Que Blade Runner é um clássico, todos sabemos e ninguém discorda. Além de ser um marco inspiratório para os filmes de ficção científica, a película conseguiu sobreviver muito bem ao teste do tempo e continua sendo, mesmo hoje, impressionante de muitas formas.
A trama, baseada no livro Androides Sonham com Ovelhas Elétricas?, de Philip K. Dick, acompanha o caçador de androides Rick Deckard em sua missão para assassinar aposentar um grupo de Replicantes fugitivos.
Com o lançamento de Blade Runner: 2049, decidi revisitar o filme original antes de conferir a sequência, para dar aquela reavivada na memória, porque já não me lembrava tanto dele quanto gostaria. Para tanto, li esta excelente matéria do Cyrino para saber a qual versão assistir, esquentei uma pipoquinha, fechei as cortinas e me sentei diante da TV para apreciar este petardo audiovisual que é Blade Runner.
MAS ENTÃO…
Tudo muito bom, tudo indo muito bem. Até que, lá pelas tantas, rola uma cena que tenho certeza de ter apagado da minha memória, muito provavelmente para resguardar a admiração e o respeito que tenho pelo filme. É uma sequência tão bisonha que simplesmente não dá para entender como foi parar no corte final.
Contextualizemos: depois de já ter capotado alguns Replicantes, Deckard está na bota de Pris, androide interpretada por uma ainda jovem Daryl Hannah. A cena começa cheia de suspense, com Deckard entrando em um apartamento entulhado de bonecos mecânicos e quinquilharias robóticas. Pris, que quer apenas sobreviver passar despercebida, esconde-se em meio às bugigangas eletrônicas, na esperança de que Deckard não a descubra ali.
Mas é claro que Deckard desconfia daquele manequim gigante sentado na sala, e Pris inicia um confronto físico com um ainda jovem Harrison Ford.
A cena que se segue é, na melhor das hipóteses, incabível. Veja bem: Pris é um androide, com força e resistência muito além das capacidades físicas de um ser humano comum. Além disso, ao longo do filme ela apresenta especial aptidão para contorcionismos e acrobacias, demonstrando extrema flexibilidade e equilíbrio. Parecem qualidades que poderiam muito bem ser empregadas em combate, não?
Agora pergunto: o que você faria se fosse um androide dotado de tais capacidades, confrontando o homem enviado para lhe aplicar um recall à força? Consigo pensar em vários cenários possíveis, e todos eles envolvem arrancar a cabeça do sujeito com minhas próprias mãos e redecorar a sala com seu cerebrozinho gosmento de homo sapiens. Porque, afinal, eu sou um androide cheio das habilidades lutando pelo direito de não ser chacinado aposentado, e não há tempo para sutilezas, correto?
Mas não a Pris. Não ela. Ao que parece, Pris é um androide que não tem tanta vontade assim de viver. Para compreender a beleza dessa cena em sua completude, precisamos analisá-la por partes.
1. Primeiro, Pris dá uma chave de virilha em Deckard, montando em sua nuca e o subjugando com a musculatura de suas pernas, como se fosse esmagar a cabeça do rapaz COM AS COXAS. Por que não, sei lá, apenas arrancar a cabeça dele?
2. Pris tenta inutilmente girar a cabeça de Deckard ao contrário para lhe quebrar o pescoço. Opa. Até que faz sentido, né? O problema é que o cara vai girando o corpo ao mesmo tempo, com a cabeça ali no meio das pernas dela, até se virar completamente. Como resultado dessa mixórdia cênica, agora Pris está meio que montada NA CARA de Deckard, travando a luta mais embaraçosa e sem sentido de todos os tempos. Mas a coisa não para por aí!
3. Não contente, a androide desfere dois cascudos de mão fechada no cocuruto de Deckard (por que não, sei lá, apenas arrancar a cabeça dele?) e se detém brevemente para respirar ofegante e cheia de raiva, como se estivesse pensando na pior maneira de infligir sofrimento ao caçador de androides. “Arranca a cabeça dele!”, digo eu do outro lado da tela. “Enfia o dedo no olho! Dá um chute no saco!”. Mas não. Pris tem uma concepção bastante própria de violência. Para ela, arrancar cabeças não parece uma opção atraente. Quer saber o que ela faz? Prepare-se, delfonauta, prepare-se!
4. Pris, uma androide que poderia esmigalhar crânios alheios sem nem mesmo suar, decide que seu golpe final será ENFIAR DOIS DEDOS NO NARIZ DE DECKARD e o erguer pelas narinas, como se dissesse “Você nunca mais vai poder usar esse seu nariz para… Você pare de meter esse seu nariz em… “. Me desculpem, é impossível escrever uma piada que seja mais engraçada que a própria cena.
No fim das contas, Pris liberta as narinas de Deckard e sai correndinho, sem muita pressa. Você pode achar que ela está fugindo, como seria de se esperar, mas então a moça para, toma distância e volta DANDO PIRUETAS COMO UMA GINASTA OLÍMPICA (por que, meu Deus, por quê?).
É claro que, a essa altura, Deckard já teve tempo de alcançar sua pistola e meter um tiro bem dado no peito de Pris, que cai no chão se contorcendo em agonia. Mas vamos concordar que ela também não se ajudou muito, hein?
A cena toda, reafirmo, é incabível. Poderiam ter feito qualquer coisa: um diálogo emocionante em que Pris implorasse pela própria vida. Uma fuga alucinada por dentro do apartamento. Ou uma luta de verdade, em que os dois se engalfinhassem no chão até a morte. Mas não. Decidiram que o melhor seria fazer esse imbróglio cinematográfico que parece um misto de briga de bêbado e dança contemporânea.
Para não dizer que estou mentindo, confira a cena abaixo com seus próprios olhos, e tente não rir desta fantástica sequência de antiluta: