Dia desses li numa entrevista o guitarrista Michael Amott (Arch Enemy) dizer que os apreciadores da música pesada no Brasil são da velha escola do Heavy Metal. Uma observação simples, mas capaz de despertar em mim algumas memórias e reflexões sobre esse estilo musical tão apaixonante, mas muito pouco pensado. Dizer que alguém é da velha escola do Heavy Metal significa dizer que, basicamente, esse alguém viveu e acompanhou intensamente (numa época em que a Internet ainda fazia parte da ficção científica e em que os tape-traders dinamizavam a circulação de material via correio), apesar da precariedade de informação, os míticos anos 80, década que viu nascer clássicos eternos como Master of Puppets, The Number of the Beast e tantos outros. Uma longa lista, passível de despertar acaloradas discussões.
O fato é que vivi essa época e, após um curso de graduação, um mestrado, um doutorado, alguns anos de experiência em docência no ensino superior, um casamento e um filho, a tal da velha escola do Heavy Metal ainda permanece para mim como algo extremamente relevante e capaz de resistir a um olhar cada vez mais crítico. Sobretudo se considerarmos que foi posta à prova por outras escolas artísticas com relevância social e estética reconhecidamente superiores. A saber: o Jazz e as tantas manifestações artísticas observadas ao longo da história da humanidade. Como se pode observar, um teste muito duro. E quais teriam sido os alicerces capazes de resistir a tamanhas provações? Como resposta e como forma de quebrar um pouco a seriedade (antes que me acusem de pseudo-intelectualizar a coisa toda, afinal de contas it´s only rock and roll), mando uma frase à Manowar,certamente a banda mais caricata que nosso submundo já viu: para resistir a tamanhas provações, somente alicerces forjados do mais puro metal!
Retomando a seriedade: o que se pode observar atualmente no mundo da música pesada é que o legado da velha escola ainda é capaz de ditar algumas regras, sem que com isso tenha caído na vala comum da repetição, gerando trabalhos que trazem características próprias que se repetem ao longo de décadas, mas que estão muito longe de serem cópias de si mesmos, protegidos pelas trincheiras seguras das fórmulas bem sucedidas.
Se nos dias de hoje a indústria do entretenimento cuida de sobrecarregar o mundo da música pesada com dezenas de lançamentos mensais que invariavelmente são a cópia da cópia da cópia daquilo que se fazia há duas ou três décadas, bem diferente era o que ocorria nos anos 80. Sabíamos a discografia completa de nossas bandas preferidas, suas formações, a ordem das faixas, as autorias das artes das capas dos LPs (aqueles com lado A e lado B) e discutíamos, sim, discutíamos sobre a performance de cada um dos músicos que admirávamos, sobre a qualidade de suas composições, sobre a timbragem utilizada em cada um dos instrumentos, sobre as letras das músicas.
Defendíamos ferrenhamente nossos ídolos, fundamentávamos nossa argumentação na inspiração histórica buscada para a redação de determinadas letras (Alexander The Great do Iron Maiden, por exemplo), na busca por referências da literatura e da astronomia (Electric Eye do Judas Priest) na potência e técnica de determinados vocalistas, nos malabarismos harmônicos executados pelas estupendas duplas de guitarristas e no meu caso particular nos falsetes sustentados com extrema maestria por um sujeito que pode ser considerado como muito mais do que um vocalista, um verdadeiro intérprete: o dinamarquês Kim Bendix Petersen, o lendário King Diamond.
Longe de se constituir numa unanimidade como o é a Santíssima Trindade (Dio/Halford/Dickinson), King Diamond é como um daqueles muitos referenciais do nosso submundo capaz de despertar amor e ódio, mas nunca a indiferença. Seja por levar ao extremo o canto em falsete, seja pelas histórias contadas em seus álbuns, consideradas por muitos um anticlímax quando adicionadas a esse estilo de música. Numa época em que à música vêm sendo adicionados termos como baixar, zipar e mp3, que impõem rótulos reducionistas como faixa 14 e música 9, é sempre bom lembrarmos de álbuns que não teriam sentido algum se não apreciados como um todo, em sua riqueza de detalhes, de interpretação, de arte da capa. Com suas histórias de terror, o King Diamond desenvolveu trabalhos que primam pela complexidade musical e lírica, pela conexão entre as faixas dos álbuns e dos personagens que as protagonizam, trabalhos que facilmente poderiam encontrar lugar ao lodo de mestres como Edgar Alan Poe.
Certamente não foi o criador daquilo que se convencionou chamar de música visual, mas figura com destaque entre aqueles que desenvolveram o conceito até bem próximo do que seria o máximo possível, ou seja, dar ao ouvinte a possibilidade de criar imagens enquanto ouve a música.
