Kingdom Hearts

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A moda começou nos gibis ainda nos anos 70: primeiro tivemos um crossover entre duas editoras rivais com personagens da Marvel fazendo pontas nas revistinhas da DC e vice-versa. Com o tempo, lançaram até aquela porcaria de minissérie chamada DC vs Marvel onde colocaram os personagens das duas editoras em lutas que seriam decididas pelo público através de uma votação por cartas. Depois a moda chegou aos videogames com os personagens da Marvel enfrentando os da Capcom e depois os personagens da SNK lutaram contra a fabricante do Megaman. Mas a mistura de gêneros foi até para a música com Milton Nascimento cantando no CD do Angra.

Finalmente, em 2002, a famosa produtora japonesa Square (responsável pelos melhores RPGs de todos os tempos), colocou no mercado um jogo que misturasse mundos totalmente diferentes: Final Fantasy com Disney. Não, você não leu errado, a empresa ousou juntar em uma mesma história alguns dos personagens mais queridos do mundo. Se essa mistura deu certo ou não, você vai ter que ler essa resenha para descobrir.

Em primeiro lugar, gostaria de esclarecer que esta resenha sai com 3 anos de atraso, mas como diz o velho ditado: antes tarde do que nunca. Nunca tive muito interesse nesse jogo e na verdade, nunca soube explicar também o porquê, já que, teoricamente, ele apresenta todos os elementos que eu procuro em um game e veio de uma produtora muito admirada por mim. Ultimamente, eu estava sem grandes opções de RPGs novos legais de Playstation 2 e resolvi dar uma chance a Kingdom Hearts.

Isto posto, quero comentar outro fator importante: eu não entendo por que não se pode criticar um filme ou um jogo com os personagens da Square e, especialmente, da Disney. Parece que tudo o que eles fazem é intocável e, na realidade sabemos que é um pouquinho diferente, basta ler a resenha do Corrales para o Nem Que a Vaca Tussa. Todos têm o direito de errar, mas se você já pré-julga um filme da Disney ou um jogo da Square como perfeitos, mesmo antes de seus lançamentos, então pare de ler esta resenha agora para não se irritar, pois perfeição é uma palavra que passa longe do jogo em questão.

A história é bem simples e passa paralelamente em dois mundos: o jovem Sora e dois amigos, Riki e Kairi, moram em uma ilha chamada Destiny Island, perdida no meio de um vasto oceano e jamais saíram para conhecer outros lugares do planeta. Como qualquer adolescente curioso, os três sonham com outros mundos e lugares para explorar onde possam viver mil aventuras e começam a construir uma pequena e rústica jangada, sem o conhecimento de seus pais, para cruzar o oceano em busca de terras desconhecidas. Neste momento, você incorpora Sora na busca pelo material necessário na construção da jangada e nos mantimentos para a viagem. Um começo bem chatinho, diga-se de passagem, pois você tem de ir e voltar até determinados pontos da ilha para coletar uma extensa lista de materiais, mas tudo serve como um grande tutorial para você se acostumar com os controles. Enquanto isso, no Reino da Disney, o Rei Mickey desaparece misteriosamente e seus dois fiéis escudeiros: o mago Donald e o chefe da guarda real, Pateta, saem em sua busca com a ajuda de uma nave espacial chama da Gummi (será algo a ver com os Ursinhos Gummi?) que pode viajar entre vários mundos. Essa nave também faz parte de um joguinho paralelo de viagem entre os mundos, no estilo Star Fox onde você pode ganhar alguns itens para melhorar a velocidade, resistência e canhões da nave.

De volta à ilha, nosso Sora se prepara para a viagem quando um portal aparece no céu e libera diversas “sombras” malvadas. Após derrotar as sombras, Sora ganha uma espada em formato de chave (keyblade) e é sugado para outra dimensão (uma cidade chamada Traverse Town que é uma mistura entre a tecnologia de Final Fantasy e a magia da Disneyworld) onde parte em busca de seus amigos. No caminho, você cruza com Donald e Pateta e os três resolvem descobrir o que há por trás dos seres sem coração (heartless – as sombras que Sora enfrentou na ilha e que também dão as caras na cidade) e do desaparecimento de Mickey. Logicamente, por trás de tudo estão os grandes vilões da Disney como o Capitão Gancho, Clayton, Hades, a Bruxa da Branca de Neve e alguns vilões da série Final Fantasy. A história se desenvolve a partir daí, com Sora, Donald e Pateta explorando os mundos (cada um é um filme famoso da Disney como Hércules, a Pequena Sereia e Tarzan), ajudando os personagens de cada aventura, enfrentando seus chefes (alguém falou em Megaman?) até descobrir a verdade sobre sua keyblade.

