales. Apesar do Miles ser um personagem excelente, com uma história ótima, e de ser uma oportunidade de levar ao cinema um herói que é originalmente um adolescente negro, com ascendência latina, que vive na periferia e foi obrigado a lidar com o crime desde muito cedo. Aparentemente, ele não é “icônico” o suficiente.
Deste ponto de vista, pareceria mais garantido continuar com Peter e toda a sua história, só que com um ator negro. Mas cada vez que surge o assunto, surge também todo esse discurso de rejeição, e aí nada muda. Nem os personagens, nem a situação de supremacia branca na Cultura Pop.
Isso é chato, porque hoje em dia, nós nerds estamos no poder. A mídia está de olho em nós. Em nossa disposição de divulgar, apoiar e gastar dinheiro com as coisas que gostamos. Todo ano, nós conseguimos convencer canais a manter nossas séries preferidas no ar por mais uma temporada. Conseguimos convencer os estúdios de que a adaptação de Avatar foi um fracasso que não merece mais sequências. Por Satã, nós conseguimos convencer a Fox a fazer o filme do Deadpool – e com a classificação +18! Portanto, nós conseguiríamos pressioná-los a incluir personagens mais diversos, seja pegando um original ou transformando um personagem tradicional. Seria só questão de reconhecer o quanto isso é importante.
MAS SE FOR PARA MANTER, ENTÃO VAMOS MANTER!
Se você é da opinião de que os personagens devem continuar do jeito que seus criadores pretendiam, tudo bem. Eu concordo completamente. Só que a sua opinião deve ser coerente, e portanto, você deve levar em conta casos como os seguintes:
– O meu queridinho Gavião Arqueiro, nos quadrinhos, é surdo. Toda a edição #19 do atual título dele, escrita pelo genial Matt Fraction e desenhada por David Aja, foi em torno disso, e foi sensacional. Uma das melhores que eu já li. Nos cinemas, não houve nem menção de nada disso.
– A Katniss, de Jogos Vorazes, é descrita no primeiro livro da saga como uma garota de longos cabelos negros, e pele tom de oliva, mas acabou interpretada por Jennifer Lawrence, loira de olhos claros. E não por mérito da atriz, mas porque os testes de elenco pediam apenas “caucasianas, entre 15 e 20 anos”. Nenhuma atriz com pele tom de oliva teve sequer a chance de ganhar o papel.
– O índio Tonto, de O Cavaleiro Solitário, não foi interpretado por um ator indígena, mas por Johnny Depp. Assim como a Tigrinha, de Peter Pan, que foi interpretada pela branquíssima Rooney Mara no vindouro Pan.
– Recentemente, falou-se de uma adaptação de Akira, e entre os cotados para os papéis de Tetsuo e Kaneda, não havia sequer um ator que não fosse branco. Agora, vão adaptar Ghost in the Shell, mas ao invés de Rinko Kikuchi, ou Ming-Na Wen, ou Lucy Liu, ou qualquer atriz sequer vagamente asiática para interpretar a Motoko, contrataram Scarlett Johansson. Será que farão o mesmo com a Mulan?
– O Khan, de Star Trek, ficou conhecido com o rosto do mexicano Ricardo Montalban. Em Além da Escuridão, o vilão foi interpretado por Benedict Cumberbatch. Graças a Artemis, eles mantiveram a Uhura negra.
– Em Êxodo: Deuses e Reis, último de Ridley Scott, todos os egípcios são brancos, exceto por alguns servos e ladrões. Nós estamos tão acostumados com a imagem clássica de Elizabeth Taylor como Cleópatra que esquecemos que o Egito fica na África.
– E vem aí o muito esperado Os Vingadores 2: A Era de Ultron, e nele nós finalmente veremos a introdução da Feiticeira Escarlate e do Mercúrio. Já sabemos que eles não vão poder ser explícitos quanto ao fato dos gêmeos serem filhos do Magneto. Mas e quanto ao fato de que eles foram criados por uma família cigana, um grupo extremamente marginalizado, que foi vítima do holocausto? Será que eles vão omitir isto também? E não é estranho transformarem personagens que eram ciganos em personagens vinculados à Hydra?
Percebe? Não é como se essa história ainda esteja em fase de discussão. As mudanças já acontecem, e com frequência. Para cada Nick Fury que agora é negro, temos uma Maria Hill que agora é branca. A questão é justamente definir a sua opinião: se ter um Homem-Aranha negro te incomoda, então todos estes outros casos também merecem as suas críticas.
Não quer dizer que a gente tenha de boicotar os filmes nem nada. É totalmente possível ser fã de algo e ainda ser crítico e reconhecer os problemas da obra. Todo o meu amor pelo Universo Cinematográfico da Marvel, por exemplo, não me impede de notar que serão fuckin’ DEZOITO filmes (provavelmente dezenove, já que agora o Spidey vai entrar para o calendário) protagonizados por homens brancos, até que Pantera Negra e Capitã Marvel cheguem e quebrem essa sequência. O que não dá é deixar que isso passe impune, sem nenhuma menção, quando só a mera possibilidade de um herói negro cause tanta controvérsia.
Pessoalmente, eu não me incomodo. Eu fui capaz de perdoar um Constantine que não fuma, um Dr. Watson mulher, um X:Men: Days of Future Past em que quem volta no tempo é o Wolverine, e não a Kitty. Sendo assim, eu posso com certeza aceitar um Peter Parker negro, ou que o Spidey do MCU seja o Miles e não ele. Não sei como eles fariam para introduzir o Miles sem a presença do Peter antes, já que a história dos dois está totalmente interligada, mas tenho certeza que eles dariam um jeito, assim como deram um jeito de trazer Wanda e Pietro sem o papai Magneto. Me parece um preço justo a pagar, em troca de ao menos mais um personagem fora deste padrão saturado. Por mais que eu ame o Peter, em menos de quinze anos, nós já tivemos cinco filmes com ele (sem contar mais um monte de séries animadas), então acho que não faria mal variar um pouco. Quem sabe, pode vir a ser um sucesso tão grande quanto o da árvore e do guaxinim.
O PONTO EM COMUM
Enquanto essa discussão se desenrola, considere o seguinte: a nova temporada de Orange Is The New Black será liberada no Netflix dia 12 de junho. How To Get Away With Murder acabou de ser renovada para a segunda temporada. Se você preferir algo mais engraçado, Brooklyn Nine-Nine está no ar neste momento e é super recomendável. As três têm elencos bastante diversos.
No final do ano passado, saiu Festa no Céu, dirigido por Jorge Gutierrez e produzido por outro dos meus favoritos, Guillermo Del Toro. Além de ser a animação mais criativa e visualmente interessante dos últimos tempos, e de ser mais fofo do que é permitido por lei, o filme ainda glorifica a cultura e o povo mexicano.
E por falar em animações, agora em abril estreia Cada Um Na Sua Casa. Além de ter as vozes da Rihanna e do Sheldon e de ter The Hives tocando no trailer, o filme já está atraindo muita atenção na internet graças à reação de muitas menininhas negras, que já estão ansiosas para ver um filme cuja protagonista se parece tanto com elas.
Enquanto é perfeitamente discutível se mudar a etnia de personagens icônicos é ou não uma boa forma de trazer mais diversidade para a Cultura Pop, creio que todos concordamos que está mais do que na hora da ficção refletir melhor a realidade e dar mais espaço para membros de todas as minorias contarem suas histórias.
Sendo assim, independente da sua opinião sobre o destino nos nossos heróis consagrados, não custa nada levar esse aspecto em consideração ao julgar uma nova obra, e apoiar os criadores que estão fazendo esforços para diversificar, e para redefinir a nossa imagem de herói (ou de protagonista), transformando-a em uma mais inclusiva. Significa muito para muita gente.