Ao longo de sua discografia, composta por onze álbuns de estúdio (abrangendo apenas a banda King Diamond, não o Mercyful Fate) lançados ao longo das décadas de 80, 90 e durante os 6 primeiros anos do século XXI, apenas dois não se apresentam como palco totalmente tomado pelas histórias de terror, ainda que elas se apresentem de maneira reduzida – desenvolvidas em apenas 4 faixas nos álbuns Fatal Portrait e The Spider´s Lullabye. Histórias e personagens igualmente complexos nos são apresentados a partir de temas cuja diversidade distancia sua obra do lugar comum em que boa parte dos músicos do gênero acabam caindo.
É possível enumerar alguns dos temas trabalhados e que se constituem como característica marcante ao longo de todos os trabalhos:
1- O terror, desdobrado em circunstâncias e caracterizações que não o permitem apresentar-se como mera repetição em todos os discos.
2- A ambientação histórica buscada para o desenvolvimento dos temas. A inquisição Francesa entre os séculos XV e XVI, a família que se muda para o sul dos Estados Unidos na década de 1930, após o crack da bolsa de valores e assim por diante.
3 – A citação a filmes clássicos de terror como O Exorcista em Voodoo e Poltergeist em The Spider´s Lullabye.
4 – A indiferença e a utilização de poder observados em práticas religiosas tão diversas quanto o cristianismo através dos Tribunais da Santa Inquisição em The Eye e o desconhecimento dos rituais de religiões de origem africana em Voodoo.
5 – A infância, presente nos álbuns Them (a irmã Missy), The Eye (as duas meninas que brincam no local em que foram queimadas as supostas bruxas), Fatal Portrait (a menina Molly, de 4 anos, personagem do misterioso retrato), The Graveyard (a menina Lucy de 7 anos, molestada sexualmente), Abigail (o bebê natimorto da Condessa La Fey, fruto de um adultério) e Voodoo (a gravidez de Sarah Lafayette).
6 – A loucura e as práticas médicas em instituições de saúde mental nos álbuns Them (a vovó que volta pra casa após um longo período num sanatório), The Graveyard (o louco injustamente acusado de molestar sexualmente a filha do prefeito e conduzido ao Black Hill Sanitarium) e The Spider´s Lullabye (onde Harry tenta curar suas fobias no Devil Lake Sanitarium e é submetido às monstruosas práticas psiquiátricas no quarto 17).
7 – o charlatanismo na psiquiatria nos álbuns Them (onde o Dr. Landau classifica o pequeno King como louco), Conspiracy (onde o mesmo Dr. Landau se casa com a mãe do pequeno King objetivando vender a velha mansão) e The Spider´s Lullabye (onde o Dr. Eastmann prende seu paciente Harry em uma camisa de força e como método de cura para suas fobias cobre seu corpo com todas as espécies conhecidas de aranhas).
8 – A ambientação culturalmente e historicamente relevante de suas histórias, como no álbum The Puppet Master que se passa durante o século XVIII na cidade de Budapeste (Hungria) e que tem como palco os ainda hoje tradicionais teatros de bonecos.
9 – As entidades sobrenaturais: os espíritos que povoam a casa no álbum Them e o espírito do Conde de La Fey no Abigail
10 – A referência à mitologia grega no álbum Fatal Portrait ao mencionar Creonte (em português, ele se chama Caronte), aquele que conduz as almas num barco através do rio Styx com destino ao reino dos mortos.
11 – Aos diálogos, dignos das tragédias gregas, desenvolvidos entre o pequeno King e a Vovó (no álbum Them), entre King e sua irmã Missy (também no álbum Them), entre o caseiro praticante do vodu, Salem, e a proprietária da mansão Sarah Lafayette (no álbum Voodoo) entre o Inquisidor Nicholas de la Reymie e a suposta bruxa Jeanne Dibasson (no álbum The Eye) e entre o fóbico Harry e o Dr. Eastmann (no álbum The Spider´s Lullabye).
A criatividade no que diz respeito à parte lírica é facilmente demonstrável. No entanto, como arranjar tais referências, pois falamos aqui de música e não de livros ou encenações teatrais? O risco de sermos apresentados a algo pedante e ao mesmo tempo enfadonho seria enorme se as soluções encontradas pelo homem das mil e uma vozes não fossem funcionais o suficiente para construir os alicerces que fizeram com que este estilo de música permanecesse relevante para mim após mais de duas décadas de audição.
E as vozes. Falar da obra de King Diamond e não citar como ponto primeiro sua performance vocal é ignorar o óbvio. E aqui um paradoxo. Se comparado à Santíssima Trindade, podemos dizer que se trata de um sujeito com visíveis limitações vocais e que muito engenhosamente construiu a partir da necessidade de superar tais limitações (afinal de contas o sujeito se propôs a adentrar um nicho ocupado por grandes músicos e que estavam no auge de suas carreiras) sua identidade própria. Quem não é capaz de reconhecer em pouquíssimos segundos aqueles agudos quase sobrenaturais que nos convidam a ouvir suas histórias. Exemplo disso está no álbum Them, onde já na primeira faixa ouvimos “Grandma, welcome home”.
