Durante o século XX, especialmente nas pequenas cidades espalhadas pelo interior do Brasil, uma figura sempre se destacava nos enterros. Normalmente, era um senhor ou senhora, de origem humilde, já passando da casa dos 60 anos, que freqüentava todas as salas de velório, dando suas condolências às famílias dos defuntos e participando da oração final, mesmo que sequer os tivesse encontrado em vida. Mas os ratos de velório, como eram popularmente chamados, não se importavam com este “pequeno” detalhe e se enturmavam com os amigos do finado. Além disso, faziam questão de ir até o caixão e desejar uma boa passagem para o outro lado com o sinal da cruz. Quando eu era pequeno e viajava para o interior, sempre ouvia as mais variadas histórias sobre esses seres. Os anos se passaram e as cidades cresceram, mas os velhos hábitos surgiram renovados para uma nova geração.
A estratégia dos novos ratos é muito simples. Normalmente são pessoas esclarecidas e bem informadas que, ao se depararem com alguma notícia de algum crime bárbaro cometido recentemente contra um jovem da classe média ou alta (do jeito que as coisas caminham, toda semana aparece algum crime desses), gravam o nome da vítima, entram no Orkut, procuram seu profile no banco de dados (por isso a vítima deve ser das classes A e B, já que é mais difícil encontrar alguém da classe C, D ou E que tenha um computador com acesso à Internet em casa, quanto mais uma conta no Orkut) e deixam um scrap para o falecido com algo do tipo “Fulano, não te conheci mas estou chocado com o crime. Descanse em paz”.
A ação, apesar de soar um tanto mórbida, produz um efeito interessante de individualização dos finados internautas. De repente, eles deixaram de ser apenas uma estatística brutal e ganharam traços de pessoas reais, que perderam a vida em um latrocínio ou qualquer outro crime estúpido.
Sim, confesso que sou um destes curiosos, mas não deixo um scrap para o falecido apesar de, muitas vezes, compartilhar do sentimento de indignação e raiva dos seus amigos. De certa forma, me sinto menos hipócrita conhecendo melhor quem se foi ao invés de simplesmente pensar “que absurdo!” e virar a página do jornal para a seção de esportes.
Com a onda de crimes hediondos (não consigo me esquecer daquele absurdo cometido pelo monstro que assassinou covardemente uma jovem de 16 anos e seu namorado algum tempo atrás), nos acostumamos a ler sobre os casos e nos indignamos, mas o tempo esfria o sentimento e seguimos nossa vida em frente. Enquanto isso, as famílias dos que se foram tentarão, às vezes em vão, curar a cicatriz de perder um ente querido, muitas vezes um jovem com toda a vida pela frente. Antigamente, essas vítimas eram apenas números que causavam uma revolta momentânea, pedidos de redução da maioridade penal ou pena de morte (fatores que contam com meu voto também), mas logo a situação sai de foco e as lembranças permanecem apenas na mente das pessoas que efetivamente as conheciam.
Com a criação do Orkut em 2004, no entanto, estamos à mercê de uma grande reviravolta. Agora, além de ler sobre o determinado crime em um jornal, podemos também conhecer melhor a pessoa que partiu, o que ela gostava, quem eram seus amigos, o que diziam dela e qual a verdadeira marca que esse ser humano deixou na vida de todos. De repente, um número ganhou rosto, preferências, amigos, familiares, depoimentos, uma vida e, com isso, perde-se a incômoda sensação de coletividade do crime onde sabemos que no ano passado morreram milhares de pessoas em crimes estúpidos, mas não tínhamos idéia de quem realmente eram a não ser que o crime ocorresse no seu convívio social. Lendo o perfil que a vítima escreveu meses antes de sua morte, passamos a nos identificar com aquela situação de tristeza e amargura dos familiares e, de certa forma, sentimos que quem se foi, poderia ser um amigo, um parente ou nós mesmos.
É interessante e ao mesmo tempo contraditório que em um mundo cada vez mais frio, ainda sobre espaço para a compaixão justamente dentro do ambiente virtual, onde os contatos tendem ser cada vez mais distantes (e, acredite, de contatos virtuais eu entendo pois participo desse mundo há 10 anos, juntamente com o Corrales). Quem sabe com essa identificação, o ser humano não volte realmente seus pensamentos para o próximo e para o futuro que estamos construindo para nossos filhos. Chega de violência!
E já que o assunto é Orkut, você já sabe que o DELFOS tem uma comunidade lá, né? Se você ainda não entrou, clique aqui e divida com a gente seus sentimentos de repúdio à violência do nosso mundo.