Poucas vezes eu acompanhei o desenvolvimento de um jogo como o de Mulaka, e isso se deve muito ao excelente trabalho da desenvolvedora Lienzo em manter o jogo no radar da imprensa. Depois que eu resenhei Hunter’s Legacy, o lançamento anterior deles, eles mantiveram contato constante, mandando várias atualizações sobre este Mulaka, que seria seu próximo jogo. E a cada novidade, eu ficava mais empolgado para ele.
Daí do nada eles mandaram um e-mail com a data de lançamento. Considerando como a indústria dos games alimenta o hype, eu esperava que ela ainda estivesse longe, tipo no final do ano, na melhor das hipóteses. Para minha surpresa, o jogo sairia em 15 dias e, poucos minutos depois, o código de review do jogo estava na minha caixa postal. Pensa comigo: pela manhã, Mulaka sequer tinha data de lançamento, e na parte da tarde eu estava jogando a versão final. Isso é muito mágico.
Contei esta história por dois motivos: o primeiro é que o DELFOS sempre se diferenciou por seus textos pessoais. E segundo porque esta desenvolvedora independente, que está lançando agora seu segundo jogo, deu um show no trato com a imprensa que grandes editoras não conseguem alcançar. Amigos da Lienzo, nossa profissão seria bem mais fácil se todo mundo que fizesse jogos agisse como vocês.
VAMOS AO JOGO
Mulaka é um jogo de aventura 3D que serve como um verdadeiro exemplo do ditado “não julgue um livro pela capa”. Não dá para negar, seu visual em low-poly é bem feinho..
Eu costumo criticar aqui com frequência o excesso de jogos em pixel art, e olha que eu tenho relação afetiva com esta estética, uma vez que os jogos eram assim na minha infância. Que dizer então de low-poly? Quando os jogos mudaram dos gráficos pixelados para os poligonais eu sinceramente achei um tremendo retrocesso. Até hoje acho os jogos de Mega Drive muito mais bonitos que os de Playstation 1, por exemplo.
Dito isso, jogos poligonais oferecem uma experiência diferente dos pixelados. Um pixelado só pode ser 2D. Os poligonais já possibilitam a experiência mais moderna, na qual você anda em qualquer direção e tem controle da câmera. A Lienzo já tinha explorado o 2D, e agora eles claramente queriam fazer algo em 3D. Mas 3D custa muito caro, inviável para uma desenvolvedora indie. Daí a opção pela estética do low-poly. A boa notícia é que, se de fato eu não classificaria Mulaka como um jogo bonito, eu sem dúvida o definiria como um jogaço. Uma obra divertida, criativa e que se sustenta muito bem durante toda sua duração.
UMA AVENTURA DIVINA
O jogo combina muito bem combate, plataforma e exploração. Alguns nomes de troféus deixam claro que Zelda foi uma grande inspiração para a Lienzo, e talvez esta seja uma boa comparação.
O jogo tem bastante combate, vários upgrades e chefes enormes, mas o foco dele é na jornada, na aventura pela qual você embarca. E que aventura, meu amigo. Ele é cheio de pequenos detalhes simpáticos. Por exemplo, a sua XP, chamada de Korima, é explicada pelos personagens como a energia positiva gerada por atos bondosos. Não é legal? Outra coisa legal é que ao usar as poções, você não as bebe, como seria o esperado, mas faz uma simpática dancinha, acompanhada de trilha sonora, o que tem tudo a ver com a cultura indígena representada no jogo.
Se o visual lembra jogos de 20 anos atrás, a jogabilidade é 100% moderna. Os controles são afiados, a câmera manual funciona perfeitamente e o jogo roda muito bem. Claramente, abrir mão do visual possibilitou um investimento maior no gameplay, e isso deu muito certo. Para citar um exemplo, Dynasty Warriors 9 foi um jogo que critiquei por parecer de baixo orçamento. Apesar do visual mais elaborado, ele não roda redondo, não é gostoso de jogar. Aqui o gameplay é tão bom quanto o de um grande exclusivo, como Uncharted, o que serve para mostrar que, mesmo na era do 4K, o que mais importa em um jogo não é seu visual.
A jogabilidade é simples, mas muito agradável. Você tem um ataque fraco e rápido e outro forte e lento. Aos poucos, vai liberando poções e a habilidade de se transformar em animais. É aí que Mulaka começa a mostrar a que veio. A primeira transformação que você libera é uma águia, e poder voar abre consideravelmente as possibilidades de level design. E nossos amigos da Lienzo se aproveitam muito bem delas.