Uma enorme variedade de personagens Disney cruzará o seu caminho. Além de Donald e Pateta, temos Margarida, Minnie, Huguinho, Zezinho, Luizinho, Tico, Teco, Alice, Simba, Ariel, Tarzan, Hércules, Bambi, Ursinho Pooh (antigamente era Puff) e muito mais com praticamente todos os seus respectivos coadjuvantes. Do lado de Final Fantasy, temos Cloud, Leon, Squall, Cid e mais alguns, mas a prioridade é realmente da casa do Mickey. Apenas para constar, com exceção de Donald como mago e Pateta como cavaleiro, os outros personagens aparecem bem caracterizados em seus respectivos mundos.

Os gráficos são eficientes. Kingdom Hearts não é o jogo mais bonito de Playstation 2 e não tem os melhores gráficos de um RPG (esse título dou para Xenosaga) mas cumpre bem o seu papel com cenários bonitinhos (mesmo que repetitivos dentro dos mundos), boas texturas e personagens com certo nível de detalhes. No caso, os personagens da Disney são os grandes destaques com seus modelos poligonais muito bem feitos e com várias expressões faciais. Os modelos, em especial do Grilo Falante e do Pinóquio são lindos. Vai entender, mas justamente Donald e Pateta, os dois personagens que acompanharão o jogador em 90% do tempo são os mais simples e limitados.

Os sons e músicas, como em qualquer jogo da Square, estão legais. As músicas utilizam alguns temas conhecidos dos filmes Disney, porém não de todos os filmes presentes no jogo o que é bem curioso. Para complementar, não temos uma trilha sonora o tempo inteiro e, às vezes, a música simplesmente desaparece durante o diálogo dos personagens o que dá uma incômoda sensação de vazio. Sabe aquele momento da revelação chave? Imagine sem uma trilha de suspense, silêncio total, apenas com os personagens conversando. Falta algum impacto.

Por falar nas conversas, grande parte dos diálogos é dublada e todo o trabalho de vozes é fantástico e bem fiel ao mundo Disney. A voz de Sora é interpretada por Haley Joel Osment, o garotinho de O Sexto Sentido e outros atores conhecidos também emprestam suas vozes.

Diferentemente da maioria dos jogos da Square, toda a ação acontece em tempo real, inclusive as lutas. Esqueça as tradicionais brigas por turnos da série Final Fantasy já que a empresa optou por um RPG ação no estilo Legend of Zelda. Na teoria a idéia é estranha, especialmente porque você controla apenas Sora e o computador se encarrega do restante de seu time (no máximo 3 personagens), mas na prática a coisa funciona legal até certo ponto. Mesmo sem esse controle total, você pode optar por algumas táticas (personagens mais ofensivos, focar em recarregar a energia e por aí vai) nos menus de inteligência artificial mas isso não impede que muitas vezes o mago Donald utilize alguma estratégia kamikaze, especialmente contra os chefes das fases. Se um personagem aliado morrer (o que ocorre frequentemente, especialmente com nosso querido pato), ele fica inconsciente por um tempo (longo) e depois volta com metade de sua energia recarregada. Já se Sora morrer é game over e você deve reiniciar a ação de algum ponto salvo ou da última troca de ambiente.

A dificuldade varia entre o ridiculamente fácil ao irritantemente difícil num piscar de olhos, especialmente por problemas que comentarei nos próximos parágrafos. Os heartless, no geral, são bem variados e fáceis, mas seus ataques, por mais estúpidos que sejam, sempre tiram uma energia considerável. O problema é que na maioria das vezes você não enfrenta três inimigos isolados e sim uma verdadeira horda. Por sorte, quando derrotados, eles deixam bolinhas verdes (que recuperam a energia) e douradas (o dinheiro do jogo). Com o dinheiro, você já deve imaginar: compra poções, ether (item famoso nos Final Fantasies pois recuperam o precioso MP – medidor de magia), armas e armaduras nas lojinhas.

Os chefes são os bem conhecidos inimigos da Disney e da série Final Fantasy (em menor quantidade) e não são difíceis se você acumulou níveis suficientes durante os mundos (uma dica preciosa – acumule o máximo de níveis, perca horas apenas matando os inimigos simples), mas também tiram bastante energia com seus ataques e é bom ficar esperto para utilizar as poções.

