Quando The Handmaid’s Tale, a série da plataforma Hulu estreou, eu não dei a menor bola. Via umas imagens da protagonista vestida naquele hábito vermelho e pensava que devia ser alguma coisa de época envolvendo religião, o que não me apetecia nem um pouco. Não estava totalmente errado, mas quando finalmente descobri do que realmente se tratava, resolvi dar uma chance.
E gostei do que assisti, tanto que resolvi ler o livro que originou a série, O Conto da Aia, escrito pela autora canadense Margaret Atwood nos anos 80. E está tudo lá, bem adaptado. Mas esta é uma resenha do livro, não uma comparação entre romance e série, então vamos ao que interessa.
O Conto da Aia é essencialmente uma ficção científica distópica. No futuro, os EUA não existem mais. Em seu lugar é instaurada a República de Gilead, fruto de um golpe de estado dado por militares religiosos. Eles constituem um governo militar fundamentado numa espécie de cristianismo ortodoxo.
Quem não se encaixa nesses preceitos (pessoas de outras religiões, homossexuais) são devidamente eliminados. Para piorar a desgraça, a natalidade no futuro decaiu muito devido a guerras nucleares e outras desgraças. A solução é transformar qualquer mulher fértil de Gilead em escravas procriadoras.
São as Aias do título, que são forçadas a entrar para uma ordem e treinadas para servir e gerar filhos para os comandantes do alto escalão do governo. O livro é narrado por uma delas, cujo nome real, diferente do que acontece na série, nunca é revelado. Mas que atende pela alcunha de Offred (Do Fred), simbolizando sua propriedade ao comandante ao qual serve.
SOB O OLHAR DELE
Em suas páginas, ela vai relatando sua “desgracenta” nova realidade como uma aia num mundo sem liberdades individuais e cercado de intolerância e barbaridades geradas por uma fé usada como forma de controle. Bem como, em flashbacks, vai mostrando como os EUA lentamente foram dando indícios de como viraria Gilead.
E, sobretudo, de como as mulheres foram totalmente destituídas de qualquer liberdade civil, perdendo qualquer direito que tenham conquistado nas últimas décadas, virando donas de casa (as esposas dos comandantes), empregadas domésticas (a camada mais pobre e infértil) e as férteis, barrigas de aluguel sem direito de escolha.
É um pesadelo distópico muito bem construído e absurdamente assustador. Me lembro que li em algum lugar que a autora usou e extrapolou uma combinação de elementos que em algum momento da História realmente aconteceu em alguma parte do mundo.
Pensar que tudo isso é escorado em algo que já foi uma realidade adiciona um elemento assustador à narrativa. Eu particularmente tenho um pavor especial pelo uso de religião como forma de controle de massas e justificativa para barbaridades humanas que seriam cometidas de qualquer jeito.
Logo, para mim, ler este livro foi praticamente como ler um livro de terror. E imagino que para as mulheres este sentimento seja ainda mais potencializado pela forma como a trama retrata como seria simples retroceder tantos esforços por direitos iguais com algumas simples canetadas.
BENDITO SEJA O FRUTO
Outros elementos muito bem explorados são a hipocrisia de quem está no poder, o fato de que quem ganha um pouco de poder sempre vai usá-lo para pisar nos outros e o total sentimento de impotência quando se está numa sociedade tomada por uma espécie de loucura coletiva.
Uma coisa que me incomodou na série, mas que depois eu compreendi melhor ao ler o romance, é a passividade da protagonista. Ao ainda nutrir esperanças de rever o marido e a filha pequena dos quais foi separada quando foi “convocada” para ser uma aia, ela simplesmente aceita seu destino, vivendo um dia de cada vez na esperança de alguma interferência externa que nunca vem.
Mas faz sentido, é uma pessoa normal numa situação inimaginável. Ela não vai pegar em armas e liderar uma revolta popular. Ela vai ficar de cabeça baixa, cumprir sua função e simplesmente existir da melhor maneira possível nesse mundo de pesadelo. O que deixa a narrativa ainda mais densa e por vezes até deprimente.
O Conto da Aia é uma leitura poderosa e serve como conto de cautela quando se vê governos por aí tomando medidas que não estão muito longes da fantasia descrita aqui, o que torna tudo ainda mais assustador. Para quem gosta de uma boa ficção científica distópica e para quem curtiu a série, vale a leitura.
CURIOSIDADE:
– O livro de Margaret Atwood agora ficou famoso por conta de sua transposição para a série do Hulu, mas essa não foi a primeira vez que ele foi adaptado para as telas. Ele já havia virado filme em 1990, chamado por aqui de A Decadência de uma Espécie (título bastante apropriado) e estrelado por Natasha Richardson, Faye Dunaway, Aidan Quinn e Robert Duvall. Alguém aí assistiu?