Não à toa, as últimas fases, onde eles podem brincar com todas as transformações e poções, são as mais legais do jogo. Mas com isso não quero dizer que ele não é legal antes. Pelo contrário. Durante todo meu tempo com Mulaka, eu ficava pensando “puxa, que jogo legal”, e ele ficava melhor a cada nova fase e a cada novo chefe. Aliás, os chefes vão ficando cada vez maiores, culminando em uma batalha épica com um bicho do tamanho de uma montanha.
Uma outra coisa que achei muito legal é que o jogo usufrui bem das conveniências modernas. Ele salva bastante, por exemplo. Ainda assim, ele não cede às pentelhações dos jogos atuais. Por exemplo, crafting, uma das maiores pragas atuais ao lado das microtransações. Tem crafting aqui? Tem. Mas sabe como funciona? Quando você pega três ou quatro plantas do mesmo tipo, elas automaticamente viram uma poção. Nada de ficar navegando por menus, escolhendo o que fazer ou gerenciando inventário. Por que ser mais complicado do que isso?
KEEPER OF THE THREE KEYS
As primeiras fases têm uma rotina bem definida. São mapas bem abertos e, apertando o R1, setinhas mostram os pontos de interesse. Em geral, você precisa cumprir três desafios e com isso ganhar três chaves, que vão abrir a porta para o chefe. As últimas fases, por outro lado, são um pouco mais lineares, do tipo “chegue até o final”, o que me agrada mais, além de serem mais focadas no gênero plataforma.
Eu não tive nenhum problema para encontrar os objetivos principais, mas gostaria que as setinhas dos pontos de interesse marcassem melhor os dito-cujos, o que faz diferença para pegar os baús que dão XP. As setinhas mostram apenas a direção dos itens. Isso significa que você pode estar bem na frente do baú, mas a setinha estará no topo da tela e não no item, dando a sensação de que você está mais longe do que realmente está. É algo pequeno, mas é o tipo de cuidado com a qualidade de vida que tornaria Mulaka ainda melhor, especialmente para os completistas.
Outra coisa que poderia ser mais elaborada são os puzzles. Todos eles são do mesmo tipo, envolvendo girar “canos” para levar a água ao seu destino. Não é que sejam ruins, mas não dá para negar que enjoa. Um pouco mais de criatividade neste aspecto seria bem vindo.
Apesar de não ser um metroidvania propriamente dito, Mulaka tem uma certa influência do gênero que não é especialmente positiva. Este é um jogo em fases, que devem ser feitas na ordem. Você pode se teleportar para as anteriores a qualquer momento (inclusive, para fazer upgrades é necessário se teleportar para a vila). É comum que alguns itens só possam ser adquiridos depois de você ter uma poção ou uma transformação específica. Isso está lá apenas para estender a duração do jogo, mas é bem desnecessário, uma vez que ele já é relativamente longo (deve durar umas 10 horas). Particularmente, eu gosto de terminar uma fase tendo feito 100% nela e se o jogo faz isso, eu não posso ter esta pequena satisfação a não ser que volte até lá depois.
Nessa mesma levada, uma coisa que me incomodou é que não dá para se teleportar de volta para a última fase. Assim, quando eu cheguei nela, me teleportei para a vila para comprar meu último upgrade, como fiz tantas vezes antes, mas depois fiquei preso. Precisei me teleportar para a penúltima fase e passar por ela inteira de novo. Veja bem, uma vez que ela já estava explorada, fiz todo o caminho em sete minutos (eu cronometrei), então não é nada tão dramático, mas não dá para entender porque o jogo optou por colocar esta limitação.
Ainda na última fase, as coisas esfriam um pouco já que lá você deve lutar novamente contra três dos seis chefes do jogo. Pelo menos os chefes são bem legais, envolvendo uso criativo das suas transformações, mas eu acho que chefes são mais especiais quando você luta com eles apenas uma vez.
MULAKA
Não se deixe desanimar pelos últimos parágrafos, no entanto. Durante toda a minha campanha, eu considerei Mulaka um jogaço. Inclusive, pensei que daria a ele a nota máxima, e optei por tirar meio ponto apenas por não haver teleporte de volta para a última fase e pela repetição dos chefes.
Mulaka é um daqueles raros jogos que deixa um sabor doce na boca quando você o conclui, pensando que você realmente acabou de vivenciar uma excelente aventura. Para mim, Mulaka colocou a Lienzo entre as desenvolvedoras a serem acompanhadas, e eu gostaria muito de ver a maravilha que eles conseguiriam criar com um orçamento mais bombado. Bora comprar Mulaka, se divertir pra caramba com ele, e de quebra ainda ajudar isso a acontecer?