Aliás, falando nas poções, isso é algo que preciso comentar. Você tem três formas de recarregar as energias durante as batalhas: pelas bolinhas verdes, pelas poções ou pela magia cure (cura) um pouco mais pra frente. As bolinhas verdes são as mais funcionais pois basta passar em cima e pronto, porém recuperam pouca energia e não aparecem em todas as batalhas. A magia e o item herdaram o sistema de lutas por turno e são terríveis de se utilizar durante uma luta chata onde o menor descuido significa a morte. Você deve acessar o menu principal pelo direcional esquerdo, selecionar o submenu (de item ou magia), selecionar o que você quer usar, selecionar o personagem onde você quer aplicar e apertar o botão mais uma vez. Calma, ainda não acabou: Sora joga o item ou magia pra cima, grita o seu nome e só depois a energia é recarregada. Você imagina tudo isso em tempo real, no meio daquela batalha contra um mestre. Muitas vezes (bota muitas aí) eu morri enquanto o panaca do Sora gritava o nome de poção olhando para o céu, o que serviu para que eu exercitasse minha criatividade e inventasse vários apelidos lisonjeiros para a Square.

Apesar de uma história funcional (veja bem – funcional – nada de excepcional) e uma qualidade técnica decente. Kingdom Hearts sofre de dois problemas crônicos que quase põe tudo a perder. O primeiro deles é a câmera. Acho inadmissível que, após uma década com jogos 3D (na verdade, são quase 15 anos se contarmos as primeiras tentativas no PC no começo dos anos 90), as empresas ainda não tenham desenvolvido um sistema eficaz de câmeras e Kingdom Hearts sofre MUITO com isso: muitas vezes a visão trava em alguma parede e você não consegue enxergar um baú deslocado, por exemplo, ou então no meio de uma batalha com algum dos chefes a câmera dispara a girar e você perde totalmente sua referência, enfim, é um inferno e irrita bastante. Você até pode escolher uma câmera manual na tela de opções, mas a última coisa que precisa, quando está enfrentando um inimigo mala, é se preocupar com a câmera.

A perspectiva escolhida em terceira pessoa também não ajuda em nada pois a visão é sempre focada nas costas do personagem mas não falo daquele ângulo 3/4 de um Max Payne, onde conseguimos visualizar todo o cenário, e sim de uma visão no bumbum de Sora mesmo, que nos impossibilita de enxergar o que acontece exatamente à sua frente.

Imagine a seguinte situação: você está em uma daquelas fases de pular de plataforma para plataforma até alcançar um determinado ponto no topo de uma montanha. Se cair, volta tudo e tem de recomeçar do zero só que o pulo do personagem é impreciso (aliás, esse é outro grande defeito), a câmera não consegue se fixar para mostrar um ângulo favorável e a perspectiva não te dá uma referência quanto à localização da próxima plataforma. Para piorar, os seus “companheiros de time” cismam em subir sempre na mesma plataforma minúscula onde você também está, limitando ainda mais seu espaço para o próximo salto. Frustrante não? Pois isso acontece muito mais do que você pode imaginar e esse é o resumo de Kingdom Hearts: frustrante.

Um jogo que tinha tudo para ser o melhor RPG de Playstation 2, mas naufraga nas falhas técnicas, enredo sem profundidade e falta de cuidado com a programação. Nota dez pela idéia de reunir dois mundos tão distintos, porém tão próximos quando se fala em fantasia e criatividade, mas nota zero pela execução que simplesmente desperdiçou duas das mais importantes franquias da história e não falo apenas dos videogames. Faltou um maior cuidado e aquela magia especial dos filmes da Disney. Tudo soa muito frio, você não consegue criar laços de carisma com nenhum dos personagens e sempre que cito esse lado da caracterização gosto de mencionar o melhor jogo de videogame de todos os tempos, na minha opinião, Chrono Trigger. Por que a própria Square, criadora dos dois RPGs, não consegue repetir a afinidade criada entre os jogadores e os personagens na era 16 Bits se agora tem muito mais recursos para aproveitar?

Apesar de morno e, de certa forma, monótono – especialmente em seu começo – Kingdom Hearts conseguiu alcançar o sucesso (provavelmente pelos nomes que leva) e abrir espaço para uma continuação: Kingdom Hearts II que sairá daqui a alguns meses no Japão e nos EUA. Espero, de coração, que a empresa adote algumas mudanças drásticas na execução das idéias para o segundo episódio ou teremos apenas mais uma boa idéia esquecida em nossas prateleiras empoeiradas em alguns anos. E mais uma resenha delfiana negativa, é claro.

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