Num tempo em que as Metal Operas e seus muitos personagens surgem por todos os cantos, ouvir Mr. Diamond utilizar-se de diferentes entonações vocais para dar vida a figuras como o Unfortunate Man (vítima de um construtor de fantoches praticante de ciências ocultas), é uma experiência gratificante pois temos a oportunidade de entrar em um mundo cheio de nuances e que em muito se distancia das histórias povoadas por mocinhos e bandidos, onde invariavelmente os primeiros sempre vencem. Cuidado: spoilers sobre as histórias dos álbuns habitam o restante desse parágrafo O pequeno King em Them e o Louco acusado de pedofilia em The Graveyard são tragicamente derrotados. O romance entre Jonathan de La Fey e Miriam Natias é brutalmente interrompido em Abigail, entre outros finais mórbidos. Valendo-se de infinitas texturas vocais, King é capaz de ir do falsete ao gutural digno das mais radicais bandas de death metal o que torna possível dar voz a cada um de seus personagens.
Fim dos spoilers. Obviamente, tais vozes necessitariam o acompanhamento de músicos igualmente talentosos. Nesse quesito King é tão bem sucedido quanto outros vocalistas que se lançaram em carreira solo: cercou-se sempre de bons instrumentistas. Tal e qual os cruzadores medievais, o mestre do horror trouxe ao longo de sua jornada seu fiel escudeiro, um dos mais subestimados guitarristas da história do Heavy Metal: Andy La Rocque. Claramente seguidor da escola moderna da guitarra (os chamados neoclássicos), Andy lança mão seguidamente de arranjos e escalas tocadas à velocidade da luz, mas jamais se esquece de que sua música está a serviço de uma banda e que é necessário em vários momentos dar lugar a outros instrumentistas. Como traço característico de sua música, podemos notar ainda a influência de guitarristas clássicos dos anos 70 como Ritchie Blackmore do Deep Purple e Jimmy Page do Led Zeppelin na composição de riffs simplórios, mas de uma eficácia comovente. Tendo a seu lado guitarristas igualmente talentosos podemos dizer que Andy participou de duas das mais lendárias duplas de guitarras que o Heavy Metal já viu. Nos discos Fatal Portrait e Abigail compôs o time de cordas com o ex-Mercyful Fate (e companheiro de longa data de King), Michael Denner. Nos discos Them, Conspiracy e The Eye teve como parceiro o guitarrista Pete Blakk.
Aliás, diga-se de passagem, o álbum Them trouxe uma das mais eficazes formações já vistas em bandas do gênero. King nos vocais, Andy La Rocque e Pete Blakk nas guitarras, Hal Patino no baixo e Mikkey Dee na bateria. Só pra constar: o exímio baterista Mikkey Dee atualmente responde pelas baquetas na Instituição chamada Motörhead e já gravou até com o Helloween.
Ao longo dos onze álbuns de estúdio, o que se pode perceber é que o trabalho do Dinamarquês foi capaz de deixar para a música pesada no mínimo dois clássicos absolutos, dignos de constar ao lado das maiores obras do gênero: Abigail e Them. Obviamente que seus trabalhos, como qualquer processo criativo, sofrem variações no que diz respeito à qualidade. E igualmente sofre algumas injustiças por parte da crítica, às vezes não tão especializada assim. The Spider´s Lullabye é exemplo disso, um disco fabuloso, desenvolvido por uma formação que já não era mais aquela que se considerava como clássica (era o ano de 1994) e pode seguramente ser apontado como um dos raros discos do gênero capazes de manter viva a chama da boa música numa época em que reinavam sujeitos mais preocupados com suas crises relacionadas à fama repentina do que em escrever música de qualidade ( sim, sim , era o auge do Grunge). Mesmo o álbum The Graveyard, que trazia uma sonoridade irreconhecível, extremamente pesado e arrastado, deixando parcialmente de lado as complexas harmonias de outrora, pode ser considerado um trabalho que, se não consegue estar à altura de seus predecessores, muito dificilmente é capaz de manchar a carreira de Mr. Diamond (embora reconhecidamente ele se recuse a tocar músicas desse álbum e do The Spider´s Lullabye em seus concertos atualmente).
Não é um boa forma de defesa essa, mas como falamos de um gênero musical, vejamos o que produziram ao longo de suas carreiras alguns dos imaculados nomes da música pesada. Ou melhor, vamos apenas citar alguns “fatos” e que o leitor tire suas próprias conclusões. Sobre o Judas Priest mencionemos o álbum Turbo e sobre o Iron Maiden mencionemos o álbum Virtual XI (alguém aí teve um infarto?).
De qualquer forma, a carreira de King Diamond, mesmo que irregular, merece ser conhecida por qualquer fã de boa música do planeta.